Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Tenho estado a ler a obra Jacob e Dulce do luso-goês Francisco João da Costa (Gip) e, em pelo menos duas passagens, há personagens que se referem ao protagonista como «pé-de-castelo». Pelo contexto, depreende-se que será alguma forma de desconsideração. Porém, não consegui encontrar o significado concreto desta expressão em nenhum dicionário online e, mesmo esquadrinhando pelo Google, só encontrei alusões a um determinado tipo de formação/unidade militar histórica.

Sabem o que é que poderá significar ao certo?

Obrigado.

Resposta:

Pouco podemos acrescentar ao que o consulente já apurou, porque não encontramos registos nas fontes de que dispomos, a nossa biblioteca e a Internet.

A expressão, que, em Jacob e Dulce, de Francisco João da Costa, se depreende ter sentido pejorativo, ocorre de facto em textos relativos a um tipo de unidade militar, que tem registo, por exemplo, no dicionário de António de Morais Silva, na sua edição de 1789, regista pés de castelo como subentrada de e definido como «a tropa da guarnição delle».

O termo aparece mencionado em estudos de história militar:

(i) «...antigas organizações conhecidas como Pé-de-Castelo (cerca de 200 homens)» (Revista Militar N.º 2439 – Abril de 2005, pp 365).

Mas o uso de pé de castelo em certos textos do século XVII e XVIII permite compreender que as guarnições assim chamadas eram formadas por gente humilde, mal ou nada preparada:

(2) «[...] a forma em que esta fortaleza se achava guarnecida até o presente era feita por uma companhia das que neste Reino se chamam de pé de castelo, as quais valem o mesmo que uma guarnição de paisanos, e entende êle Conselheiro que não pode haver maior inconveniente para o serviço de Vossa Majestade que ficar guarnecida por aquêle modo a principal fortaleza da cidade da Bahia.» (Documentos Históricos, Consultas do Conselho Ultramarino, Bahia. 1695-1696 e 1724-1732, p. 242)

Estudos recentes permitem também saber que os pés de castelo eram formações militares de indivíduos pouco treinados:

(3) «Esta guarnição de pé de castelo, em muitas oportunidades, foi contestada quanto à sua eficiência, o que po...

Pergunta:

 Sei mais ou menos quando se usa acerto e quando se usa asserto, mas há um caso específico em que estou na dúvida.

Resposta:

Acerto e asserto pronunciam-se da mesma maneira (são palavras homófonas) mas significados distintos e têm origens bastante diferentes. Contudo, no caso em apreço, as duas palavras aproximam-se semanticamente e fazem com que as frases em que ocorrem pareçam sinónimas, embora não totalmente.

Acerto é um derivado não afixal de acertar (por sua vez um derivado de certo por parassíntese) e significa basicamente «ação de ajustar, de tornar adequado, correto, certo; ato ou efeito de acertar» (Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa).

Asserto, «opinião dada como certa, afirmação», é vocábulo que vem, por via erudita, do latim assertum, «asserção, afirmação, proposição», nome que resulta da conversão de uma das formas (supino) do verbo também latino assĕro ou adsĕro, is, erŭi, ērtum, erĕre, «tomar, agarrar, reclamar, pôr em liberdade, afirmar como<...

Pergunta:

Quais as origens dos sufixos -ão (presente em calorão) e -asca (presente em nevasca)?

Por favor, muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

A forma -ão pode corresponder a diferentes sufixos, que se encontram descritos, por exemplo, no Dicionário Houaiss.

Limitando-nos a -ão como sufixo de aumentativo, a mesma fonte indica que é um sufixo que tem uma dupla origem, porque nela convergem dois sufixos diferentes:

-ão, que evoluiu do latim -anu- e ocorre em palavras que não são aumentativos como irmão, coimbrão, cidadão;

– e de -ão provindo das formas medievais -om e -õe, que evoluíram do latim -one- e -udine-, em palavras como patrão ou solidão (que também não são aumentativos).

Quanto a -asca, é a forma de feminino de -asco e ocorre também em aumentativos e noutros tipos de palavra, embora seja pouco frequente.

Segundo o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, é sufixo de origem pré-romana, mas não se sabe exatamente qual é a língua antiga donde provém.

Também é plausível que várias palavras terminadas em -asco ou -asca tenham sido introduzidas por via do castelhano (ou seja, do espanhol), como pode ser o caso de nevasca («grande nevão/queda de neve»), borrasca («tempestade violenta») e penhasco («rocha elevada e pontiaguda»). De qualquer maneira, mesmo em espanhol, considera-se que este sufixo é uma variante de -sco/a (ver dicionário da Real Academia Espanhola) e tem origem em línguas que se falavam na Península Ibé...

Pergunta:

Regressando a Os Lusíadas, reparo que a palavra gesto surge muitas vezes no texto com o sentido de «rosto» ou «fisionomia».

Curiosamente, os dicionários modernos preveem esse sentido. Mas, francamente, não me lembro de alguma vez ter utilizado ou escutado, no meu quotidiano, a palavra gesto com tal intenção.

Assim, o que pergunto é se esse significado é arcaico ou se, apesar de menos comum, continua a ser válido no português contemporâneo.

Muito obrigado.

Resposta:

Gesto, na aceção de «aspeto, expressão facial», é um uso arcaico ou, quando muito, clássico, que autores do século XIX adotavam mas que hoje nunca ou quase nunca ocorre na expressão literária:

(1) «Foi por tal motivo que ninguém reparou na entrada do alferes-mor. O gesto carregado deste exprimia uma tristeza profunda, e o seu olhar incerto dava indícios de que lhe revoavam na alma graves cuidados.» (Alexandre Herculano, O Bobo, 1843, in Corpus do Português)

(2) «ia a gritar, mas o olhar e gesto com que a fitou o Cancela cortou-lhe a fala na garganta.» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais, p. 249, in dicionário da Academia das Ciências de Lisboa)

No exemplo (1), é possível que o autor tenha procurado, com o uso de gesto, reforçar a índole histórica do tema e da ação. O segundo caso é muito menos claro, e é possível que Júlio Dinis empregasse gesto sem intenção arcaizante. Em todo o caso, gesto é uma palavra sobretudo literária, que não parece ser usada noutros tipos de texto e comunicação.

Sendo assim, o significado atual da palavra é a aceção mais básica que figura, por exemplo, no dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, logo à cabeça da definição da entrada em questão:

«1. movimento do corpo, especialmente dos braços, das mãos, da cabeça ou dos olhos, para reforçar a expressão de pensamentos ou sentimentos – gesto de contentamento; gesto de admiração; gesto de surpresa; gesto de resignação; gesto de aborrecimento; gesto de autoridade [...]»

Pergunta:

Podiam esclarecer-me esta dúvida, por favor?

Reparei que a palavra néon está grafada nos nossos dicionários. Contudo, por ser de origem estrangeira, temos de a escrever em itálico ou entre aspas

Obrigada!

Resposta:

O vocábulo néon não é considerado estrangeirismo e, portanto, escreve-se em redondo, ou seja, escreve-se normalmente, sem itálico nem aspas.

O facto de terminar em -n não foge às regras da fonologia e da ortografia do português, porque há outros casos de palavras terminadas em -n, geralmente do domínio científico: íman, glúten, dólmen, cólon. É verdade que este é um grupo restrito de palavras, que apresenta alguma variação na escrita, como se pode constatar quando se comparam os dicionários feitos em Portugal com os dicionários elaborados no Brasil.

Acrescente-se que néon é um termo científico que adapta diretamente a forma neon, denominação criada em 1898 por William RamsayMorris Travers para identificar o gás que descobriram (cf. neônio no Dicionário Houaiss). Os referidos investigadores criaram este nome a partir do grego néon, forma do género neutro do adjetivo néos.

Convém também saber que néon é a forma usada em Portugal, mas no Brasil os dicionários registam igualmente neon, a que parecem dar preferência sobretudo quando se usa para referir «letreiro luminoso em que se usa este gás» (Dicionário Houaiss). Tanto em Portugal como no Brasil e nos outros países de língua, as formas mais corretas da palavra são neónio e neônio, que também têm registo, mas acontece que o uso impôs néon/neon, que hoje se aceitam como formas corretas.