Carlos Rocha - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Rocha
Carlos Rocha
1M

Licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, mestre em Linguística pela mesma faculdade e doutor em Linguística, na especialidade de Linguística Histórica, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Professor do ensino secundário, coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacado para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

«Tem que ter tinta na caneta.»

Este ditado vem de onde?

Resposta:

É uma expressão que parece bastante recente e que encontra uma versão mais completa em «não basta ter caneta, tem de ter caneta» (ou numa versão mais popular «tem que ter caneta»), como sugere o seguinte exemplo:

(1) «A função dele é criar uma base governista. E, para criar a base governista, não basta lábia, tem que ter caneta. Não basta ter caneta, tem que ter tinta na caneta.» ("Um projeto para 20 anos", Crusoé, 27/09/2019)

Pelo contexto, depreende-se que a frase feita – um aforismo, isto é, uma frase curta, que encerra uma reflexão genérica com alcance prático ou moral – encerra uma imagem do exercício do poder, em que «caneta» funciona como metonímia do ato de assinar decretos, ou seja, como instrumento que inscreve atos de autoridade. A expressão pode, portanto, ser entendida como uma advertência a quem tem de saber encontrar meios para alcançar a sua ambição. O dito parece, portanto, próximo de «não se fazem omeletes sem ovos», literalmente equivalente a «é impossível produzir sem matéria-prima» (Madeira Grilo, Dicionário de Provérbios, 2009) ou, mais prosaicamente, «as coisas não nascem do nada».

Pergunta:

A propósito da pergunta publicada 19/04/2022 [sobre a grafia de dele, referido a Deus], não seria mais simples, e certamente mais elegante, simplesmente transferir o destaque em maiúscula para a letra inicial, suprimindo o apóstrofo?

«Em Deus cremos, e Nele recai toda a nossa esperança.»

Obrigado.

Resposta:

No contexto da atual norma ortográfica, não parece haver preceito claro quanto a essa possibilidade mais «elegante» – a de grafar em maiúscula a letra correspondente à preposição.

O que de facto se prevê – conforme o preceituado são duas situações:

a) a não contração da preposição com o pronome: «em Ele»;

b) a contração, mas escrita com a letra inicial da preposição seguida de um apóstrofo  e de um pronome com incial maiúscula.

Obviamente que, no caso de contigo e consigo reflexo, não se aceitam formas como " conTigo" ou "conSigo". Quanto à possibildiade de escrever convosco com maiúscula, também não parece concretizar-se, quando se leem documentos relacionados com matéria religiosa – por exemplo:

(1) «Convosco, Senhor, seremos provados; mas não turvados. E, seja qual for a tristeza que habite em nós, sentiremos o dever de esperar, porque convosco a cruz desagua na ressurreição [...]» ("Homilia do Papa Francisco na vigília pascal", Ecclesia, 11/04/2020).

Em (1), convosco ocorre com maiúscula inicial no começo de frase, o que não é relevante para daí se inferir a generalização a todas as formas dessa forma pronominal. Na verdade, na frase logo a seguir, ocorre convosco com minúscula inicial e, portanto, a sugerir que nas formas em que se associam preposições e pronomes não é hábito escrever com maiúscula a letra inicial correspondente ao morfema preposicional.

Pergunta:

Por que o i e o j possuem pinguinhos?

Muitíssimo obrigado.

Resposta:

Sobre o popularmente chamado "pingo" ou "pinguinho" (em Portugal, "pintinha") sobre o i e o j, aceita-se que este ponto sobrescrito surgiu no contexto da escrita cursiva para distinguir esta de outras letras. É o que se pode ler, por exemplo, na versão em linha da Enciclopédia Britânica:

«A letra minúscula i é somente uma forma mais curta da maiúscula. O ponto aparece pela primeira vez em manuscritos datados por volta do século XI e era usado para distinguir a letra e ajudar na sua leitura em palavras em que o i estava na proximidade de letras como n ou m (por exemplo, inimicis). O ponto tomava frequentemente a forma de um traço. Nos manuscritos medievais tornou-se habitual distinguir um i inicial ou destacado alongando-o abaixo da linha, daqui decorrendo a diferenciação entre i e j. A letra inicial, quase sempre mais comprida, tinha muitas vezes o valor de consonante, o que levou j a representar uma consoante, e i, a vogal. Até ao século XVII, considerava-se que as duas formas não eram letras diferentes.»1

 

1 Tradução livre do texto inglês: «The minuscule letter is merely a shortened form of the majuscule. The dot first appears in manuscripts of about the 11th century and was used to distinguish the letter and assist reading in words in which it was in close proximity to letters such as n or m (inimicis, for example). The dot frequently took the form of a dash. It became the custom in medieval manuscripts to distinguish an initial or otherwise prominent i by continuing it below the line, and it was from this habit that the differentiatio...

Pergunta:

Em Portugal, é geral o evitar-se o hiato «a água» com "a iágua", ou trata-se dum uso dialetal?

Muitíssimo reconhecido ao vosso trabalho!

Resposta:

É um uso dialetal de Portugal, sobretudo das regiões centro-norte (Beiras) e norte (Minho e Trás-os-Montes). Trata-se de um fenómeno de epêntese (inserção intervocálica), para desfazer o hiato entre dois aa, que são vogais centrais. Na comunicação informal, é bastante corrente, mas, formalmente, tende a ser evitado.

Sobre a inserção da vogal [i] no contexto em questão, transcreve-se da Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian, 2013-2020, pp. 92/93) a seguinte passagem:

«A[os] traços fonéticos [diferenciadores dos dialetos de Portugal] propostos por L[indley] Cintra pode acrecentar-se um outro que [...] também configura a divisão do país apenas em duas áreas e também corresponde ao sentimento que os falantes têm da pertença a um Norte ou a um Sul linguístico, ou seja, quem o ostenta é do Norte, quem não o apresenta é do Sul, ou, mais propriamente, quem o ostenta indubitavelmente não é do Sul. Trata-se de um traço de fonética sintática que consiste, usando também um registo coloquial, na "pronúncia a iágua para a água", ou seja, como o exemplo (1) mostra, na inserção de uma semivogal para desfazer o hiato existente entre duas vogais centrais, a primeira átona [ɐ] (1a,b) ou tónica [á] (1c,d) e a segunda tónica [á], pertencentes a vocábulos diferentes. Trata-se da oposição entre a realização com semivogal própria do Norte e do centro e a realização sem inserção de semivogal, própria do português-padrão e do Sul.

(1) a. [

Pergunta:

Existe alguma diferença no significado de provocativo, provocatório e provocante?

Grata

Resposta:

A consulta de alguns dicionários gerais – por exemplo, o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa ou o Dicionário Priberam – pode levar a pensar que provocativo, provocatório e provocante são sinónimos e mutuamente substituíveis. Contudo, o exame mais atento de outros dicionários e de um corpus textual revela diferenças entre os três adjetivos.

Provocativo e provocatório são sinónimos quase exatos, uma vez que ambos se aplicam àquilo «que contém provocação» (Dicionário Houaiss). Contudo, provocante, que igualmente se interpreta nesse sentido, ocorre correntemente com conotação sexual, relativo a quem «incita a um relacionamento sexual» e que é «tentador, convidativo, atraente» (ibidem). O Corpus do Português (CP) faculta exemplos de provocante usados nesta aceção:

(1) «Fora precisamente naquela mesma cidade, que agora a esperava em festa, invejando-a, imitando-a, que Quirino a conhecera, a bem dizer há dois dias, quando ela passeava no jardim com uns sujeitos viciados e endinheirados. Não se sabia donde viera. As vezes acompanhava-a uma velhota mirrada, vestida de luto, de olhos mansos, parecendo pedir desculpa a toda a gente de ir ali com uma rapariga bela e provocante» (Fernando Namora, Minas de San Francisco, 1946).

Acrescente-se a este conjunto a forma provocador, que se emprega como adjetivo nas aceções ...