Carlos Marinheiro - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carlos Marinheiro
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Carlos Marinheiro (1941–2022). Bacharel em Jornalismo pela Escola Superior de Meios de Comunicação Social de Lisboa e ex-coordenador executivo do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa. Colaborou em vários jornais, sobretudo com textos de análise política e social, nomeadamente no Expresso, Público, Notícias da Amadora e no extinto Comércio do Funchal, influente órgão da Imprensa até ao 25 de Abril.

 
Textos publicados pelo autor

Pergunta:

Qual a diferença, se é que existe, entre os verbetes "sub-repção" e "ob-repção", e suas variantes "sub-repticiamente" e "ob-repticiamente"? Quando deve ser usado um, e quando outro? São sinônimos?

Resposta:

A palavra sub-repção é «ato de conseguir uma graça, favor, privilégio etc., escondendo intencionalmente qualquer fato ou circunstância que, sendo expressos, constituiriam razão suficiente para a não-concessão» ou «ato de conseguir uma graça ou um benefício por meios sub-reptícios ou usando de mentiras» (exemplo: «só conseguiu o benefício por s[ub-repção]»); trata-se ainda de «ato ou efeito de furtar; subtração, furto».

Este substantivo (nome) vem do «lat[im] subreptĭo,ōnis, "velhacada, logro, dolo, fraude, engano, furto; ato de entrar às escondidas"; (...); f[orma] hist[órica] 1573 sorreyçam, 1720 subrepçaõ, 1789 subrepção».

Quanto a ob-repção, significa «ação de ocultar a verdade, de dissimular um fato para obter qualquer coisa»; deriva de «obreptĭo,ōnis, "ação de surpreender, surpresa", do rad[ical] de obreptum, sup[i]n[o] de obrēpo,is,ĕpsi, eptum,epĕre, "introduzir-se às escondidas, furtivamente, insinuar-se, chegar-se pouco a pouco a alguém; enganar, lograr, iludir"; (...); f[orma] hist[órica] sXV orreição, 1573 obreyçã, 1720 obrepção».

O advérbio sub-repticiamente quer dizer «de modo sub-reptício, furtivo ou ilícito»; por sua vez, ob-repticiamente significa «de um modo ob-reptício»; e este quer dizer «que foi obtido por ob-repção» e «Em que se usou astúcia, ardil, com o fim de obter algo».

Note-se que o novo acordo ortográfico (AO 1990) mantém o hífen nas palavras com os prefixos sub- e ob-.

Em conclusão, a sinonímia entre estas palavras é not...

Pergunta:

Será «coevo "a"», ou «coevo "de"»?

Resposta:

O Dicionário da Língua Portuguesa 2008, da Porto Editora, regista o adjectivo e nome (substantivo) coevo (do lat[im] coaevu-) e diz que significa «que ou aquele que tem a mesma idade; contemporâneo».

Também o Dicionário Eletrônico Houaiss acolhe coevo, mas remete-nos para coetâneo (a forma preferível, no Brasil). Em relação a este vocábulo, diz que é «que ou o que é da mesma idade; coevo», exemplificando com a frase «os c[oetâneos] de Machado de Assis»; significa, ainda, «que ou o que é da mesma época; contemporâneo», a exemplo de «os c[oetâneos] do Modernismo não compreenderam as ideias do movimento» ou «um reino c[oetâneo] do Baixo Império».

Assim, será «coevo de...» ou «contemporâneo de...», como, por exemplo, em «eles foram coevos/contemporâneos dos nossos avós».

Pergunta:

No jornal da RTP 1, li uma legenda segundo a qual os habitantes de determinada aldeia «pastavam o gado». Ora, eu julgo que «o gado pasta», mas «os pastores apascentam o gado». Consultando os dicionários Priberam e Infopédia, verifico que o verbo pode ser transitivo ou intransitivo. Transitivo no sentido de que quem pasta, pasta alguma coisa, sendo que pastar significa «comer a erva ou o pasto de». Pode ser intransitivo se alguém «estiver a pastar», mas no sentido de «estar a não fazer nada», ou «a passar o tempo».

De um modo grosseiro, parece-me que «pastar o gado» significa «comer o gado». Acontece que, sendo a RTP um serviço público, muito me custa a crer que cometa erros de linguagem. Ou seja: eu é que estou errado no meu raciocínio.

Poderiam elucidar-me?

Obrigado.

Resposta:

Sim, tem toda a razão; o «gado pastava», e «os pastores apascentavam o gado».

Na realidade, o verbo pastar («do lat[im] pastu-, "pasto; pastagem"») quer dizer «comer a erva ou o pasto de»; significa ainda, coloquialmente, em contexto diferente, «estar sem fazer nada» ou «não progredir». Por sua vez, o verbo apascentar («do lat[im] *appascentāre, "apascentar"») é que significa «dar pasto a (gado)» e «levar ao pasto; pastorear»; em sentido figurado, quer dizer «doutrinar».

[Fonte: Dicionário da Língua Portuguesa 2008, da Porto Editora]

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem se as fases da Lua devem ser escritas com maiúsculas iniciais, em especial as compostas pela palavra lua, uma vez que esta, sim, deve ser grafada com maiúscula quando se refere ao satélite natural da Terra.

Obrigada desde já pela ajuda.

Resposta:

Sim, tem razão relativamente ao satélite da Terra, mas a expressão lua cheia, por exemplo, deve ser grafada com iniciais minúsculas; e também lua nova.

Neste caso, a inicial maiúscula utiliza-se apenas quando se trata do «planeta que gira em torno da Terra». Assim, todas as fases da Lua (lua cheia, lua nova, quarto crescente e quarto minguante) se escrevem com iniciais minúsculas, tal como está nos dicionários.

Por exemplo, o Dicionário da Língua Portuguesa 2008, da Porto Editora, regista lua cheia e diz que é «fase da Lua em que a Terra se encontra entre o Sol e a Lua e esta nos mostra a face iluminada; plenilúnio»; acolhe lua nova, considerando que se trata de «fase da Lua em que esta se encontra entre o Sol e a Terra, com a face não iluminada voltada para a Terra; novilúnio»; regista quarto crescente, dizendo que é «fase da Lua nos sete dias que precedem a Lua cheia»; e acolhe quarto minguante, definindo-o como «fase da Lua nos sete dias seguintes à Lua cheia».

Provavelmente devido a gralha, o dicionário usa a maiúscula (Lua cheia) nas definições de quarto crescente e quarto minguante, ao contrário do que aparece na entrada lua cheia.

Pergunta:

Quem souber, que me esclareça sobre o significado das seguintes palavras para as quais não encontrei significado no dicionário:

1) "Pervivências"?

2) "Ancilar"?

3) "Écfrase"?

4) "Astroso"?

5) "Codiciosa"?

6) "Cerceta"?

Outro pedido, desta feita de ordem bibliográfica: de há muito sinto que os dois dicionários que adquiri são manifestamente insuficientes para dar resposta a palavras menos comuns. Aceito sugestões dum bom dicionário.

Obrigado.

Resposta:

Se tivesse feito a pesquisa, como insistentemente vimos pedindo, tinha esclarecido metade das suas dúvidas.

1 – Pervivência

2 – Ancilar

3 – Écfrase

4 – Astroso é (uso informal, diacronismo antigo) «supostamente nascido sob má influência de um astro» e, por extensão de sentido, «vitimado por infelicidade; desditoso, desventurado» ou «que revela infelicidade; soturno, sinistro, lúgubre». Este adjectivo vem do «lat[im] astrōsus,a,um, "nascido sob a influência de má estrela, que tem má sina, lunático"; mantém sentido pej[orativo] no port[uguês] "infeliz, desgraçado, desastrado"; (...) ; f[orma] hist[órica] sXIV astrosso, sXIV stroso, sXV estroso».

5 – Codicioso (adjectivo) «diz-se do touro que procura com insistência o vulto do toureiro».

6 – Cerceta (termo da ornitologia) é o mesmo que marreco, a forma preferível; por sua vez, este é «nome extensivo a umas aves palmípedes da família dos Anatídeos, muito frequentes em Portugal durante o Inverno, também designadas por marreca, marrequinho, parreco, etc.».

Em relação a dicionários, veja, por favor, a resposta anterior Sobre palavras não registadas em dicionários.

[Fontes: Dicionário Eletrônico Houaiss, Aulete Digital e Dicionário da Língua Portuguesa...