Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No Brasil, para mencionar a decisão de uma corte de justiça, diz-se «O Tribunal entende pela inexistência de x», «O Tribunal entendeu pela ocorrência de y».

Gostaria de saber se essa regência do verbo entender está correta.

Resposta:

Não encontramos registo desta construção nem em dicionários generalistas1 nem em dicionários de verbos2. Não obstante, ela é bastante comum em textos de natureza jurídica, tanto no Brasil como em Portugal, como se pode comprovar pelos exemplos de registos devolvidos por uma pesquisa na internet:

(1) «[…] verifica-se que O Tribunal entende pela sua prescritibilidade […]» (aqui)

(2) «Nesses casos, o tribunal entende pela configuração de hipótese de dano moral in re ipsa […]» (aqui)

(3) «Geralmente, o Tribunal entende pela prorrogação do stay por mais 180 dias […]» (aqui)

(4) «Nesses casos, o tribunal entende pela configuração de hipótese de dano moral […]» (aqui)

O verbo entender, nestes casos, é usado com o sentido de «decidir entre várias possibilidades, após uma escolha ajuizada», e rege a preposição por. Uma vez que não há registo desta construção nos usos comuns, mais ou menos formais, estaremos perante um caso de jargão sintático, restrito a um uso sociolinguístico enquadrado na área do discurso jurídico.

Disponha sempre!

Pergunta:

Eu gostaria de saber quais são os tipos de orações coordenadas copulativas que existem e quais são as características de cada uma.

Desde já, muito obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista sintático, podemos considerar dois tipos de orações coordenadas copulativas: as sindéticas e as assindéticas. As primeiras são orações conectadas por uma conjunção copulativa, como em (1):

(1) «O João foi ao parque e a Rita ficou em casa.»

As segundas são orações cuja conexão não é sinalizada por uma conjunção, sendo o valor desta conexão inferido, como acontece em (2):

(2) «O João foi ao parque, a Rita ficou em casa.»

Do ponto de vista semântico, estas orações têm um valor aditivo, considerado o seu significado básico, uma vez que adicionam propriedades, situações ou outros.

Não obstante, as orações coordenadas copulativas introduzidas pela conjunção e podem assumir ainda outros valores1:

(i) valor adversativo:

      (2) «Estudou imenso e teve má nota.» (= mas)

(ii) valor conclusivo:

      (3) «Já terminei o estudo e vou descansar.» (= por isso)

(iii) valor condicional:

      (4) «Vai a essa aula e ficas a saber a matéria.» (= se)

(iv) valor de sequência temporal:

      (5) «Levanta-se cedo e começa o estudo.» (= depois disso)

Disponha sempre!

 

1. Para um maior aprofundamento, cf. Matos e Raposo in Raposo et al.,

Pergunta:

Gostaria de saber se é possível aplicar a estrutura do conto tradicional ao conto "A Aia", de Eça de Queirós.

Assim, qual será o momento da resolução: a morte do tio bastardo ou o suicídio da aia, coincidindo, neste último caso, os momentos da resolução e da situação final?

Muito obrigado!

Resposta:

Há diversas propostas de análise da estrutura do conto. Entre elas, a mais divulgada e estudada será a que consta do trabalho de Vladimir Propp presente na obra Morfologia do Conto.

Desta proposta tradicional não consta a fase da resolução. Vamos encontrar esta classificação, por exemplo em Jean-Michel Adam, em Les Textes – Types et Prototypes. O autor descreve a sequência narrativa como sendo composta pelo seguinte conjunto de macroproposições, sendo que nem todas são obrigatórias1:

  • Situação inicial
  • Nó desencadeador da ação (complicação)
  • Re-ação e/ou avaliação
  • Desenlace (resolução)
  • Situação final
  • Encerramento ou avaliação final (moralidade)

De acordo com a proposta de Adam, existe uma relação direta entre a situação inicial e a situação final e entre a complicação e a resolução. Assim, a resolução é o momento em que se encontra a solução para o problema criado na complicação.

Se pensarmos no conto A Aia, de Eça de Queirós, veremos que a fase da complicação coincide com a morte do rei que vem abrir a possibilidade de o trono ser ocupado (usurpado) pelo seu irmão bastardo, o que, consequentemente, coloca em perigo de vida o príncipe. Daqui advém um conjunto de ações que se resolvem com a morte do irmão bastardo e com a troca dos bebés pela aia, sendo esta a fase da resolução.

O momento do suicídio da aia pode ser encarado como a situação...

<i>Sob</i> ou <i>sobre</i>?
Duas preposições antónimas

Qual a opção correta: «Alguém está "sob" suspeição» ou «Alguém está "sobre" suspeição»? A resposta é dada no apontamento da professora Carla Marques

(Incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 12 de novembro de 2023)

Pergunta:

Na sequência da elaboração de uma ata, houve uma correção e substitui-se tinham por têm no seguinte enunciado:

«O presidente da reunião referiu que as atribuições tinham / têm de ser muito criteriosas.»

Gostaria de saber qual a forma mais correta.

Obrigada.

Antecipadamente grata.

Resposta:

As formas tinham e têm, no respetivo contexto, podem expressar valores diferentes, estando ambas corretas.

O pretérito imperfeito do indicativo (tinham) descreve uma situação localizada num intervalo de tempo passado, apresentada de forma não concluída. Assim, no caso da frase transcrita em (1), aponta para um estado de coisas que se remete para um intervalo de tempo passado, ou seja, com a frase indica-se que o presidente afirmou que, no passado, as atribuições deveriam ter a característica de serem criteriosas:

(1) «O presidente da reunião referiu que as atribuições tinham de ser muito criteriosas.»

A seleção deste tempo verbal é compatível também com o exercício de transposição do discurso direto para o discurso indireto. Considera-se, nesta linha, que a frase em discurso direto tenha sido a que se apresenta em (2):

(2) « As atribuições têm de ser muito criteriosas.»

Podemos estar perante uma transposição mais livre do discurso direto, na qual se recorre ao presente, como se observa em (3):

(3) «O presidente da reunião referiu que as atribuições têm de ser muito criteriosas.»

Esta opção, embora em sentido estrito não siga as regras de transposição para o discurso indireto, é compatível com o uso do presente do indicativo com valor genérico. Com este valor, o presente contribui para a apresentação de características típicas de uma dada realidade. Ora, no caso da frase em apreço, o uso do presente poderá veicular a ideia de que a aplicação criteriosa das atribuições deverá acontecer em qualquer intervalo temporal (passado, presente ou futuro).

Disponha sempre!