A diferença entre gramáticos e linguistas na sua relação com a língua é o tema central deste apontamento da professora Carla Marques (colaboração no programa Páginas de Português, na Antena 2).
Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.
A diferença entre gramáticos e linguistas na sua relação com a língua é o tema central deste apontamento da professora Carla Marques (colaboração no programa Páginas de Português, na Antena 2).
Na frase «Ora, nesta noite, vamos acabar com o estado a que chegámos», a modalidade evidenciada será a deôntica (valor de obrigação) ou a epistémica (valor de certeza)?
A minha dúvida prende-se com o facto de não haver utilização do modo imperativo ou de um verbo modalizante, como dever, para ser considerada deôntica. Contudo, a frase parece implicar uma intenção de exortar à ação.
Agradeço, desde já, a vossa ajuda no esclarecimento desta dúvida.
Sem um contexto que esclareça devidamente a intenção do locutor, é difícil apresentar uma resposta única.
Poderemos, deste modo, considerar dois possíveis contextos que motivarão duas modalidades distintas:
(i) o locutor poderá ter a intenção de afirmar que é sua convicção que nessa noite todos contribuirão para alterar o estado de coisas em que se encontram. Nesse caso, o enunciado evidenciará a modalidade epistémica com valor de certeza;
(ii) o locutor poderá ter a intenção de estimular uma ação por parte dos seus interlocutores ou mesmo de lhes dar uma ordem. Se a situação for esta, então o enunciado poderá estar associado à modalidade deôntica com valor de ordem.
Disponha sempre!
Gostaria de saber se as palavras confiança e fé podem ser sinónimos.
Qual o significado e origem de ambas, qual a etimologia das palavras?
Obrigada.
As palavras confiança e fé podem ter significados próximos quando usadas com o valor de «crença na probidade moral, na sinceridade afectiva, nas qualidades profissionais» ou de «crença de que algo não falhará, é bem feito ou forte o suficiente para cumprir a sua função» (Dicionário Houaiss). No entanto, a palavra fé pode ser usada em contextos muito particulares, como o religioso-filosófico com o significado de «crença religiosa» ou, no catolicismo, «a primeira das três virtudes teologais» (Idem)
Em termos etimológicos, o substantivo confiança forma-se a partir do verbo confiar, que advém da forma latina confidāre. O substantivo fé tem origem no latim fides.
Disponha sempre!
«A mãe bateu na filha porque estava bêbeda»
Observem o período acima, dizem que ele é ambíguo, pois na proposição não há como dizer quem estava bêbeda: a mãe ou a filha. Contudo, a meu ver não existe ambiguidade pelos motivos que abaixo apresento. Para fins didáticos, separei o período acima em três partes, a saber:
1º Parte: a mãe bateu na filha. Temos um sujeito agente simples "mãe", um verbo transitivo indireto "bateu" e um objeto indireto "filha". Esta oração é clara e não há ambiguidade nela.
2ª Parte: estava bêbeda. Na forma em que o verbo "estava" se apresenta, ele esconde dois sujeitos, o primeiro é o pronome do caso reto "eu" e o segundo é o também pronome do caso reto "ela", portanto, é aqui que está a ambiguidade. Esse verbo é de ligação e ele diz duas coisas ao mesmo tempo, veja: eu estava bêbeda; ela estava bêbeda.
3ª Parte: porque. Essa palavra "porque" é um conectivo cuja finalidade é fazer uma subordinação, por este método, as propriedades da oração subordinada passam para a oração principal e é a partir daqui que as coisas começam a ficar mais claras. Realizando o translado temos que, por meio do conectivo, as propriedades da oração subordinada transferem-se para a oração principal. Desse modo, o sujeito agente oculto “eu” refere-se ao sujeito agente expresso “mãe” da oração principal. Todavia, a mesma lógica não pode ser aplicada ao sujeito agente oculto “ela” da oração subordinada, porque não há outro sujeito agente expresso na oração principal na terceira pessoa do singular.
Concluímos então, que o adjetivo “bêbeda” de modo algum manda seta para “filha”, posto tratar-se de um objeto indireto e não sujeito oculto do verbo “estava”. Ademais, considerando-se "porque estava" uma locução adverbial, tal locução manda seta para o verbo "bateu", então teremos que "a mãe bateu porque estava bêbeda". Semanticamente temos uma mulher praticando um ato influenciada pelo uso de entorpecente. Portanto, a filha é ...
Sem outro contexto que auxilie a interpretação, a identificação do sujeito da oração subordinada é, de facto, ambígua. Este facto acontece devido aos processos de coesão existentes na língua, os quais permitem recuperar sintagmas não verbalizados.
Ora vejamos, a oração subordinante «A mãe bateu na filha» apresenta dois referentes extralinguísticos: «a mãe» e «a filha». Por seu turno, o verbo da oração subordinante, «porque estava bêbada», tem um sujeito nulo, ou seja, o sujeito não está verbalizado. Em língua portuguesa, quando este fenómeno ocorre, há duas possibilidades de reconstruir o referente do sujeito:
(i) o contexto comunicativo: os falantes que comunicam entre si sabem, por exemplo, que se fala de uma filha que se encontrava ébria. Logo, foi este estado que motivou a ação da mãe;
(ii) o cotexto (os elementos linguísticos que antecedem a frase em questão): pela leitura dos segmentos textuais anteriores, os leitores estavam já na posse de informação que lhes permitiu, por exemplo, identificar a filha como o sujeito que se encontrava bêbedo;
Não se verificando nenhuma destas possibilidades, ou seja, se a frase for apresentada de forma isolada, a ambiguidade será gerada devido ao processo de coesão anafórica. Na estrutura textual, quando existe uma elipse (informação que não foi verbalizada) ou quando se recorre a um elemento que aponta para outros no texto (como um pronome), os interlocutores procuram reconstituir o significado destes elementos por meio de processos anafóricos, ou seja, procuram nos elementos textuais anteriores os referentes para os quais os elementos vazios de significação poderão estar a apontar. Assim, nas frases (1), com elipse do sujeito (assinalada por [-]), ou (2), com um pronome, o processo de recuperação do sujeito leva a que se identifiquem dois possíveis referentes, «a mãe» ou «a filha»:
Qual a frase mais correta?
«Tenho suficiente para nós dois» ou «Tenho suficiente para nós os dois»?
Obrigada.
Ambas as formas são aceitáveis.
A forma usada mais correntemente é a que inclui o determinante artigo definido antes do quantificador numeral:
(1) «Tenho suficiente para nós os dois.»
Não obstante, para muitos falantes é aceitável a construção sem o artigo definido:
(2) «Tenho suficiente para nós dois.»
O sintagma composto por artigo definido seguido de numeral pode, em determinadas construções, surgir depois do verbo como em (3) e (4)1:
(3) «Nós os dois vamos concluir o trabalho.»
(4) «Nós vamos os dois concluir o trabalho.»
Disponha sempre!
1. Para mais informações, cf. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 916-918.
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