Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Oiço muitas vezes a expressão «Mau era, se isso fosse assim».

Para mim devia ser «Mal seria, se isso fosse assim».

Gostava que me tirassem esta dúvida, porque é uma coisa que se ouve muito e na minha opinião mal dito. Mas se calhar estou enganada.

Obrigada pela vossa atenção.

Resposta:

Sem outro contexto, expressão preferível será a que recorre ao uso do adjetivo mau. Este adjetivo poderá significar «que é nocivo, prejudicial», «que é triste, funesto» ou «que não satisfaz, que é insuficiente»1. Neste âmbito, com o uso do adjetivo mau, o locutor teria a intenção de afirmar equivalente ao que se apresenta em (1):

(1) «Se isto fosse assim era prejudicial / triste / insatisfatório.»

Podemos, todavia, encontrar construções como a que se apresenta em (2) e na qual se recorre ao advérbio mal:

(2) «Ainda mal era dia e ele já estava a trabalhar.»

Nesta construção, mal é usado com o valor de «de modo incompleto, insuficiente», ou seja, afirma-se que ainda não era totalmente dia.

Disponha sempre!

 

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

«Felizmente que ele chegou»
O complemento do advérbio

Partindo da frase «Felizmente que ele chegou», a professora Carla Marques analisa a natureza do constituinte que acompanha o advérbio felizmente e da palavra que o introduz.

(Incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 19 de novembro de 2023)

Pergunta:

Qual a diferença (se existe) entre incómodo e inconveniente?

Deveria dizer «Lamento muito o incómodo causado» ou «Lamento muito o inconveniente causado»?

Obrigada.

Resposta:

As duas frases são possíveis, sendo, no contexto apresentado, equivalentes.

Nas frases em apreço, incómodo e inconveniente são usados como nomes comuns. Incómodo pode ser usado com diversos significados, entre os quais se encontra a noção de «trabalho; canseira; maçada; aborrecimento»1. Já o nome inconveniente pode ser usado com o valor de «desvantagem; contratempo; transtorno»1. Assim, a diferença entre as palavras é, de facto, muito fina: inconveniente aponta sobretudo para algo que não era esperado e que, por essa razão, trouxe algum transtorno à pessoa. Já incómodo pode implicar que a situação exigiu algum tipo de esforço à pessoa envolvida. Em muitas situações, as palavras acabarão por ser usadas sem que se considerem estas distinções.

Disponha sempre!

 

1. Infopédia em linha.

Pergunta:

Gostaria de saber se nesta frase, tirada do contexto, «O Ministro foi recebido pelo Presidente a seu pedido», este seu não será ambíguo, no sentido em que tanto se pode referir ao «Ministro» como ao «Presidente»?

Nesta outra formulação, «O Ministro foi recebido a seu pedido pelo Presidente», será que desaparece a ambiguidade?

Muito obrigado pelo esclarecimento.

Resposta:

Com efeito, a frase transcrita em (1) é ambígua, uma vez que o determinante possessivo seu pode remeter para dois antecedentes: «o ministro» ou «o Presidente»:

(1) «O ministro foi recebido pelo Presidente a seu pedido.»

Esta ambiguidade leva a que não fique clara a identificação do responsável pelo pedido.

Não obstante, refira-se que, em português, o uso do possessivo seu normalmente favorece a interpretação de que o referente é o sujeito da oração principal1. Desta forma, no caso da frase apresentada em (1), a interpretação mais favorável será a de que o referente de seu é «o ministro».

De qualquer modo, para evitar ambiguidades, o falante tem à sua disposição várias possibilidades que contribuem para a desambiguação referencial. Uma delas é a colocação do sintagma que integra o possessivo mais perto do referente, tal como sugere o consulente:

(2) «O ministro foi recebido a seu pedido pelo Presidente.»

ou

(2a) «A seu pedido, o ministro foi recebido pelo Presidente.»

É também possível substituir o possessivo por um demonstrativo que introduza maior clareza na relação anafórica. Veja-se a diferença resultante do uso de este ou aquele:

(3) «O ministro foi recebido pelo Presidente a pedido daquele.»

(4) «O ministro foi recebido pelo Presidente a pedido deste.»

Os demonstrativos este e aquele diferenciam-se pelo facto de este apontar para um referente mais próximo e aquele para um mais distante. Assim, na frase (3), aquele aponta para «o ministro», ao passo que, na frase (4), este

Pergunta:

Em frases como «Está um papel no chão», existe um sujeito ou este é indeterminado/nulo?

Suponho que esta frase até possa ser invertida para «Um papel está no chão», mas por outro lado, uma frase como «Está um dia bom» não permite tão naturalmente a modificação para «Um dia está bom».

Obrigado de antemão pelo esclarecimento!

Resposta:

As frases apresentadas enquadram-se no âmbito das construções copulativas. Estas frases caracterizam-se por dizerem algo sobre o sujeito, ao qual se associa uma situação descrita pelo predicativo do sujeito por intermédio de um verbo copulativo (ser ou estar, tipicamente).

A ordem canónica das frases copulativas é «sujeito + verbo copulativo + predicativo do sujeito». Não obstante, é possível alterar esta ordem para uma frase quer copulativa invertida («predicativo do sujeito + verbo copulativo + sujeito») quer para situações como «verbo copulativo + sujeito + predicativo do sujeito».

Esta última possibilidade está presente na frase transcrita em (1):

(1) «Está um papel no chão.»

A inversão da ordem dos elementos da frase tem lugar, por exemplo, em situações dêiticas, em frases que, na oralidade, acompanham o gesto de apontar para algo (ou em que esta identificação é feita mentalmente)1:

(2) «Está um gato na lareira.»

(3) «Está uma manifestação à porta da escola.»

O facto de «um papel» ser sujeito na fase (1) pode ser comprovado pelo fenómeno de concordância, pois caso se recorra ao plural o verbo flexiona, concordando com o sujeito, como se observa em (4):

(4) «Estão vários papéis no chão.»

No caso da frase apresentada em (5), estamos também perante um uso dêitico relacionado com o momento de fala:

(5) «Está um dia bom.»

Na frase, não existe um constituinte que funcione como sujeito da predicação, mas, em casos desta natureza, é comum a interpretação de que o locutor se refere ao «agora» (momento em que fala) ou ao «hoje» (intervalo temporal em que fala):

(5a) «[Hoje] está um dia bom.»

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