Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

1) O número de mortes subiu para quarenta e dois.

2) O número de mortes subiu para quarenta e duas.

Qual das frases anteriores está gramaticalmente correta? Porquê?

Agradeço antecipadamente o auxílio.

Resposta:

Ambas as frases são possíveis.

A questão colocada coloca o problema da concordância de um numeral com um sintagma nominal complexo composto pela expressão de quantificação «o número de», que é o elemento nuclear, seguida do nome «mortes».

Ora, neste caso, a concordância pode ocorrer com o núcleo número, o que determina a adoção do singular masculino:

(1) «O número de mortes subiu para quarenta e dois.»

Também pode ocorrer com o nome mortes, o que determina o plural feminino:

(2) «O número de mortes subiu para quarenta e duas.»

Esta segunda opção será mais comum, e talvez a preferível, porque a interpretação mais natural será a de que existe uma elisão na frase, que, na sua forma completa, corresponderia a (3), cujo uso se evita pela repetição da palavra:

(3) «O número de mortes subiu para quarenta e duas mortes.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «foi péssimo quando o casal se xingou na frente de todos», a oração «quando o casal se xingou na frente de todos» é oração subordinada substantiva subjetiva ou oração adverbial temporal?

Obrigado.

Resposta:

As orações completivas são tipicamente introduzidas pelo complementador que:

(1) «Eu sei que ele já chegou.»

Não obstante, é possível converter frases interrogativas e exclamativas em orações completivas, como se verifica em (2) e (3):

(2) «Quando chega a Rita?» - «Ele perguntou quando chega a Rita.»

(3) «Como ela está fantástica!» - «Já me disseram como ela está fantástica.»

Em situações desta natureza, as orações completivas podem ser introduzidas por como, quando, quanto, se.

Na frase apresentada pelo consulente não estamos perante um caso de frase exclamativa ou interrogativa, pois nela não se identificam valores como a dúvida, a inquirição ou o espanto. Todavia, o sintagma «quando o casal se xingou na frente de todos» desempenha a função de sujeito, como se observa pela possibilidade de substituição pelo pronome isto:

(4) «Isto foi péssimo.»

Poderemos entender a oração em análise como equivalente à que se destaca em (5), o que facilita a compreensão do seu funcionamento como sujeito da frase:

(5) «O momento em que casal se xingou na frente de todos foi péssimo.»

Esta frase pode enquadrar-se na visão de Veloso1, que propõe classificar quando como um constituinte relativo que introduz uma oração relativa cujo antecedente é geralmente implícito. Esta interpretação permite considerar que a função de sujeito é desempenhada por um sintagma nominal cujo núcleo está implícito. 

Diga-se ainda que este será um caso marginal e que o que aqui se apresenta é uma interpretação possível deste fenómeno que não...

Pergunta:

«Saiba como proteger-se e proteger a sua casa», ou «Saiba como se proteger e à sua casa»?

Diria que a correta é a primeira, mas não estou certa.

Poderia ainda explicar a razão?

Obrigada

Resposta:

As duas possibilidades são aceitáveis.

A colocação do pronome clítico antes ou depois do verbo, em ênclise ou próclise, respetivamente, está relacionada com fatores sintáticos. A posição enclítica corresponde à colocação geral do pronome, ou seja, o pronome é colocado por defeito depois do verbo, ao qual se liga por meio de hífen:

(1) «O João escolheu-o para segurança.»

(2) «O João telefonou-lhe a comunicar a decisão.»

Não obstante, há contextos frásicos que atraem os pronomes para antes do verbo. Esta opção pode ficar a dever-se à presença dos designados atratores de próclise. Entre eles, podemos destacar os seguintes:

(i) advérbio de negação não;

(ii) quantificadores;

(iii) advérbios como bem, mal, ainda, , talvez, apenas, também;

(iv) frases interrogativas ou exclamativas;

(v) conjunções subordinativas.

No caso da frase apresentada, estamos perante uma situação de oração introduzida pelo advérbio relativo ou interrogativo como. Neste caso em análise, trata-se de uma frase que inclui uma subordinada com verbo no infinitivo, o que leva a que tanto seja aceitável a ênclise como a próclise, de acordo com o exemplifica Matos (in Raposo et al., 2013):

(3) «Não sei como lhe agradecer.»

(4) «eu é que não sei como retribuir-lhe a simpatia, senhor tenente-coronel» (CRPC, L. Antunes, Fado)1

Pergunta:

Vi um vídeo promocional onde eram utilizadas aspas para uma citação totalmente escrita em maiúsculas.

Como «AMOR É FOGO QUE ARDE SEM SE VER».

Pareceu-me, intuitivamente, mal escrito mas pergunto se estará efetivamente incorreto, ou será apenas uma questão de estilo?

Muito obrigada.

Resposta:

Tudo depende do contexto em que as maiúsculas são usadas.

Num texto comum que se paute pelas regras da escrita normativa, as maiúsculas são usadas apenas em início de frase ou em palavras cuja grafia com maiúscula está pré-determinada (cf. o disposto no Acordo Ortográfico de 90). Neste âmbito, as maiúsculas integrais estão previstas, por exemplo, para a grafia das siglas (como ONU).

No entanto, há contextos específicos que poderão justificar o recurso às maiúsculas, o que acontece, por exemplo, com os títulos de obras literárias (OS LUSÍADAS). Na publicidade, os usos expressivos justificam também muitas vezes o desrespeito da norma. Tal fica claro no uso expressivo da pontuação.

O uso das maiúsculas é, no texto publicitário, um recurso muito frequente, pois permite destacar uma ideia ou sublinhar a ação que se pretende desencadear no público-alvo. Nesse contexto, é lícito o uso de maiúsculas no verso do soneto camoniano. A apresentação das aspas é também justificada, uma vez que estas assinalam texto citado.

Por fim, recorde-se que, em determinados ambientes, o uso de maiúsculas integrais pode ter significados específicos. Na Internet, por exemplo, num e-mail, comentário ou num blogue, o recurso às maiúsculas é entendido como uma forma de sinalizar o ato de gritar ou de demonstrar que se está aborrecido com algo, pelo que será de evitar se as intenções não forem estas.

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual das opções abaixo está gramaticalmente correta? Observando-se a conjugação dos verbos olhar e estancar:

1. «Até quando cultivaríamos as chagas do passado, mantendo-as abertas e sangrentas? Apontando dedos e ferindo outros feridos, em vez de pararmos por um instante para nos olharmos e estancarmos as nossas próprias chagas.»

Ou

2. «Até quando cultivaríamos as chagas do passado, mantendo-as abertas e sangrentas? Apontando dedos e ferindo outros feridos, em vez de pararmos por um instante para nos olhar e estancar as nossas próprias chagas.»

Há alguma regra pela qual me possa guiar para este tipo de dúvida?

Muito obrigada.

Resposta:

As duas opções são aceitáveis, embora a opção pelo infinitivo flexionado possa ser preferível por razões estéticas.

A dúvida apresentada convoca a questão do emprego do infinitivo pessoal ou flexionado face ao do infinitivo impessoal ou não flexionado. Neste âmbito, não poderemos considerar que existem regras inequívocas, mas antes tendências, tal como advertem Cunha e Cintra1.

Assim, de uma forma geral, poderemos referir que o uso do infinitivo pessoal está associado ao facto de a oração infinitiva ter um sujeito próprio, diferente do sujeito da oração subordinante. Este sujeito poderá estar expresso (1) ou ser um pronome nulo (2):

(1) «O motorista parou para os turistas verem a paisagem.»

(2) «O motorista parou para [-]2 verem a paisagem.»

O infinito impessoal usa-se quando o sujeito da oração infinitiva é o mesmo do da oração subordinante, pelo que o verbo não flexiona em pessoa e número:

(3) «O motorista decidiu [ele] ver a paisagem.»

No caso apresentado pela consulente, o segmento de frase em questão inclui uma oração final infinita, que se sublinha:

(4) «[…] pararmos por um instante para nos olhar(mos) e estancar(mos) as nossas próprias chagas»

Nestas situações, tal como acontece na regra geral, quando o sujeito da oração subordinada é diferente do sujeito da oração subordinante, usa-se o infinitivo flexionado, o que se verifica em (5) onde se destacam os dois sujeitos:

(5) «O jovem parou para [nós] nos olharmos e estancarmos as nossas próprias chagas.»

Quando os sujeitos das duas orações são iguais, pode optar-se pel...