Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em frases como «Está um papel no chão», existe um sujeito ou este é indeterminado/nulo?

Suponho que esta frase até possa ser invertida para «Um papel está no chão», mas por outro lado, uma frase como «Está um dia bom» não permite tão naturalmente a modificação para «Um dia está bom».

Obrigado de antemão pelo esclarecimento!

Resposta:

As frases apresentadas enquadram-se no âmbito das construções copulativas. Estas frases caracterizam-se por dizerem algo sobre o sujeito, ao qual se associa uma situação descrita pelo predicativo do sujeito por intermédio de um verbo copulativo (ser ou estar, tipicamente).

A ordem canónica das frases copulativas é «sujeito + verbo copulativo + predicativo do sujeito». Não obstante, é possível alterar esta ordem para uma frase quer copulativa invertida («predicativo do sujeito + verbo copulativo + sujeito») quer para situações como «verbo copulativo + sujeito + predicativo do sujeito».

Esta última possibilidade está presente na frase transcrita em (1):

(1) «Está um papel no chão.»

A inversão da ordem dos elementos da frase tem lugar, por exemplo, em situações dêiticas, em frases que, na oralidade, acompanham o gesto de apontar para algo (ou em que esta identificação é feita mentalmente)1:

(2) «Está um gato na lareira.»

(3) «Está uma manifestação à porta da escola.»

O facto de «um papel» ser sujeito na fase (1) pode ser comprovado pelo fenómeno de concordância, pois caso se recorra ao plural o verbo flexiona, concordando com o sujeito, como se observa em (4):

(4) «Estão vários papéis no chão.»

No caso da frase apresentada em (5), estamos também perante um uso dêitico relacionado com o momento de fala:

(5) «Está um dia bom.»

Na frase, não existe um constituinte que funcione como sujeito da predicação, mas, em casos desta natureza, é comum a interpretação de que o locutor se refere ao «agora» (momento em que fala) ou ao «hoje» (intervalo temporal em que fala):

(5a) «[Hoje] está um dia bom.»

...

Pergunta:

No Brasil, para mencionar a decisão de uma corte de justiça, diz-se «O Tribunal entende pela inexistência de x», «O Tribunal entendeu pela ocorrência de y».

Gostaria de saber se essa regência do verbo entender está correta.

Resposta:

Não encontramos registo desta construção nem em dicionários generalistas1 nem em dicionários de verbos2. Não obstante, ela é bastante comum em textos de natureza jurídica, tanto no Brasil como em Portugal, como se pode comprovar pelos exemplos de registos devolvidos por uma pesquisa na internet:

(1) «[…] verifica-se que O Tribunal entende pela sua prescritibilidade […]» (aqui)

(2) «Nesses casos, o tribunal entende pela configuração de hipótese de dano moral in re ipsa […]» (aqui)

(3) «Geralmente, o Tribunal entende pela prorrogação do stay por mais 180 dias […]» (aqui)

(4) «Nesses casos, o tribunal entende pela configuração de hipótese de dano moral […]» (aqui)

O verbo entender, nestes casos, é usado com o sentido de «decidir entre várias possibilidades, após uma escolha ajuizada», e rege a preposição por. Uma vez que não há registo desta construção nos usos comuns, mais ou menos formais, estaremos perante um caso de jargão sintático, restrito a um uso sociolinguístico enquadrado na área do discurso jurídico.

Disponha sempre!

Pergunta:

Eu gostaria de saber quais são os tipos de orações coordenadas copulativas que existem e quais são as características de cada uma.

Desde já, muito obrigado.

Resposta:

Do ponto de vista sintático, podemos considerar dois tipos de orações coordenadas copulativas: as sindéticas e as assindéticas. As primeiras são orações conectadas por uma conjunção copulativa, como em (1):

(1) «O João foi ao parque e a Rita ficou em casa.»

As segundas são orações cuja conexão não é sinalizada por uma conjunção, sendo o valor desta conexão inferido, como acontece em (2):

(2) «O João foi ao parque, a Rita ficou em casa.»

Do ponto de vista semântico, estas orações têm um valor aditivo, considerado o seu significado básico, uma vez que adicionam propriedades, situações ou outros.

Não obstante, as orações coordenadas copulativas introduzidas pela conjunção e podem assumir ainda outros valores1:

(i) valor adversativo:

      (2) «Estudou imenso e teve má nota.» (= mas)

(ii) valor conclusivo:

      (3) «Já terminei o estudo e vou descansar.» (= por isso)

(iii) valor condicional:

      (4) «Vai a essa aula e ficas a saber a matéria.» (= se)

(iv) valor de sequência temporal:

      (5) «Levanta-se cedo e começa o estudo.» (= depois disso)

Disponha sempre!

 

1. Para um maior aprofundamento, cf. Matos e Raposo in Raposo et al.,

Pergunta:

Gostaria de saber se é possível aplicar a estrutura do conto tradicional ao conto "A Aia", de Eça de Queirós.

Assim, qual será o momento da resolução: a morte do tio bastardo ou o suicídio da aia, coincidindo, neste último caso, os momentos da resolução e da situação final?

Muito obrigado!

Resposta:

Há diversas propostas de análise da estrutura do conto. Entre elas, a mais divulgada e estudada será a que consta do trabalho de Vladimir Propp presente na obra Morfologia do Conto.

Desta proposta tradicional não consta a fase da resolução. Vamos encontrar esta classificação, por exemplo em Jean-Michel Adam, em Les Textes – Types et Prototypes. O autor descreve a sequência narrativa como sendo composta pelo seguinte conjunto de macroproposições, sendo que nem todas são obrigatórias1:

  • Situação inicial
  • Nó desencadeador da ação (complicação)
  • Re-ação e/ou avaliação
  • Desenlace (resolução)
  • Situação final
  • Encerramento ou avaliação final (moralidade)

De acordo com a proposta de Adam, existe uma relação direta entre a situação inicial e a situação final e entre a complicação e a resolução. Assim, a resolução é o momento em que se encontra a solução para o problema criado na complicação.

Se pensarmos no conto A Aia, de Eça de Queirós, veremos que a fase da complicação coincide com a morte do rei que vem abrir a possibilidade de o trono ser ocupado (usurpado) pelo seu irmão bastardo, o que, consequentemente, coloca em perigo de vida o príncipe. Daqui advém um conjunto de ações que se resolvem com a morte do irmão bastardo e com a troca dos bebés pela aia, sendo esta a fase da resolução.

O momento do suicídio da aia pode ser encarado como a situação...

<i>Sob</i> ou <i>sobre</i>?
Duas preposições antónimas

Qual a opção correta: «Alguém está "sob" suspeição» ou «Alguém está "sobre" suspeição»? A resposta é dada no apontamento da professora Carla Marques

(Incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 12 de novembro de 2023)