Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber qual a forma mais correta, se orçador ou orçamentista, para uma pessoa cujo trabalho é realizar orçamentos.

Obrigada.

Resposta:

As duas expressões são lícitas e podem ser usadas como sinónimas.

Uma consulta a alguns dicionários de língua portuguesa1 mostrou que todos incluem o substantivo orçador com o significado de «pessoa que faz orçamentos». Este pode também ser usado como adjetivo.

O nome orçamentista surge registado com o mesmo significado de orçador, mas não está atestado no Dicionário da língua portuguesa contemporânea.

Não obstante, uma pesquisa feita no motor de procura Google mostra que o substantivo orçamentista parece ter mais vitalidade do que orçador.

Assim sendo, caberá ao consulente selecionar a palavra que pretende usar e manter uma escolha coerente.

Disponha sempre!

 

1. Foram consultados os seguintes dicionários: Dicionário da língua portuguesa contemporânea; Dicionário Houaiss da língua portuguesa; Dicionário Priberam e Dicionário da língua portuguesa.

Pergunta:

No texto de 1 Coríntios 13, verso 1, está escrito:

«Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse caridade, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.»

Analisando exclusivamente o texto bíblico acima, ele informa que existem duas formas de a pessoa falar várias línguas: o indivíduo pode aprender idiomas estudando ou pode ser poliglota por inspiração do Espírito Santo, daí as expressões "dos homens/dos anjos". A conduta é a mesma: falar idiomas, mas a fonte de aprendizado é diversa; no primeiro caso o conhecimento é adquirido pelo estudo, no outro ela fala línguas influenciada espiritualmente pelo Espírito de Deus.

Então pergunto: qual a figura de linguagem que foi utilizada pelo autor?

Obs: desculpem a forma que vou falar a seguir, mas é importante destacar que meu interesse é puramente gramatical, sem viés religioso nenhum. O problema é que quando a gente pergunta a religiosos ou eles não sabem, ou respondem ideologicamente.

Mais uma vez desculpem minha forma de expor o tema.

Obrigado!

Resposta:

À partida, e considerando apenas a frase apresentada, poderemos considerar que estamos perante uma antítese, figura que associa dois termos que contrastam entre si. Se considerarmos que as expressões «línguas dos homens» e «línguas dos anjos» designam duas realidades que são contrastivas / opostas, é possível assinalar a presença deste recurso. 

A considerarmos que estas línguas referidas poderiam ser designadas por um nome próprio (que desconheço), seria possível considerar as expressões «línguas dos homens» e «línguas dos anjos» como um tipo de antonomásia, uma vez que se substituiria o nome próprio por um nome comum com um propósito descritivo e explicativo. Neste quadro, seria possível também considerar que se trataria de uma perífrase, uma vez que se refere uma realidade com recurso a uma expressão mais longa que substitui uma mais curta.

 

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «Até o chefe da seção notou minha inquietude», qual a classe gramatical do vocábulo até?

Qual a função sintática do vocábulo até?

O vocábulo até se refere ao «chefe da seção» ou à oração inteira?

Se o termo até for deslocado na frase assim:

«O chefe da seção notou até minha inquietude.»

muda a função sintática?

Grato.

Resposta:

Na frase em questão a palavra até é um advérbio de inclusão1, que incide sobre o sintagma nominal «chefe de secção» denotando a sua inclusão num dado conjunto.

O advérbio até combina-se com o sintagma nominal «o chefe de secção», formando um novo sintagma nominal. Deste modo, concluímos que até funciona no plano interior ao sintagma nominal, incidindo sobre o nome e modificando o seu sentido. Nesse âmbito, podemos considerar que o advérbio desempenha a função de adjunto do nome (modificador do nome, de acordo com o Dicionário Terminológico).

É importante advertir, porém, que a consideração de que o advérbio pode incidir sobre um nome não é típica nas descrições gramaticais, pelo que não é frequente encontrar a descrição da função sintática desempenhada nestes casos, pois estamos perante situações marginais do funcionamento do advérbio.

No caso da segunda frase apresentada pelo consulente, a deslocação do advérbio para junto do sintagma nominal «minha inquietude» leva a que este passe a incidir sobre este constituinte, formando um novo sintagma nominal, no qual exerce também a função de modificador do nome.

Disponha sempre!

 

1. Note-se que há autores como que dão um tratamento particular a advérbios desta natureza. É o caso de  Bechara, que refere o seguinte relativamente a alguns advérbios: «A Nomenclatura Gramatical Brasileira põe os denotadores de inclusão, exclusão, situação, retificação, designação, realce, etc. à parte, sem a rigor incluí-los entre os advérbios, mas constituindo uma classe ou grupo heterogêneo chamado denotadores». (

«Tolerância de ponto» ou «tolerância de ponte»?
Designação da permissão para não trabalhar

Apontamento da professora Carla Marques sobre a designação que recebe a situação em que se concede ao trabalhador permissão para não trabalhar durante um ou mais dias. 

Apontamento incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 24 de setembro de 2023.

Pergunta:

No contexto de trabalho, surgiu uma dúvida relativamente à pontuação da frase – e passo a citar – «E não é que funcionou».

Uma colega dizia-me que seria uma afirmação, com ponto final: «E não é que funcionou.»

No entanto, para mim, seria obviamente uma interrogação: «E não é que funcionou?» (ou, quanto muito, uma exclamação: «E não é que funcionou!»)

Gostaria de esclarecer esta questão e perceber, então, o porquê.

Muito obrigada.

Resposta:

Sem outro contexto, a frase poderá ser considerada uma frase declarativa ou uma frase exclamativa, pelo que será possível optar pelo ponto (final) ou pelo ponto de exclamação, respetivamente.

As frases interrogativas caracterizam-se por permitirem colocar uma pergunta, estando, assim, ao serviço de um pedido de informação. As frases interrogativas podem distinguir-se em interrogativas globais e interrogativas parciais (veja-se também esta resposta). As primeiras caracterizam-se por terem uma resposta de sim ou não (1) e as segundas por pedirem uma informação especifica (2):

(1) «Vens ao cinema?»

       «Sim / Não.»

(2) «Que filme queres ver?»

      «Uma comédia.»

Ora, no caso da frase apresentada, sem outro contexto, não nos parece que constitua uma frase interrogativa com as características apresentadas atrás.

A frase parece estar ao serviço da expressão de um sentimento (de espanto / admiração). Nesse sentido, pode ser considerada uma frase exclamativa, o que justifica que possa ser pontuada com um ponto de exclamação. É possível também assumir que se trata apenas de uma constatação, sendo uma frase declarativa, o que seria compatível com o uso do ponto (final).

Uma frase como a que se apresenta em (3) já poderia ser interrogativa:

(3) «E funcionou?»

No plano da pontuação, será possível acentuar a inflexão da voz e marcar o espanto perante algo que não se esperava que ocorresse juntando ao ponto de exclamação um ponto de in...