Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Como se escreve: «políticas de prevenção ao suicídio» ou «políticas de prevenção do suicídio»?

Resposta:

Deve optar-se pela expressão «políticas de prevenção do suicídio».

O nome prevenção é formado a partir do verbo prevenir. Quando se transforma uma construção com predicado verbal, como em (1), num sintagma nominal que inclua um nome deverbal (formado a partir de um verbo), este nome herda os complementos do verbo, como se observa em (2). Estes complementos têm a particularidade de, normalmente, estabelecerem a ligação com o nome, núcleo do sintagma nominal, por meio da preposição de:

(1) «Ele preveniu o suicídio de alguém»

(2) «A prevenção do suicídio»

Pelas razões apresentadas, a construção a usar é a que inclui a preposição de.

Disponha sempre!

Pergunta:

Desde já agradecendo, tomo a liberdade de perguntar o seguinte: deverá dizer-se «ser quem somos» ou «ser-se quem somos»?

Resposta:

A construção correta é a que se apresenta em (1):

(1) «Ser quem somos»

A forma «ser-se» é possível quando associada a uma intenção de generalização, pois o pronome clítico -se permite uma construção com indeterminação do sujeito, o que leva a que esta forma seja equivalente a «alguém é». Observemos a frase (2):

(2) «É importante ser-se corajoso.»

Em (2), o pronome clítico representa o agente que é corajoso, ou seja, equivale a «alguém que é corajoso».

Na frase apresentada em (1), o recurso à indeterminação do sujeito não parece possível porque o verbo ser é seguido da oração relativa que tem como sujeito a 1.ª pessoa do plural («nós somos»). É incompatível o aparecimento simultâneo de um sujeito indefinido (marcado pelo uso de -se) e de um sujeito de 1.ª pessoa. Por esta razão, a opção aceitável é a que não inclui o pronome clítico -se.

Seria talvez possível uma construção que assente toda ela na indeterminação, como em (3):

(3) «Ser-se quem se é»

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «Conheço a Maria da época da escola», «a Maria» é complemento direto.

Qual a função sintática desempenhada por «da época da escola»?

Obrigado

Resposta:

O constituinte «da época da escola» desempenha a função de modificador do grupo verbal.

Para distinguir a função de modificador do grupo verbal da de complemento oblíquo, poderemos usar testes que analisam se é possível afastar o constituinte do verbo ou se este afastamento determina uma construção agramatical. Os complementos não poderão ser afastados do verbo sob pena de a construção ficar agramatical. Já os modificadores podem ser afastados do verbo, mantendo-se a construção gramatical.

Apliquemos os testes à frase (1), que adaptamos para clareza de análise. Note-se que se usa o verbo fazer para aplicar o teste, o que, neste caso, introduz alguma estranheza:

(1) «O João conhece a Maria da época da escola.»

(i) Teste pergunta-resposta:

     (1a) P: «O que é que o João faz da época da escola?»

              R: «Conhece a Maria.» 

(ii) Teste de clivagem:

               (1b) «É conhecer a Maria que o João faz da época da escola?»

No caso da frase (1), os testes mostram que o constituinte «da época da escola» pode ser afastado do verbo conhecer, o que indica que o constituinte não é complemento do verbo (ou seja, não é complemento oblíquo, mas antes modificador do grupo verbal).

Pergunta:

É mais correto escrever «semanas com aulas» ou «semanas de aulas», quando se pretende fazer uma contagem das semanas em que existiram aulas.

Muito obrigada,

Resposta:

O uso mais corrente será o que inclui a preposição de. No entanto, o uso da preposição com é também possível.

A preposição com pode ser usada com o valor de «(co)presença (de duas entidades)»1. Se atentarmos numa frase como (1), concluímos que o uso da preposição com assinala que as aulas ocorreram durante as «duas semanas»:

(1) «Contabilizei duas semanas com aulas.»

Entre os seus vários valores, a preposição de pode contribuir para assinalar a pertença a um dado tipo. No caso da frase (2), específica o tipo de semanas que estão a ser contabilizadas:

(2) «Contabilizei duas semanas de aulas.»

Por fim, verificamos que uma pesquisa feita num motor de busca nos devolve um número muito superior de usos da construção «semana de aulas». Acresce, ainda, que a construção «semana com aulas» é usada com alguma frequência para especificar o tipo de aulas em questão, como se exemplifica em (3):

(3) «Iniciamos a semana com aulas de meditação.»

Disponha sempre!

 

1. Raposo e Xavier in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1548-1550 e 15557-1559.

Pergunta:

Embora eu veja sempre recomendado o uso da preposição de a seguir a «tenho a certeza», parece-me haver excepções.

Por exemplo, no seguinte diálogo:

– Deixaste a porta fechada?

– Tenho a certeza que sim.

Aqui parece-me mais correcto sem a preposição. "Tenho a certeza de que sim" não me parece bem.

Se possível gostaria de um esclarecimento. Obrigado.

Resposta:

Os usos normativos determinam o uso da preposição de após predicados nominais como certeza. Este uso deve ocorrer em diferentes situações:

(i) com uma oração completiva como complemento:

(1) «Tenho a certeza de que ele chegará hoje.»

(ii) com um complemento nominal:

(2) «Tenho a certeza da necessidade de fazer exercício.»

(3) «Tenho a certeza disso.»

Com complemento oracionais, como em (1), tem lugar com alguma frequência, e sobretudo em contextos mais informais, a supressão da preposição de. Os gramáticos consideram que este poderá ser um sinal de mudança linguística em curso dada a frequência de ocorrências detetada1. Não obstante, no presente momento, não poderemos considerar que se trata de uma opção correta.

Deste modo, do ponto de vista normativo, a preposição de deve ser usada na frase apresentada, ainda que a pressão dos usos possa dar a sensação a alguns falantes de que a frase é pouco natural:

(4) «Tenho a certeza de que sim.»

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, Cf. Peres e Móia, Áreas críticas da língua portuguesa. Caminho, pp. 108-143.