Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
140K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Normalmente ao escrever um texto utilizo um artigo definido antes do substantivo, que no meu caso é uma substância ativa, e geralmente omito o referido artigo definido quando faço referência ao nome comercial da referida substância ativa.

Um exemplo genérico disto seria: «O paracetamol pode ser tomado com ou sem alimentos» versus «Ben-u-ron pode ser tomado com ou sem alimentos».

Gostaria de saber se isto está de facto correto e como justificar/substanciar estes casos específicos.

Resposta:

Os princípios que convoca não se encontram determinados dessa forma nas gramáticas normativas e não correspondem a situações de uso fixadas pelos falantes.

O recurso ao artigo definido contribui, de forma genérica, para a determinação de uma dada entidade, que se assume como particular ou genérica. Como se observa em (1), o artigo tanto pode contribuir para identificar um cão particular, de que o locutor já vinha falando anteriormente, ou do cão como espécie, de forma genérica:

(1) «O cão é um bom defensor da casa.»

A omissão do artigo definido, habitualmente, contribui para uma leitura genérica. No entanto, há algumas restrições a este uso sem artigo definido junto de nomes comuns1. Com nomes contáveis com função de sujeito, o seu uso é pouco frequente porque introduz alguma estranheza:

(2) «?Cão não gosta de comer vegetais.»

No entanto, com frases copulativas, o uso é mais comum:

(3) «Cão é um animal de que gosto.»

A utilização de nome sem artigo noutras funções sintáticas é frequente:

(4) «Não encontrei cão sem dono.»

Deste modo, são aceitáveis as frases, (5) e (6), estando o nome comum acompanhado de artigo ou não, independentemente de referir uma substância ativa ou não:

(5) «O paracetamol pode ser tomado com ou sem alimentos.»

(6) «Paracetamol pode ser tomado com ou sem alimentos.»

No que concerne aos nomes próprios, os usos mostram que o português aceita, de uma forma geral, o uso de artigo definido com esta classe, incluindo os antropónimos (nomes de pessoas), pelo que é perfeitamente possível usar nomes de marcas com ou sem a determinação do artigo definido. Tanto está correta a frase (7) como a (8):

Pergunta:

Resposta:

 A estrutura apresentada é gramatical e não constitui um uso oralizante.

Na forma «arrepia-se-me» encontramos um grupo clítico formado pelos pronomes se e pelo pronome me, colocado após o verbo, em posição enclítica

Neste caso, o pronome se é um pronome inerente ao verbo arrepiar-se. Já o pronome me, é a forma dativa do pronome, que corresponde à função de complemento indireto.

Sempre que um grupo clítico se encontra na frase, a ordem dos pronomes clíticos está pré-determinada1. Assim, em primeiro lugar surge sempre o pronome se, que é seguido do pronome clítico dativo (com função de complemento indireto) e do pronome clítico acusativo (com função de complemento direto).

Se o pronome se se combinar apenas com um pronome clítico, dativo ou acusativo, se continuará a ser colocado em primeiro lugar.

Disponha sempre!

 

1. cf. 1. Martins in Raposo et al., Gramática do PortuguêsFundação Calouste Gulbenkian, pp. 2235 – 2237.

«Desculpa lá!»
Uma construção coloquial

A construção «Desculpa lá!» é aceitável? A professora Carla Marques responde a esta questão no desafio semanal divulgado no programa Páginas de Português, na Antena 2de 21/09/2025.

Pergunta:

Estou com dificuldades em analisar sintaticamente a frase «Fiz do recreio uma festa».

A minha primeira intuição foi considerar o constituinte «uma festa» complemento direto e o constituinte «do recreio» complemento oblíquo. Mas fazendo a substituição pronominal do complemento direto não me soa muito gramatical a frase «Fi-la do recreio».

Parece-me que aqui o verbo fazer se comporta como um verbo transitivo direto, no sentido de «Transformei o recreio numa festa». Neste caso «o recreio» seria complemento direto e «uma festa» seria predicativo do complemento direto. Substituindo o complemento direto pelo pronome, ficaria «Transformei-o numa festa», o que é perfeitamente gramatical.

O problema da primeira fase é que em termos de sentido ela é equivalente à segunda frase, mas as categorias sintáticas não me parecem encaixar bem.

Outro exemplo: «Fiz o João feliz». Aqui não me parece haver dúvidas: «o João» complemento direto e «feliz» predicativo do complemento direto («Fi-lo feliz»). Mas, retomando o primeiro exemplo, eu poderia dizer, com um significado semelhante: «Fiz do João uma pessoa feliz». E, com a estrutura do verbo fazer, o complemento direto passaria a ser «uma pessoa feliz» e «do João» complemento oblíquo.

Mas mais uma vez não me parece muito gramatical a construção: «Fi-la do João.»

Obrigado.

Resposta:

O constituinte «do recreio» é um complemento oblíquo do verbo fazer, que, neste caso particular, tem um comportamento transitivo-predicativo, estando a ser usado com o sentido de «transformar alguém ou algo em alguma coisa»1.

Enquanto verbo transitivo-predicativo, o verbo fazer pode ser construído com complemento direto e predicativo do complemento direto, como em (1):

(1) «A idade fez o António mais ponderado.»

Porém, este mesmo verbo pode também ser seguido de um complemento preposicional introduzido pela preposição de, como em (2):

(2) «A idade fez do António uma pessoa mais ponderada.»

Se consultarmos os dados do Corpus do Português, de Mark Davies, vemos que parece existir uma tendência para uma maior frequência de uso desta última construção, que, em termos semânticos, é equivalente à que se apresenta em (1). 

Em contexto escolar e considerando o quadro sintática tradicional, a estrutura apresentada em dois é problemática, pois, como se explica nesta resposta, gramáticas como a de Cunha e Cintra não preveem a construção de verbos transitivo-predicativos com complementos oblíquos. Existe referência apenas a verbos transitivo-predicativos construídos com complemento direto ou com complemento indireto2 (neste último caso, com o verbo chamar).  

Estamos, portanto, perante uma construção que não está prevista nas gramáticas escolares ou mais tradicionais. Não obstante, julgamos que poderemos considerar a possibilidade de o verbo

Pergunta:

Gostaria de saber se de facto estou a analisar de forma correta a seguinte frase:

«Este encontro entre o desejo de tornar Camões acessível a todos e a realidade de um autor reverenciado, mas pouco lido, tem sido um desafio.»

Sujeito: «Este encontro entre o desejo de tornar Camões acessível a todos e a realidade de um autor reverenciado, mas pouco lido.»

Predicado: «tem sido um desafio»

Predicativo do sujeito: «um desafio»

Agora, quanto ao sujeito, vejo um grupo nominal principal («Este encontro») e um complemento do nome encontro: «entre o desejo de tornar Camões acessível a todos e a realidade de um autor reverenciado, mas pouco lido»

Continuando a análise em caixinhas dentro de caixinhas, este complemento do nome é constituído por dois grupos nominais, sendo o primeiro «o desejo de tornar Camões acessível a todos», e o segundo «e a realidade de um autor reverenciado, mas pouco lido».

Deixarei para depois a análise deste último complemento que integra uma oração coordenada adversativa.

Para já interessa-me esclarecer o constituinte «entre o desejo de tornar Camões acessível a todos». É composto por um grupo nominal «o desejo» e por sua vez por outro complemento do nome «de tornar Camões acessível a todos» assegurado por uma oração subordinada completiva.

Gostaria de proceder à análise sintática independente desta oração completiva: «Camões» seria complemento direto do verbo tornar;«acessível a todos» seria predicativo do complemento direto «a todos», complemento do adjetivo acessível.

A minha dúvida é esta: é defensável a ideia de que «a todos» seja complemento indireto?. Exemplo: «Eu tornei Camões acessível a todos»/ «Eu tornei-lhes Camões acessível» (parece-me pouco gramatical).

Obrigado e bom trabalho.

Resposta:

Na frase em apreço, o constituinte «a todos» não desempenha a função de complemento indireto.

Considerando que, em (1), o verbo tornar está a ser usado como transitivo-predicativo, os constituintes que o acompanham têm, respetivamente, a função de complemento direto («Camões») e de predicativo do complemento direto («acessível a todos»):

(1) «[…] tornar Camões acessível a todos […]»

Neste caso, como bem afirma o consulente, o constituinte «a todos» é complemento do adjetivo acessível.

Neste caso, o verbo tornar é usado com um valor causativo estando o alvo da mudança provocada pelo agente expresso pelo complemento do adjetivo. Neste sentido, este complemento poderá ser substituído por uma estrutura como «a eles»:

(2) «tornar Camões acessível a eles»

Não obstante, recordemos que em frases copulativas é possível a pronominalização do complemento do adjetivo por um pronome dativo:

(1) «Ele é fiel aos amigos.» = «Ele é-lhes fiel.»

Por proximidade a esta estrutura, é possível que se efetue o mesmo tipo de pronominalização, associando o pronome lhe ao verbo tornar, embora não seja uma opção corrente:

(2) «tornar-lhes Camões acessível»

Não obstante esta possibilidade, o constituinte «a todos / lhes» desempenha a função de complemento do adjetivo na estrutura em análise.

Relativamente à análise da frase, a análise que propõe é justa:

(3) «[Este encontro [entre o desejo [de tornar Camões acessível a todos]complementos do nome e a realidade [de um autor [reverenciado]modificador do nome restritivo, mas [pouco lido]modificador do nome restritivo,]