Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Nas últimas férias, fiz a minha primeira viagem de avião», devo considerar «de avião» complemento do nome ou complemento oblíquo, uma vez que o verbo "fazer", neste contexto, é transitivo direto?

Resposta:

O constituinte «de avião» desempenha, na frase apresentada, a função de complemento do nome viagem.

A frase em questão tem a particularidade de incluir o uso de fazer como verbo leve. Considera-se verbo leve aquele que perdeu o seu sentido pleno, tendo sofrido um «esvaziamento semântico» e funcionando associado a um constituinte nominal1. Veja-se, a título de exemplo, um uso do verbo fazer como verbo leve associado ao nome intervenção:

(1) «Ele fez uma intervenção na reunião de professores.» (= «Ele interveio na reunião de professores.»)

Assim, «fazer uma intervenção» é uma construção equivalente a intervir.

No caso em apreço, «fazer uma viagem» é equivalente a viajar. Caso a frase incluísse este verbo pleno, teria uma forma similar à seguinte, na qual «de avião» é um argumento do verbo viajar, desempenhando a função de complemento oblíquo:

(2) «Nas últimas férias, viajei pela primeira vez de avião.»

No caso da frase aqui transcrita em (3), o constituinte «de avião» não é argumento do verbo fazer, como se constata pela agramaticalidade introduzida pela omissão do constituinte «a minha primeira viagem»:

(3) «Nas últimas férias, fiz a minha primeira viagem de avião.»

(3a) «*Nas últimas férias, fiz de avião.»

A agramaticalidade da frase (3a) está relacionada com o facto de o constituinte «de avião» ser um argumento do nome viagem, pelo que desempenha a função de complemento do nome.

Disponha sempre!

...

Pergunta:

Podiam ajudar-e a confirmar se o constituinte «da comarca de arredores» é complemento do nome pessoas?

A frase é: «E recolherom-se dentro à cidade pessoas da comarca de arredores.»

Parece-me que é porque faz parte do sujeito, mas tenho dúvidas.

Obrigado pelo descanso que nos dão enquanto professores. Felicitações pelo vosso maravilhoso trabalho.

Resposta:

O constituinte «da comarca de arredores»1 desempenha função de modificador do nome com valor restritivo.

O nome pessoas é um nome autónomo, o que significa que não pede um argumento que complemente a sua significação. Deste modo, o constituinte que incide sobre o nome pessoas tem a ação semântica de restringir a sua significação, procedendo a uma especificação que leva a que o grupo nominal passe a referir apenas as pessoas oriundas da «comarca de arredores» e excluindo todas as restantes.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça e que muito nos estimulam.

Disponha sempre!

 

1. O texto apresentado é uma adaptação de um segmento da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, que aqui transcrevemos na sua forma original: «e colherom-se dentro aa cidade muitos lavradores com as molheres e filhos, e cousas que tiinham; e doutras pessoas da comarca d’arredor, aqueles a que prougue de o fazer [...]» (Fernão Lopes, Crónica de D. João ISeara Nova / Comunicação, 1980, p. 170)

«Sarampo sarampelo, sete vezes vem ao pelo»
Significado de um ditado do campo da saúde

Origem e história do ditado «Sarampo sarampelo, sete vezes vem ao pelo», pela professora Carla Marques.

(Programa Páginas de Português, da Antena 2, de 09/02/2024)

Pergunta:

Qual a forma mais correta?

– Cuidaram ativamente das necessidades de outros.

– Cuidaram ativamente das necessidades dos outros.

Grato.

Resposta:

Ambas as construções são possíveis. Poderão, todavia, ser usadas para expressar sentidos ligeiramente diferentes.

No caso da frase transcrita em (1), o complemento do nome necessidades é introduzido por uma preposição que não se contrai com um artigo definido:

(1) «Cuidaram ativamente das necessidades de outros.»

Esta opção leva a que a estrutura veicule uma interpretação genérica, na qual o referente de outros é interpretado como podendo referir-se a qualquer pessoa.

Na frase (2), o complemento do nome é introduzido pela preposição de contraída com o artigo definido os:

(2) «Cuidaram ativamente das necessidades dos outros.»

Neste caso, a presença do artigo definido contribui para a construção de um sentido que aponta para um referente concreto, que poderá corresponder a um grupo de pessoas que é possível identificar ou no mundo extralinguístico ou a partir do contexto discursivo anterior.

Todavia, esta última frase poderá também ser usada com algum grau de genericidade, que se aproxima muito do sentido da frase (1), o que nos leva a concluir em, em determinados contextos, o uso de uma ou de outra frase acabará por não produzir uma diferença efetiva.

Disponha sempre!

Pergunta:

Nos versos «Passai-me, por vossa fé, / meu amor, minhas boninas, / olho de perlinhas finas!», da obra Auto da Barca do Inferno, de Gil Vicente, para além de metáforas e apóstrofes, podemos dizer, também, que estão presentes enumerações?

Muito grato!

Resposta:

Poderemos considerar a presença da enumeração nos versos referentes a uma fala da personagem Brízida Vaz, da obra vicentina.

A enumeração é um recurso expressivo que consiste na «[a]dição ou inventário de coisas relacionadas entre si, cuja ligação se faz quer por polissíndeto quer por assíndeto»1.

Neste caso, por meio de apóstrofes, enumeram-se traços eufóricos atribuídos ao Anjo, como uma estratégia argumentativa orientada para o convencer a salvar a personagem Brízida Vaz.

Disponha sempre!

 

 1. E-Dicionário de Termos Literários (EDTL), coord. de Carlos Ceia.