Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Seria possível que me esclarecessem acerca da função sintática do constituinte «satírica» na frase «opostamente às Cantigas de Amigo e de Amor, as de Escárnio e de Maldizer envolvem a temática satírica»?

Obrigado.

Resposta:

No grupo nominal «a temática satírica», o adjetivo satírica desempenha a função de modificador do nome restritivo.

O adjetivo satírica incide sobre o nome temática e restringe o seu sentido, pelo que se trata de um modificador restritivo.

Não sendo pedido pela estrutura interna do nome temática, o adjetivo pode ser retirado da frase sem comprometer a significação do nome, que passará a ter uma significação mais abrangente.

Disponha sempre!

Pergunta:

Tem havido algumas dúvidas quanto à função sintática desempenhada pelo antigo complemento circunstancial de companhia, mais exatamente os pronomes pessoais como comigo, consigo etc.

Já os vi serem classificados como modificadores do grupo verbal, como complemento oblíquo, mas persistem dúvidas que eu gostaria, se possível, que esclarecessem.

Grata

Resposta:

A função sintática desempenhada por estes pronomes ou por quaisquer outros constituintes ficará sempre dependente da natureza do verbo com o qual se combinarem.

É ao verbo que cabe a seleção dos seus argumentos internos, que completam o seu sentido. Logo, será este que determina a natureza dos seus complementos.

Deste modo, um verbo como viver seleciona um complemento oblíquo, que pode, do ponto de vista semântico, expressar o valor de companhia, como se observa em (1) e (2):

(1) «Ela vive com o João.»

(2) «Ela vive comigo.»

Os constituintes «com o João» e «comigo» desempenham a função de complemento oblíquo.

Um verbo como ir seleciona um complemento oblíquo com valor locativo (ou equivalente), como está exemplificado em (3) e (4):

(3) «Ele foi a Paris com o João.»

(4) «Ele foi a Paris comigo.»

Nestas frases, o constituinte «a Paris» desempenha a função de complemento oblíquo, ao passo que os constituintes «com o João» e «consigo» têm a função de modificador do grupo verbal.

Disponha sempre!

Pergunta:

Depois da análise de um texto, surgiram dúvidas, atendendo à divergência de opiniões.

Na frase «Foi com ele e com os saudosistas que Pessoa começou a colaborar, ao alcançar a plena maturidade como escritor.», qual a oração desempenhada pelo segmento «que Pessoa começou a colaborar» e qual a sua função sintática?

Muito obrigada pela vossa disponibilidade.

Resposta:

A frase apresentada é uma estrutura clivada ou de foco, que corresponde a uma construção que permite focalizar um dos elementos da frase. Neste caso, o foco recai sobre o complemento direto «com ele e com os saudosistas».

A construção em análise é uma estrutura clivada canónica que tem a seguinte organização: «Verbo ser + constituinte clivado + que + oração clivada». Neste caso particular, o constituinte clivado é o complemento direto, como se pode concluir da análise da frase sem clivagem:

(1) «Pessoa começou a colaborar com ele e com os saudosistas, ao alcançar a plena maturidade como escritor.»

Observe-se que o constituinte «que Pessoa começou a colaborar, ao alcançar a plena maturidade como escritor» não é uma oração relativa porque esta não assume comportamento típico de uma oração desta natureza1. Consideramos, neste caso, que a palavra que é um complementador que introduz a oração clivada (neste caso, «Pessoa começou a colaborar, ao alcançar a plena maturidade como escritor»).

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Soares, La syntaxe de la périphé...

Pergunta:

Na frase «Ao ouvirmos as histórias sobre Pessoa, é como se o conhecêssemos verdadeiramente:», o segmento «como se o conhecêssemos» é uma oração subordinada adverbial comparativa?

Quando a escrevi para colocar num exercício, assumi que era de facto uma adverbial comparativa. Porém, tendo em conta que as orações adverbiais têm função de modificador e o segmento parece desempenhar a função de predicativo do sujeito (ou não?), fiquei com dúvidas e considerei tratar-se de uma oração substantiva relativa. Será que podem ajudar-me a esclarecer?

Agradeço a ajuda.

Resposta:

Poderemos considerar a oração em questão como comparativo-condicional, uma classificação que não está prevista no Dicionário Terminológico e que, por esta razão, não se adequa ao contexto do ensino não superior.

Observe-se, antes de mais, que a frase assenta numa estrutura elíptica, que poderá corresponder ao que se apresenta em (1):

(1) «Ao ouvirmos as histórias sobre Pessoa, [esta experiência] é como se o conhecêssemos verdadeiramente.»

Deste modo, a oração principal será equivalente a (2), onde introduzimos o segmento «a experiência de» para facilitar a análise subsequente:

(2) «[A experiência de] Ouvir as histórias sobre Pessoa é como se o conhecêssemos verdadeiramente.»

A locução «como se» pode ser interpretada como expressando simultaneamente um valor comparativo e condicional1. Alguns autores, como Evanildo Bechara, apontam a possibilidade de se considerar que estamos perante uma oração comparativa que encerra, no seu interior, uma oração condicional, pois é possível desdobrar a construção em duas orações2:

(2a) «[A experiência de] Ouvir as histórias sobre Pessoa é como [seria a experiência] se o conhecêssemos verdadeiramente.»

Estas orações, como notaram alguns gramáticos, não assumem uma natureza completamente adverbial, podendo mesmo surgir em posições nominais, como ocorre na frase em análise, onde ocupa o espaço do predicativo do sujeito.

Por esta razão, poderemos considerar que a oração em análise, estando associada à cópula ser, desempenha a função de predicativo do sujeito.

De qualquer forma, estamos perante uma análise que ...

Pergunta:

Qual a forma correta de escrever: «fui sair» ou saí?

Resposta:

Parece existir uma redundância semântica na construção «fui sair». Não obstante, em determinados contextos ela será aceitável para alguns falantes.

Em termos gerais, o verbo ir tem o sentido de «passar de um lugar a outro»1 e o verbo sair significa «passar (de dentro para fora); ir (do interior para o exterior)»1, o que significa que, em parte o sentido destes verbos se sobrepõe. Este facto explicará a estranheza que a construção «fui sair» provoca.

Por esta razão, será preferível a forma simples saí.

Todavia, note-se que uma construção no presente, como em (1), já é correta, uma vez que nessa situação o verbo ir funciona como auxiliar temporal, veiculando a ideia de futuridade:

(1) «Vou sair com as minhas amigas.»

Acrescente-se, ainda, que o verbo ir pode ser usado como auxiliar temporal. Neste caso o seu uso no pretérito perfeito é estranho:

(2) «Ele foi ficar na escola.»

Todavia, como nos explica Raposo, com «sujeito agentivos ou experienciadores, que têm controlo sobre a situação expressa pelo predicado, é mais livre o uso do verbo ir no pretérito perfeito em orações simples, precedendo um verbo pleno, como se ilustra em (i):

(i) a. A Maria foi comprar o jornal. [...]

Nestes casos, ainda que o limiar inicial da situação descrita pelo predicado tenha lugar num momento anterior à enunciação, pressupõe-se que a situação não foi necessariamente terminada, e que pode ser na realidade apenas num momento futuro [...]

Tipicamente, exemplos deste tipo, em que o sujeito tem controlo sobre a situação expressa pelo predicado, admitem uma expressão de lugar direcional, como s...