Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Li num dicionário acerca da definição de antecedente o seguinte:

«termo a que se refere o pronome relativo

Esta definição está completa? Não se deveria incluir os pronomes pessoais?

Ex.: «Nos debates televisivos falou-se de muitos assuntos. Eles foram pertinentes para o meu conhecimento.

Obrigado.

Resposta:

No plano textual, a definição de antecedente é mais lata do que aqui se refere.

A noção de antecedente está relacionada com o conceito de «anáfora textual», que se integra nos processos de coesão textual. Um texto integra uma rede de relações semânticas, construída também com bases em processos anafóricos que constituem uma construção linguística por meio do qual um determinado grupo nominal faz depender a sua interpretação de um termo antecedente.

Este processo pode ser desenvolvido por meio de uma anáfora direta1, conceito que engloba os seguintes processos: anáfora pronominal, anáfora zero, anáfora nominal e anáfora adverbial. Todos eles envolvem a relação entre um grupo nominal (expresso ou não) e o seu antecedente.

A anáfora pronominal corresponderá à realidade que o consulente refere na sua questão. Este processo gramatical de construção da coesão é desenvolvido por meio de pronomes de vários tipos (pessoais, demonstrativos, possessivos, relativos), os quais estabelecem ligações coesivas com um termo antecedente, retomando o seu sentido.

Disponha sempre!

 

1. cf.  Lopes e Carapinha. Texto, coesão e coerência. Almedina, 2013.

Pergunta:

Na frase «Nas últimas férias, fiz a minha primeira viagem de avião», devo considerar «de avião» complemento do nome ou complemento oblíquo, uma vez que o verbo "fazer", neste contexto, é transitivo direto?

Resposta:

O constituinte «de avião» desempenha, na frase apresentada, a função de complemento do nome viagem.

A frase em questão tem a particularidade de incluir o uso de fazer como verbo leve. Considera-se verbo leve aquele que perdeu o seu sentido pleno, tendo sofrido um «esvaziamento semântico» e funcionando associado a um constituinte nominal1. Veja-se, a título de exemplo, um uso do verbo fazer como verbo leve associado ao nome intervenção:

(1) «Ele fez uma intervenção na reunião de professores.» (= «Ele interveio na reunião de professores.»)

Assim, «fazer uma intervenção» é uma construção equivalente a intervir.

No caso em apreço, «fazer uma viagem» é equivalente a viajar. Caso a frase incluísse este verbo pleno, teria uma forma similar à seguinte, na qual «de avião» é um argumento do verbo viajar, desempenhando a função de complemento oblíquo:

(2) «Nas últimas férias, viajei pela primeira vez de avião.»

No caso da frase aqui transcrita em (3), o constituinte «de avião» não é argumento do verbo fazer, como se constata pela agramaticalidade introduzida pela omissão do constituinte «a minha primeira viagem»:

(3) «Nas últimas férias, fiz a minha primeira viagem de avião.»

(3a) «*Nas últimas férias, fiz de avião.»

A agramaticalidade da frase (3a) está relacionada com o facto de o constituinte «de avião» ser um argumento do nome viagem, pelo que desempenha a função de complemento do nome.

Disponha sempre!

...

Pergunta:

Podiam ajudar-e a confirmar se o constituinte «da comarca de arredores» é complemento do nome pessoas?

A frase é: «E recolherom-se dentro à cidade pessoas da comarca de arredores.»

Parece-me que é porque faz parte do sujeito, mas tenho dúvidas.

Obrigado pelo descanso que nos dão enquanto professores. Felicitações pelo vosso maravilhoso trabalho.

Resposta:

O constituinte «da comarca de arredores»1 desempenha função de modificador do nome com valor restritivo.

O nome pessoas é um nome autónomo, o que significa que não pede um argumento que complemente a sua significação. Deste modo, o constituinte que incide sobre o nome pessoas tem a ação semântica de restringir a sua significação, procedendo a uma especificação que leva a que o grupo nominal passe a referir apenas as pessoas oriundas da «comarca de arredores» e excluindo todas as restantes.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça e que muito nos estimulam.

Disponha sempre!

 

1. O texto apresentado é uma adaptação de um segmento da Crónica de D. João I, de Fernão Lopes, que aqui transcrevemos na sua forma original: «e colherom-se dentro aa cidade muitos lavradores com as molheres e filhos, e cousas que tiinham; e doutras pessoas da comarca d’arredor, aqueles a que prougue de o fazer [...]» (Fernão Lopes, Crónica de D. João ISeara Nova / Comunicação, 1980, p. 170)

«Sarampo sarampelo, sete vezes vem ao pelo»
Significado de um ditado do campo da saúde

Origem e história do ditado «Sarampo sarampelo, sete vezes vem ao pelo», pela professora Carla Marques.

(Programa Páginas de Português, da Antena 2, de 09/02/2024)

Pergunta:

Qual a forma mais correta?

– Cuidaram ativamente das necessidades de outros.

– Cuidaram ativamente das necessidades dos outros.

Grato.

Resposta:

Ambas as construções são possíveis. Poderão, todavia, ser usadas para expressar sentidos ligeiramente diferentes.

No caso da frase transcrita em (1), o complemento do nome necessidades é introduzido por uma preposição que não se contrai com um artigo definido:

(1) «Cuidaram ativamente das necessidades de outros.»

Esta opção leva a que a estrutura veicule uma interpretação genérica, na qual o referente de outros é interpretado como podendo referir-se a qualquer pessoa.

Na frase (2), o complemento do nome é introduzido pela preposição de contraída com o artigo definido os:

(2) «Cuidaram ativamente das necessidades dos outros.»

Neste caso, a presença do artigo definido contribui para a construção de um sentido que aponta para um referente concreto, que poderá corresponder a um grupo de pessoas que é possível identificar ou no mundo extralinguístico ou a partir do contexto discursivo anterior.

Todavia, esta última frase poderá também ser usada com algum grau de genericidade, que se aproxima muito do sentido da frase (1), o que nos leva a concluir em, em determinados contextos, o uso de uma ou de outra frase acabará por não produzir uma diferença efetiva.

Disponha sempre!