Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Convocar a metáfora para ganhar eleições
O discurso de Trump em Nova Iorque

O discurso do candidato e ex-presidente Donald Trump no comício em Nova Iorque, em 27 de outubro de 2024, construiu-se em torno de uma metáfora de guerra, cujas implicações são analisadas pela professora Carla Marques neste apontamento. 

Pergunta:

Qual é a frase correta, e porquê?

«A Fama da mitologia tinha tantos olhos quanto penas.»

«A Fama da mitologia tinha tantos olhos quantas penas.»

«A Fama da mitologia tinha tantos olhos como penas.»

Muito obrigado.

Resposta:

Ambas as construções são aceitáveis, como se transcreve em (1) e (2):

(1) «A Fama da mitologia tinha tantos olhos quanto penas.»

(2) «A Fama da mitologia tinha tantos olhos quantas penas.»

Numa estrutura comparativa com os operadores tanto… quanto, o primeiro termo de comparação é formado pelo operador tanto comparativo de igualdade associado ao nome, com o qual concorda em género e número (frase (2)). O segundo termo de comparação é constituído pelo operador quanto seguido de oração. Este operador pode ter uma forma invariável, que pode surgir em estruturas comparativas cujo domínio de quantificação é um nome (3), um verbo (4), um advérbio (5) ou um adjetivo (6):

(3) «Ele comeu tantos bolos quanto a Rita comeu.»

(4) «Ele comeu tanto quanto a Rita comeu.»

(5) «Ele comeu tão lentamente quanto a Rita correu.»

(6) «Ele é tão guloso quanto a Rita é.»

É possível também adotar formas variáveis do operador quanto, quando o domínio de quantificação é um nome, com o qual concorda em género e número:

(7) «Ele comeu tantos bolos quantos a Rita comeu.»

(8) «Ele comeu tantas fatias de bolo quantas a Rita comeu.»1

Isto indica que poderíamos admitir a concordância de quanto com penas («quantas penas»). A frase (2) inclui a elipse do verbo, pelo que a sua forma completa será similar à que se apresenta em (2a):

(2a) «A Fama da mitologia tinha tantos olhos quantas eram as penas.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Como se escreve: «políticas de prevenção ao suicídio» ou «políticas de prevenção do suicídio»?

Resposta:

Deve optar-se pela expressão «políticas de prevenção do suicídio».

O nome prevenção é formado a partir do verbo prevenir. Quando se transforma uma construção com predicado verbal, como em (1), num sintagma nominal que inclua um nome deverbal (formado a partir de um verbo), este nome herda os complementos do verbo, como se observa em (2). Estes complementos têm a particularidade de, normalmente, estabelecerem a ligação com o nome, núcleo do sintagma nominal, por meio da preposição de:

(1) «Ele preveniu o suicídio de alguém»

(2) «A prevenção do suicídio»

Pelas razões apresentadas, a construção a usar é a que inclui a preposição de.

Disponha sempre!

Pergunta:

Desde já agradecendo, tomo a liberdade de perguntar o seguinte: deverá dizer-se «ser quem somos» ou «ser-se quem somos»?

Resposta:

A construção correta é a que se apresenta em (1):

(1) «Ser quem somos»

A forma «ser-se» é possível quando associada a uma intenção de generalização, pois o pronome clítico -se permite uma construção com indeterminação do sujeito, o que leva a que esta forma seja equivalente a «alguém é». Observemos a frase (2):

(2) «É importante ser-se corajoso.»

Em (2), o pronome clítico representa o agente que é corajoso, ou seja, equivale a «alguém que é corajoso».

Na frase apresentada em (1), o recurso à indeterminação do sujeito não parece possível porque o verbo ser é seguido da oração relativa que tem como sujeito a 1.ª pessoa do plural («nós somos»). É incompatível o aparecimento simultâneo de um sujeito indefinido (marcado pelo uso de -se) e de um sujeito de 1.ª pessoa. Por esta razão, a opção aceitável é a que não inclui o pronome clítico -se.

Seria talvez possível uma construção que assente toda ela na indeterminação, como em (3):

(3) «Ser-se quem se é»

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «Conheço a Maria da época da escola», «a Maria» é complemento direto.

Qual a função sintática desempenhada por «da época da escola»?

Obrigado

Resposta:

O constituinte «da época da escola» desempenha a função de modificador do grupo verbal.

Para distinguir a função de modificador do grupo verbal da de complemento oblíquo, poderemos usar testes que analisam se é possível afastar o constituinte do verbo ou se este afastamento determina uma construção agramatical. Os complementos não poderão ser afastados do verbo sob pena de a construção ficar agramatical. Já os modificadores podem ser afastados do verbo, mantendo-se a construção gramatical.

Apliquemos os testes à frase (1), que adaptamos para clareza de análise. Note-se que se usa o verbo fazer para aplicar o teste, o que, neste caso, introduz alguma estranheza:

(1) «O João conhece a Maria da época da escola.»

(i) Teste pergunta-resposta:

     (1a) P: «O que é que o João faz da época da escola?»

              R: «Conhece a Maria.» 

(ii) Teste de clivagem:

               (1b) «É conhecer a Maria que o João faz da época da escola?»

No caso da frase (1), os testes mostram que o constituinte «da época da escola» pode ser afastado do verbo conhecer, o que indica que o constituinte não é complemento do verbo (ou seja, não é complemento oblíquo, mas antes modificador do grupo verbal).