Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
«Ora essa!»
Integração na classe de palavras

Como se classifica a expressão «ora essa»? Esta é a pergunta que motiva o apontamento da professora Carla Marques no âmbito da Dúvida da Semana, rubrica divulgada no programa Páginas de Português, da Antena 2, (01/12/2024). 

 

Pergunta:

Deve escrever-se «Tive permissão de aí entrar» ou «Tive permissão para aí entrar»?

Suponho que, sendo possível escrever das duas formas, dependerá do contexto – e, se assim for, peço o favor de me esclarecerem quando devo usar de e quando devo usar para.

Obrigado.

Resposta:

Ambas as formas são possíveis, sendo igualmente corretas.

Neste âmbito, Barbosa e Raposo afirmam: «com alguns nomes, incluindo aqueles que denotam atos diretivos, relacionados na sua maior parte com verbos correspondentes, a preposição de ligação pode ser para, alternando frequentemente com de»1.

Do ponto de vista semântico, o sentido das duas construções é equivalente. Poderemos, não obstante, identificar na construção transcrita em (1) um enfoque mais evidente na finalidade da permissão, o que não acontece com a construção (2), que tem um valor mais neutro:

(1) «Tive permissão para aí entrar.»

(2) «Tive permissão de aí entrar.»

Em ambas as construções, os constituintes que acompanham o nome permissão são orações infinitivas completivas de nome, desempenhando a função de complemento do nome.

Disponha sempre!

 

1. Barbosa e Raposo, in Raposo et al. Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1938.

Pergunta:

Na frase «O que em mim sente está pensando», as formas verbais, apesar de pertencerem à 3.ª pessoa, visto que do ponto de visto pragmático correspondem à primeira pessoa, são deíticos pessoais e temporais?

Antecipadamente grata.

Resposta:

A questão que coloca é bastante complexa porque a poesia não corresponde a um ato de enunciação ocorrido numa situação real, a qual assume como origem de referência o eu, situado num dado espaço (o aqui) e num dado momento de enunciação (o agora).

O texto literário, todavia, pode convocar elementos deíticos para a sua construção. Todavia, o texto literário não ocorre no mundo onde está o leitor ou o autor, fundando-se num eu-aqui-agora distinto. O texto literário, como explica Silva, «projeta o leitor em outro mundo, que não é onde ele está, que não é onde se encontra ancorado pelas coordenadas da situação concreta; no entanto, o eu-aqui-agora é que possibilita a transposição para esse mundo ausente.»1

Nesta perspetiva, o poema pessoano instaura um aqui e agora, associados ao “eu” poético, a partir do momento em que, na quarta estrofe, se dirige à ceifeira, que inaugura como “tu”, o que fica patente no uso do imperativo («Canta») e uso dos demonstrativos e do pronome de 2.ª pessoa: «tua incerta voz ondeando!»; «Ah, poder ser tu»; «tua alegre inconsciência»). Ao criar, no seu poema, este contexto de enunciação, o sujeito lírico assume-se como locutor da sua enunciação, o que fica marcado pelo uso dos pronomes e do determinante de 1.ª pessoa: «O que em mim sente está pensando»; «meu coração»; «sendo eu».

Não obstante o que ficou dito, não poderemos considerar que, no verso «O que em mim sente está pensando», as formas verbais sente e está são deíticos pessoais, pois não “mostram” a 1.ª pessoa. Será, eventualmente, possível avançar a interpretação de que o sujeito lírico evidencia, por meio desta construção, um processo de despersonalização falando do seu “eu” que sente, como um ele, uma não p...

Pergunta:

No seguinte excerto do Sermão de Santo António (aos peixes), de Padre António Vieira, qual é a subclasse do verbo converter:

«Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com um que não sei se foi ouvinte de Santo António e aprendeu dele a pregar. A verdade é que me pregou a mim, e se eu fora outro, também me convertera.»

Obrigada.

Resposta:

Neste caso, o verbo converter está a ser usado como transitivo direto.

Na frase em apreço, o verbo converter é pronominal, tendo como complemento direto a 1.ª pessoa do singular, na forma do pronome pessoal me.

Neste caso, o verbo não se constrói com outros complementos, mas será possível apontar situações em que converter é usado como verbo transitivo direto e indireto, como em (1):

(1) «O orador converteu os indígenas ao catolicismo.»

Na frase de Vieira, todavia, o verbo é, como se disse, usado como transitivo direto.

Disponha sempre!

Pergunta:

Observa o excerto:

«Desde aí o país tem seguido uma visão alternativa e holística do desenvolvimento que dá ênfase não apenas ao crescimento económico mas também à cultura, à saúde mental, à compaixão e à comunidade. Nesse aspeto, o Reino do Butão tem vindo a destacar-se.»

Qual o mecanismo de coesão presente na expressão «nesse aspeto»?

Resposta:

No caso em apreço, identificamos um processo de coesão referencial.

O grupo preposicional «nesse aspeto» remete, na frase em que é inserido, para o conteúdo da frase anterior, retomando o segmento «o país tem seguido uma visão alternativa e holística do desenvolvimento que dá ênfase não apenas ao crescimento económico mas também à cultura, à saúde mental, à compaixão e à comunidade» relativamente ao qual o locutor enquadra a sua avaliação pessoal expressa como «o Reino do Butão tem vindo a destacar-se». Esta relação semântica é assegurada particularmente pelo determinante esse, que aponta para o segmento apresentando anteriormente na linearidade do texto. 

Por estabelecer o seu sentido a partir de um segmento anterior no texto, assegurando uma rede de sentidos, o sintagma preposicional assegura no texto um processo de coesão referencial anafórica.

Disponha sempre!