Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «Temos de contribuir para que se limite o aumento da temperatura mundial», há quem diga que «para que se limite o aumento da temperatura mundial» é uma oração subordinada substantiva completiva e desempenha a função sintática de complemento oblíquo.

Queria, contudo, saber como explicar o «para que», porque, nas gramáticas, aparece como uma locução subordinativa conjuncional final, que, por sua vez, introduz orações subordinadas adverbiais finais.

Obrigada pela vossa atenção.

Resposta:

O facto de as palavras para e que surgirem seguidas numa frase não significa que estejamos perante uma locução conjuncional. Há que analisar o comportamento das unidades lexicais e verificar se o seu comportamento é compatível com o de uma locução. Um dos procedimentos possíveis é o da comutação de unidades.

Assim, se cotejarmos a frase transcrita em (1) com a frase apresentada em (2), verificamos que o constituinte «a limitação do aumento da temperatura mundial» surge no lugar de «que se limite o aumento da temperatura mundial»:

(1) «Temos de contribuir para que se limite o aumento da temperatura mundial.»

(2) «Temos de contribuir para a limitação do aumento da temperatura mundial.»

Identificamos, em ambas as frases, a preposição para, o que nos permite duas conclusões:

i) se estivéssemos perante a locução «para que» ela teria desparecido em (2), o que não se verificou;

ii) a manutenção da preposição para deve-se à sua relação com o verbo contribuir: ela é, de facto, regida por este verbo.

Vejamos o que acontece se substituirmos o verbo contribuir por outro equivalente, como decidir:

(3) «Temos de decidir que se limite o aumento da temperatura mundial.»

Esta comutação mostra que a oração «que se limite o aumento da temperatura mundial» é uma subordinada completiva do verbo decidir.

No caso da oração «que se limite o aumento da temperatura mundial», presente na frase (1), estamos perante um complemento do verbo, pelo que a oração é também completiva, introduzida pela conjunção subordinativa que, mas esta oração faz parte de um constituinte ...

Pergunta:

No verso «Tirar Inês ao mundo determina», qual é a função sintática de «ao mundo»: complemento indireto ou oblíquo?

Resposta:

Neste contexto, «ao mundo» desempenha a função de complemento indireto (embora possamos encontrar  argumentos para identificar a função de complemento oblíquo).

Na frase em apreço, se considerarmos que o verbo tirar é usado com o valor de «subtrair algo a alguém”, o constituinte «ao mundo» equivale ao sentido de «um conjunto de pessoas». Deste modo, a frase é equivalente às que se apresentam em (1) e (2):

(1) «Ele tirou Inês a Pedro.»

(2) «Ele tirou Inês ao seu pai.»

Nestes casos, «a Pedro» e «ao seu pai», tal como «ao mundo», desempenham a função de complemento indireto, sendo substituíveis pelo pronome lhe. Estes constituintes têm ainda o traço [+humano] típico do complemento indireto.

Diferente seria uma situação em que o verbo tirar é usado com o sentido de «retirar; mover de algum lugar», como em (3):

(3) «Ele tirou o livro da mesa.»

Na frase (3), o constituinte «da mesa» desempenha a função de complemento oblíquo. Se considerarmos que, na frase em apreço, o constituinte «ao mundo» tem um valor locativo (e não [+humano], como vimos acima), a análise sintática já seria distinta. No âmbito desta interpretação, a frase veicularia o sentido de «tirar Inês de um determinado lugar», o que implicaria que «ao mundo» teria a função de complemento oblíquo. Neste caso, o constituinte já não seria substituível por lhe mas sim por um constituinte como «dali» ou equivalente:

(4) «Determinar tirar Inês dali/ daquele sítio.»

Assim, a identificação da função sintática do constituinte em questão ficará dependente da interpretação dada à frase.

Disponha sempre!

Pergunta:

Relativamente à expressão «ganhar a vida» («adquirir meios de subsistência»), a mesma aparece dicionarizada.

Porém, não encontro referência a uma expressão muito parecida (sem determinante) e que é esta: «Foi através do trabalho que ganhou vida

«Ganhar vida» poderia ser sinónimo de quê?

Obrigado.

Resposta:

A expressão pode ser, nalguns contextos, equivalente a sustentar-se, se for usada com o valor de «alimentar-se», «aguentar-se» ou «resistir»:

(1) «Foi através do trabalho que se sustentou.»

Se, todavia, o sentido, for o de «ter meios para subsistir, por meio de um salário», poderemos não encontrar um verbo que tenha um valor equivalente, sendo necessário usar uma construção como, por exemplo, «conseguir meio de subsistência»:

(2) «Foi através do trabalho que conseguiu meio de subsistência.»

Se atentarmos na expressão «ganhar vida» sem o uso do artigo definido, então poderemos mobilizar sentidos como «adquirir, conseguir vitalidade».

Disponha sempre!

Pergunta:

Em primeiro lugar o verbo elogiar. Queria elogiar o vosso grande e louvável trabalho.

A minha questão está relacionada com a regência do verbo pagar. Estive a ler algumas das vossas respostas com este tema. Contudo, tenho uma dúvida.

Podemos dizer «pagar com dinheiro» e «pagar em dinheiro»? Existem algumas regras específicas para o uso duma e outra preposição?

Obrigado pela atenção dedicada a este tema.

Resposta:

Agradecemos as gentis palavras que nos endereça e que muito nos estimulam.

A locução mais comum é «em dinheiro», com o valor de «em numerário» está dicionarizada1. Assim, será preferível utilizar a construção «pagar em dinheiro».

Não obstante, encontramos registos de uso da preposição com na construção «pagar com dinheiro», que assume um significado idêntico à anterior. Neste caso, a preposição com é usada com o valor de «meio; instrumento». Assim, esta construção poderá também ser usada, embora tenha menos registos de uso2.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

2. Cf., por exemplo, os resultados identificados no Corpus do Português, de Mark Davies.

Pergunta:

Na letra da canção popular «Ó rama, que linda rama», há versos que dizem: «Se houvera quem me ensinara/ quem aprendia era eu.»

Qual é o motivo da utilização do mais-que-perfeito do Indicativo (houvera, ensinara), e não do imperfeito do conjuntivo (houvesse, ensinasse)?

Muito obrigado.

Resposta:

Em sincronia, o pretérito mais-que-perfeito simples é um tempo pouco usado, surgindo sobretudo em textos escritos. No seu lugar, os falantes usam o pretérito mais-que-perfeito composto de forma a localizar uma dada situação no passado. Assim, enquanto a frase (1) praticamente não é adotada, a frase (2) tem plena vitalidade:

(1) «Ele fora meu amigo.»

(2) «Ele tinha sido meu amigo.»

Todavia, em frase pretéritas da língua a situação era distinta. Com efeito, diversos autores deixam registo de situações de uso nas quais, na atualidade, não se recorre ao pretérito mais-que-perfeito do indicativo. Tal ocorre, por exemplo, na frase (3), de Alexandre Herculano, escritor do séc. XIX:

(3) «que fora a vida se nela não houvera lágrimas?»

Nesta frase, hoje usar-se-ia o condicional simples e o pretérito imperfeito do conjuntivo:

(4) «que seria a vida se nela não houvesse lágrimas?»

Situação idêntica parece estar registada nos versos da canção em apreço.

Disponha sempre!

 

1. Exemplo apontado por Oliveira in Raposo et al., Gramática do PortuguêsFundação Calouste Gulbenkian, p. 525.