Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Qual a origem da palavra <i>aniversário</i>?
A formação da palavra e entrada no português

No vigésimo sétimo aniversário do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, a professora Carla Marques passou em revista a etimologia da palavra aniversário e a formação do seu significado.

Apontamento divulgado no programa Páginas de Português, na Antena 2, dia 14 de janeiro de 2024.

Pergunta:

Deparei-me com o exercício de escolha múltipla abaixo que me parece algo ambíguo.

Na minha opinião, a resposta certa é a A, mas depois de consultar vários colegas da área e alunos, obtive mais do que uma resposta (A e B). Será que este exercício carece de reformulação já que num exercício desta tipologia se pressupõe que apenas exista uma resposta correta.

Leia a frase e selecione a mensagem de telemóvel correspondente.

«A D. Teresa pede à Ana para lhe levar o livro.»

A. Ana, preciso do livro hoje. Tem de o trazer esta tarde. Obrigada.

B. Ana, não se preocupe. Não faz mal. Pode trazer o livro amanhã?

C. Olá, Ana! Pode ficar com ele agora e na próxima semana dá-me o livro.

Resposta:

A frase que apresenta claramente uma intenção equivalente à descrita no enunciado inicial é a A. Não obstante, por meio de um processo inferencial, a frase B também poderá visar o mesmo efeito.

O enunciado inicial descreve um ato ilocutório diretivo com valor de ordem, por meio do qual o locutor solicita ao interlocutor que realize a ação de trazer o livro.

Na alínea A, é apresentado um ato ilocutório que visa exatamente a intenção perlocutória assinalada acima: o locutor ordena ao interlocutor que lhe traga o livro e espera que este realize esta ação.

Na alínea B, por meio da última frase, o locutor realiza também um ato ilocutório diretivo, que pode procurar obter como efeito perlocutório a resposta à pergunta feita. O interlocutor poderá, assim, responder apenas «sim» ou «não», mas nada o obriga a realizar a ação de levar o livro. Todavia, poderemos considerar que o enunciado «Pode trazer o livro amanhã?» corresponde a um ato ilocutório diretivo indireto com uma intenção de ordem muito mitigada, o que se justificaria por uma razão de cortesia linguística. Poderemos identificar este processo em perguntas mais ou menos estereotipadas como «Podes passar o sal?» ou «Pode dizer-me as horas?», que visam não uma resposta afirmativa ou negativa, mas sim uma ação específica por parte do interlocutor: passar o sal ao locutor ou dar a indicação das horas. A ser essa a intenção da frase, estaríamos perante um ato ilocutório diretivo indireto que visaria igualmente o efeito descrito no enunciado inicial.

Consideramos, desta forma, que a frase apresentada na alínea B, sem outro contexto, pode ...

Pergunta:

Na frase «A situação política deflagrou em 1383-1385», qual a função sintática de «em 1383-1385»?

Tenho dúvidas se será modificador ou complemento oblíquo.

Obrigada, desde já.

Resposta:

O constituinte em questão tem a função de modificador do grupo verbal.

O verbo deflagrar pode funcionar como transitivo direto, pedindo como argumento um constituinte com a função de complemento direto:

(1) «A tempestade deflagrou um incêndio.»

Com este uso, o verbo tem o sentido de «causar combustão; provocar»1.

Este mesmo verbo pode também ser usado como intransitivo, com o valor de «entrar em combustão; surgir de repente». Neste caso, o verbo não pede complementos:

(2) «A bomba deflagrou.»

Este é o caso da frase transcrita em (3), da qual se pode omitir o constituinte «em 1383-1385» por não ser pedido pelo verbo, o que indica que este desempenha a função sintática de modificador do grupo verbal:

(3) «A situação política deflagrou em 1383-1385.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Malaca Casteleiro, Dicionário Gramatical de Verbos Portugueses. Texto Editores, 2007.

Pergunta:

Uma aluna de PLE nível B1 escreveu a seguinte expressão num texto: «os meus pais levavam eu e a minha irmã».

Corrigi a frase para: «os meus pais levavam-me a mim e à minha irmã». Ela compreendeu a alteração e a substituição do pronome de sujeito eu pelo pronome de complemento de complemento direto me, mas questionou-me sobre a necessidade de incluir a expressão «a mim», uma vez que lhe parece um uso redundante. A pergunta pareceu-me pertinente, mas expliquei-lhe que não podemos omitir «a mim», sob pena de a frase se tornar incorreta (*os meus pais levavam-me e à minha irmã).

Gostaria de confirmar como se pode explicar o uso repetido dos pronomes numa expressão deste género. Trata-se de um verbo transitivo direto e indireto que exige neste caso o complemento direto (me) e o oblíquo («a mim»)? E há alguma forma mais simples de explicar isto a um aluno estrangeiro sem entrar em tecnicismos?

Muito obrigada.

Resposta:

Na frase apresentada em (1), está presente um caso de redobro do clítico:

(1) «Os meus pais levavam-me a mim e à minha irmã.»

Dá-se o nome de redobro de clítico a uma construção em que um argumento é duplamente preenchido por um elemento fonologicamente dependente (um pronome clítico) e por um pronome forte, introduzidos pela preposição a, como em (2):

(2) «Escreveram-te a ti

Note-se que, em termos sintáticos, tanto o clítico como o pronome de redobro desempenham a mesma função sintática. O constituinte que redobra o clítico recebe um acento prosódico mais forte e permite a existência de uma focalização, o que o clítico, por ser uma forma fraca, não permite.

O redobro do clítico também ocorre nas situações em que existem constituintes coordenados. O clítico não aceita coordenação, como se observa em (3):

(3) «*Eles levam-me e te.»

Por esta razão, para que uma coordenação de constituintes seja possível, recorre-se ao redobro do clítico, tal como acontece na frase (1). A construção aí presente permite a coordenação da estrutura «a mim» com o constituinte «à minha irmã», que não poderia coordenar-se com o pronome clítico me1.

Disponha sempre!

 

 

*assinala a inaceitabilidade da construção.

1. Para mais informações, cf., Martins in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p.  2237-2238.              ...

A classificação de <i>que</i> em «felizmente que ele chegou» II
A perspetiva da Gramática do Português

A linguista Carla Marques, consultora permanente do Ciberdúvidas, responde ao gramático brasileiro Fernando Pestana sobre a classificação que é possível fazer da palavra que na frase «felizmente que ele chegou».