Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No verso de Gil Vicente, na cena do Frade do Auto da Barca do Inferno, é dito pelo Frade «Haveis, padre, de vir».

Qual a modalidade mais correta de aqui se identificar com a expressão «haver de», dado o contexto em que surge o verso?

Modalidade deôntica com valor de obrigação ou modalidade epistémica com valor de certeza?

Grata, desde já, pela vossa ajuda!

Resposta:

Não é possível responder com total certeza, uma vez que a resposta fica dependente da interpretação do texto, que é subjetiva.

Não obstante, diria que, do meu ponto de vista, se justifica a associação do enunciado à modalidade deôntica com valor de obrigação, uma vez que a fala do Diabo surge após o momento em que o Frade aceita a condenação. Assim, a tirada do Diabo pode ser interpretada como uma ordem/sentença final dada ao Frade no sentido de este entrar na barca infernal.

Não obstante, aceito que seja também possível identificar na fala a modalidade epistémica com valor de certeza se se interpretar que a intenção do Diabo se associa sobretudo à confirmação de um facto, dado como verdadeiro: o Frade irá entrar na barca infernal.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na carta de Pessoa a Adolfo Casais Monteiro, lê-se:

«Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim.»

Gostaria que me esclarecessem em relação ao ato ilocutório aqui presente. Tratar-se-á de uma situação híbrida: assertivo e expressivo? Em caso afirmativo, algum deles tem mais força?

Gostaria ainda de saber se a classificação do tipo de ato sofre alteração nos enunciados seguintes:

1. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim! (Frase exclamativa)

2. É o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. (Forma verbal no presente do indicativo)

3. É o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim! (Forma verbal no presente do indicativo; frase exclamativa)

Muito obrigada!

Resposta:

A frase apresentada poderá ser interpretada como apresentando dois atos ilocutórios, que poderão ter várias leituras: estes poderão corresponder a:

(i) dois atos assertivos («Foi o dia triunfal da minha vida» e «Nunca poderei ter outro assim»);

(ii) um ato expressivo («Foi o dia triunfal da minha vida») e um ato assertivo («Nunca poderei ter outro assim»);

(iii) dois atos expressivos.

Os atos expressivos assentam sempre na descrição de uma situação que o locutor avalia, expressando o seu estado de espírito, tendo como objetivo a expressão de emoções, sentimentos, avaliações, juízos de valor ou desejos. Entre os atos ilocutórios expressivos, há quem considere a expressão da opinião1, no sentido de o ato ilocutório ser também avaliativo. A leitura feita estará associada à interpretação da intenção do locutor: pretende expressar a crença na verdade do que diz ou pretende expressar o seu estado de espírito? 

Com o ato ilocutório assertivo, o locutor expressa a crença na verdade do conteúdo proposicional do enunciado produzido. 

Atendendo a que este momento da carta de Fernando Pessoa assume um tom algo exultante, poderemos sustentar que no enunciado estão presentes dois atos expressivos. Não obstante, é possível argumentar em contrário, se virmos na passagem um tom mais informativo.

Relativamente aos diferentes tipos de frase, a frase exclamativa é compatível com a interpretação de que a intenção dominante é a de expressar o estado de espírito p...

Pergunta:

Na construção «providenciem o recolhimento da taxa, bem como * da despesa postal», antes de «despesa postal» – asterisco – deve haver obrigatoriamente o pronome demonstrativo o, ou é possível a construção sem ele?

Grato desde já.

Resposta:

 A frase é aceitável sem o pronome demonstrativo o.

 Trata-se de uma construção elítica, na qual se subentende o grupo nominal «o recolhimento». A frase completa seria:

 (1) «Providenciem o recolhimento da taxa, bem como o recolhimento da despesa postal.»

 A elipse é usada muito frequentemente nas construções para evitar construções mais complexas ou alongadas, funcionando como um processo de economia linguística que é usado nos contextos em que é possível recuperar o material linguístico elidido1.

Disponha sempre!

  

1. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2351

Pergunta:

Qual a modalidade encontrada em «A todos volto a agradecer»?

Sendo considerado que o autor nos informa de algo certo (uma ação que toma), não expressando concretamente um juízo de valor, poderia ser considerada uma modalidade epistémica com valor de certeza?

Resposta:

A modalidade presente neste enunciado é a modalidade desiderativa.

Refira-se, antes de mais, que esta modalidade não se encontra entre os tipos de modalidade estudados no ensino básico ou secundário em Portugal.

A modalidade desiderativa exprime valores de vontade, desejo ou esperança1.

Ora, na frase em questão, o locutor expressa a vontade de agradecer aos seus interlocutores.

Disponha sempre!

 

1. cf. Fátima Oliveira e Amália Mendes in Raposo (coord.) Gramática do PortuguêsFundação Calouste Gulbenkian, pp. 634.

Pergunta:

Ciente de que o verbo duchar pertence à vertente brasileira, pode o mesmo aplicar-se no português lusitano?

No contexto de um artigo científico, cujo idioma seja o do país português, seria correto aplicar a expressão "recém-duchado"?

Por outro lado, se considerar as expressões: "recém-higienizado" ou "recém-banhado", qual das três se poderia usar?

Obrigada!

Resposta:

O verbo duchar ou mesmo o substantivo ducha não se usam em português europeu1.

Para este contexto, o mais frequente é o verbo lavar, pelo que se aconselha a forma «recém-lavado». Também é aceitável a forma «recém-higienizado».

Para a forma substantiva, usa-se o termo duche

Disponha sempre!

 

1. Cf. Dicionário Priberam