Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Podia dizer-me a diferença entre «estive a ler durante 2 horas» e «estava a ler durante 2 horas», do ponto de vista do significado?

Para mim, são frases idênticas, porque na combinação de «estar a» + infinitivo há um aspeto de continuidade e, embora estive não seja um verbo na forma do imperfeito («estive a» infinitivo), a frase tem um sentido de duração, pois o verbo não precisa de estar na forma do imperfeito para transmitir a continuidade da ação.

E, formulando a questão de outra forma:

1. Estava a ler quando a Maria chegou

2. Estive a ler quando a Maria chegou

Há alguma diferença entre as duas frases do ponto de vista do significado?

Resposta:

O pretérito perfeito do indicativo localiza uma situação num intervalo de tempo anterior ao momento de fala, descrevendo situações concluídas. Por essa razão, a frase apresentada em (1) descreve uma situação até ao seu ponto terminal (momento em que se deixou de ler):

(1) «Li durante duas horas.»

A combinação do verbo principal com o auxiliar aspetual «estar a» permite perspetivar a situação como durativa e, se o auxiliar for apresentado no pretérito perfeito, a situação é descrita como estando concluída:

(2) «Estive a ler durante duas horas.»

Ao contrário do pretérito perfeito, o imperfeito do indicativo não é adequado para descrever situações anteriores ao momento da enunciação. Este tempo pode, antes, ser usado para descrever a situação no seu decurso, perspetivando-a do seu interior, sem assinalar o seu início ou o seu fim. Por essa razão, frases simples como (3) ou (4) não são aceitáveis, porque nelas se combina o imperfeito com a sinalização do términus da situação.:

(3) «*Lia durante duas horas.»

(4) «*Estava a ler durante duas horas.»

No entanto, frases como (5) ou (6) já seriam aceitáveis porque a oração subordinada temporal «Sempre que ele lançava um livro» funciona como ponto de referência e o imperfeito passa a descrever situações que se repetem regularmente no passado:

(5) «Sempre que ele lançava um livro, eu lia durante duas horas.»

(6) «Sempre que ele lançava um livro, eu estava a ler durante duas horas.»

O imperfeito tem também a capacidade de atribuir duração a uma situação, como na frase (7), na qual este tempo verbal estabelece com a oração temporal uma relação de inclusão, ou seja, a oração «quando a Maria chegou» é incluída no interior da situação durativa «lia»:

<...

Pergunta:

Eu queria saber qual das frases está correta:

1. Ele cuidou que o décimo terceiro trabalho lhe tinha chegado.

2. Ele cuidou que o décimo terceiro trabalho a si tinha chegado.

Obrigado.

Resposta:

Ambas as frases estão corretas uma vez que, neste contexto, é possível usar tanto o pronome lhe como o pronome si.

O verbo chegar pode ser usado como transitivo indireto, construindo-se com um complemento preposicional, como em (1)

(1) «Os alunos chegaram à escola.»

Este verbo pode também ser usado como transitivo direto e indireto, tendo, portanto, um complemento direto e um complemento indireto:

(2) «Ele chegou o pão ao irmão.»

Neste caso, o constituinte com função de complemento indireto pode ser substituído pelo pronome lhe:

(2a) «Ele chegou-lhe o pão.»

Se atentarmos na frase adaptada a partir da que apresenta o consulente, verificamos que

(3) «O trabalho chegou ao João.»

(3a) «O trabalho chegou-lhe.»

Esta mesma estrutura pode ser combinada com o pronome si usado como reflexo ou como recíproco depois de uma preposição:

(4) «O trabalho chegou a/até si.»

Deste modo, as frases apresentadas pelo consulente são ambas possíveis.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «O evento caiu no esquecimento.», o segmento «no esquecimento» não poderá ser complemento oblíquo?

Obrigada.

Resposta:

A construção «cair no esquecimento» é idiomática.

O verbo cair pode ser usado como

(i) verbo intransitivo, não pedindo, portanto, nenhum complemento:

     (1) «Durante a guerra, muitos soldados caíram.»

(ii) verbo transitivo indireto, uso em que pede um complemento oblíquo:

     (2) «Ele caiu na estrada.»

     (3) «Ele caiu sobre o inimigo.»

Não obstante, no caso em análise, «cair no esquecimento» é uma construção idiomática (ver também esta resposta), que tem o valor de «apagar-se da memória»1, e é usada como estrutura fixa, pelo que não há lugar a análise dos seus elementos constitutivos.

 

Disponha sempre!

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

Pergunta:

As minhas saudações a toda a equipe do Ciberdúvidas.

Gramáticas há que sugerem a formação proclítica de orações optativas «Bons olhos o vejam», «Bons ventos o levem», em vez de “Bons olhos vejam-no” e “Bons ventos levem-no”. Se eu entendi bem, poderia levantar a hipótese que orações desse tipo deriva de construção oracional do tipo «Eu desejo (que) …»?

Contudo, se se mudasse a ordem da oração, prevaleceria o fator de próclise “O vejam bons olhos” e “O levem bons ventos” ou mudaria para o fator de ênclise “Vejam-no bons olhos” e “Levem-no bons ventos”?

Porque, segundo gramáticas normativas, orações não podem iniciar por pronome oblíquos átonos. Acredito também que, se mantivesse a conjunção que, ficaria em próclise «Que os vejam bons olhos» e «Que os levem bons ventos», não é? Orações optativas e orações absolutas são a mesma coisa?

Então, que tendes a dizer-me de tudo isso?

Obrigado antecipadamente a toda a equipe por vir sanando muitas dúvidas do nosso idioma ao longo dos anos.

Resposta:

A expressão «bons olhos o vejam» é uma expressão idiomática, pelo que os seus constituintes são colocados com alguma rigidez na estrutura, não sendo possível alterar a sua ordem1. Deste modo, os exercícios de movimentação dos constituintes da expressão acabam por ser um exercício que não corresponde a uma realidade linguística.

Quanto à colocação do clítico, a próclise (colocação antes do verbo) ocorre porque a frase é optativa/exclamativa. Quando a frase inclui uma palavra exclamativa ou a própria frase tem uma natureza exclamativa, esses fatores geram próclise.

Disponha sempre!

 

 1. Não obstante, é possível substituir o pronome o por te: «Bons olhos te vejam».

Pergunta:

No semanário Expresso, num e-mail com uma resenha de notícias, li o seguinte texto: «Irão os israelitas retaliar o Irão?»

«"É um ponto de viragem, estamos num momento perigosamente imprevisível”, considera John Strawson, perito em Estudos do Médio Oriente, em declarações ao Expresso

A minha dúvida é sobre a utilização do verbo retaliar.

«Irão os israelitas retaliar o Irão» ou, o que me parece ser mais correcto, «irão os israelitas retaliar contra o Irão»?

Agradecendo uma vez mais o vosso interessante e útil serviço público, aguardo o vosso esclarecimento.

Resposta:

As duas possibilidades estão corretas.

O verbo retaliar pode ser usado como1:

(i) transitivo direto, com complemento direto

    (1) «A China retaliou os Estados Unidos.»

(ii) transitivo indireto, com complemento oblíquo introduzido pela preposição contra

    (2) «A China retaliou contra os Estados Unidos.»

Uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies, mostra que a construção com a preposição contra é muito frequente em português europeu, o que poderá levar a que se considere uma construção mais correta do que outra, atendendo ao maior grau de exposição a uma do que a outra. Todavia, ambas estão corretas e poderão ser usadas nos mesmos contextos.

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário Gramatical de verbos portugueses. Texto editores.