Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Se possível gostaria de saber as expressões corretas:

«Bolo de laranja» ou «bolo de laranjas»?

«Bolo de ovo» ou «bolo de ovos»?

Grato

Resposta:

Usa-se «bolo de laranja» e, no segundo caso, «bolo de ovos», embora também ocorra «bolo de ovo».

No caso particular da alimentação, os substantivos comuns podem ser usados para designar não entidades particulares, mas antes substâncias. Quando isso acontece é habitual usar-se o singular, pois o nome comum não contável passa a designar-se «conjuntos de objetos ou entidades em que não é possível distinguir partes singulares de partes plurais» (Dicionário Terminológico). Por essa razão se usa «carne de porco» para referir um alimento ou prato e não «carne de porcos» (neste contexto).

Assim, de uma forma geral, as designações de alimentos/pratos usam-se no singular: «bolo de laranja», «sumo de uva», «salada de tomate».

A construção «bolo de ovo» pode ser usada no singular com o mesmo efeito de referência não contável. No entanto, uma pesquisa num motor de busca revela que a construção «bolo de ovos» tem uma grande frequência de usos, o que constitui uma exceção à regra, que se poderá dever à consciência de que o ingrediente ovo não se reduz a uma unidade, mas sim a várias. Nesta leitura, ovos será usado como nome contável.

Disponha sempre!

Pergunta:

Podia ajudar-me a compreender quando se pode utilizar verbos em futuro composto para expressar ações do passado?

Em geral, quantas aplicações esse tempo tem?

Obrigado.

Resposta:

O futuro composto pode ser associado a diferentes valores em função da sua relação com os restantes elementos da frase.

O futuro composto do indicativo (ou futuro perfeito) é construído pelo verbo auxiliar ter no futuro simples do indicativo e pelo verbo principal no particípio passado: «terei falado», «terei dito».

De uma forma geral, tanto o futuro simples como o futuro composto referem um estado de coisas posterior a um ponto de referência absoluto:

(1) «Verei contigo o filme.»

Nesta frase, a forma verei (futuro simples do indicativo) aponta para uma situação posterior ao momento de enunciação. Esta forma do futuro não descreve, todavia, a situação relativamente à sua perfetividade, ou seja, a situação de «ver o filme contigo» não é apresentada nem como concluída nem como estando no seu decurso.

O futuro composto do indicativo normalmente articula-se com um ponto de referência expresso na frase por uma oração adverbial ou um constituinte de natureza adverbial. Se esse tempo de referência apontar para uma situação futura relativamente ao momento de enunciação, o futuro composto descreve uma situação como estando concluída num momento posterior à enunciação:

(2) «Daqui a uma hora, terei concluído o trabalho.»

A situação descrita como «ter concluído o trabalho» é, contudo, anterior ao momento de referência («daqui a uma hora»), ou seja, a conclusão do trabalho acontecerá antes da hora expirar.

Se o tempo de referência for passado relativamente ao momento de enunciação, o futuro composto não indica futuro, assinala sobretudo um valor modal de incerteza por parte do falante:

(3) «Ontem, ele terá passado o dia a estudar.»

Se o tempo de referência coincidir com...

Pergunta:

Na frase «A síndrome do coração partido é uma doença que afeta o músculo cardíaco.», o segmento «do coração partido» considera-se complemento do nome síndrome ou modificador do nome restritivo?

Obrigada pelo vosso trabalho.

Resposta:

O constituinte em questão desempenha a função de complemento do nome.

O nome síndrome é usado na área da medicina com o valor de «conjunto de sinais e sintomas, que não têm obrigatoriamente a mesma causa em todos os casos e que indiciam um determinado estado patológico»1. Trata-se, portanto, de um nome coletivo que denota um dado grupo. Ora os nomes com esta natureza necessitam habitualmente de um complemento que denota a realidade concreta sobre a qual incide a significação2.

Assim, o nome síndrome pode compatibilizar-se com diferentes complementos que permitem que se denote um conjunto concreto de sintomas ou uma dada doença:

(1) «síndrome da imunodeficiência adquirida»

(2) «síndrome de Cushing»

(3) «síndrome de burnout»

(4) «síndrome de Estocolmo»

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

2. Para mais informações sobre os tipos de nomes coletivos, cf. Raposo et al., Gramática do português. Fundação Calouste Gulbenkian, cf. p. 743 e ss.

Pergunta:

Em relação aos verbos passear e deambular, podemos dizer «Ele passeia/deambula NA/ PELA cidade»?

Obrigado.

Resposta:

Ambas as possibilidades são aceitáveis.

O verbo passear pode ser acompanhado de constituintes introduzidos pelas preposições em ou por:

(1) «Ele passeia na cidade.»

(2) «Ele passeia pela cidade.»

Com o verbo deambular, parece haver uma preferência pela preposição por:

(3) «Ele deambulou pela cidade.»

Não obstante, é possível assinalar usos com a preposição em:

(4) «Ele deambulava no quintal.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Gostaria, por gentileza, de saber se é correto classificar o vocábulo afinal, no contexto abaixo, como conjunção explicativa, porque, a meu ver, sua função, na aplicação em questão, se aproxima muito do sentido expresso pela conjunção porque.

«Esqueça aquela garota, afinal ela não merece seus sentimentos.»

Resposta:

A palavra afinal não poderá ser classificada como conjunção. Trata-se de um marcador discursivo.

As conjunções têm, em sintaxe, comportamentos típicos. Entre eles poderemos apontar o facto de não terem mobilidade na frase. Veja-se o contraste de comportamento entre mas e afinal nas frases seguintes:

(1) «Ele já concluiu o trabalho, mas não o entregou ainda.»

(1a) «*Ele já concluiu o trabalho, não mas o entregou ainda.»

(2) «Esqueça aquela garota, afinal ela não merece seus sentimentos.»

(2a) «Esqueça aquela garota, ela, afinal, não merece seus sentimentos.»

Mas tem comportamento típico de uma conjunção, pois não admite alteração do seu lugar na frase, ao passo que afinal se caracteriza por alguma mobilidade dentro da oração. Por esta razão, afinal deverá ser considerado um marcador discursivo.

Os marcadores discursivos desempenham a função de sinalizar o tipo de conexão entre enunciados. Note-se que, em muitos casos, o texto pode não incluir marcadores discursivos, mas estes vêm facilitar a leitura e a interpretação dos enunciados.

No caso particular da frase (2), afinal é usado com um valor de justificação ou explicação, sinalizando que o enunciado que ele introduz funciona como uma justificação do que se afirma no enunciado anterior1.

 

*Assinala a inaceitabilidade da frase.

1. Para mais informações sobre os valores e funcionamento de afinal como marcador discursivo, cf. Ana Cristina Macário Lopes, “Afinal: elementos para uma análise semântico-pragmática”, in