Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

No artigo "Modificadores de frase: grupos sintáticos e orações", não estou a perceber a diferença dos dois últimos exemplos, os quais passo a transcrever:

«(20) «Talvez os compradores estivessem certos.» – modificador de frase

(21) «Nunca tanta pressa vi.» – modificador de grupo verbal»

Talvez não seria também, tal como nunca, um modificador de grupo verbal, dado que também não é demarcado por uma vírgula?

Muito obrigado!

Resposta:

Distinguimos modificador do grupo verbal do modificador de frase pelo comportamento dos constituintes na frase.

Assim, o modificador do grupo verbal integra a função sintática de predicado, pelo que se relaciona diretamente com o verbo do sintagma verbal em que se inclui. Note-se que o predicado é uma função sintática que se define ao nível da frase e que pode incluir no seu interior o verbo e todos os seus complementos e modificadores.

O modificador do grupo verbal tem a característica específica de poder ser interrogado e negado. Vejamos o que acontece na frase transcrita em (1):

(1) «Nunca tanta pressa vi.» / «Todos os dias vi pressa.»

(1a) «Foi nunca que viste tanta pressa?» «Foi todos os dias que vi pressa?»

(1b) «Vi tanta pressa não nunca mas sempre.» / «Vi pressa não todos os dias mas à segunda-feira.»

Refira-se que, neste caso particular, os testes resultam em frases algo estranhas, o que se deve ao valor negativo do advérbio nunca. No entanto, o constituinte nunca admite os testes, o que se conclui pela frase de controlo em que se colocou no lugar de nunca o constituinte «todos os dias», com o qual os testes produzem frases mais naturais.

O modificador de frase, por seu turno, incide sobre a frase na sua totalidade e não apenas sobre o predicado. Distingue-se do modificador do grupo verbal por não admitir ser negado nem interrogado. Veja-se a aplicação do teste à frase transcrita em (2):

(2) «Talvez os compradores estivessem certos.»

(2a) «*Foi talvez que os compradores estivessem certos?»

(2b) «*Não talvez mas certamente os compradores estivessem certos.»

Como se pode observar, os testes não se aplicam à ...

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Balanço do ano letivo de 2023-2024

No ano letivo de 2023-2024, o Ciberdúvidas registou um total de 12 306 982 visualizações, associadas a um total de 8 834 909 utilizadores. Um balanço das atividades do Ciberdúvidas relativas ao ano letivo que finda.

Pergunta:

Gostaria de pedir a vossa ajuda, por favor, para fazer a análise sintática do excerto que se segue, tomando particular atenção ao sujeito e à colocação da vírgula antes do predicado:

«[…] a própria esterilização por ação direta do fogo, isto é, em termos técnicos, a flambagem (prática que não estamos muito habituados a ver, hoje, no meio laboratorial, mas que era importante nos primórdios da medicina), implica também […].»

A frase tem um sujeito simples, embora este se apresente com duas designações diferentes, sendo que a segunda («a flambagem») é uma precisão da primeira («a própria esterilização…»).

Neste caso, e ignorando o parêntese (que seria um modificador do nome?), estará bem colocada a vírgula? Tecnicamente, está a separar o sujeito do predicado, coisa que em princípio não se deve fazer, mas ao mesmo tempo isola a segunda formulação do sujeito, enfatizando a especificidade de se tratar de uma flambagem.

Se puderem esclarecer-me, fico muito agradecido.

Resposta:

A vírgula em questão está bem colocada, sendo mesmo obrigatória.

Comecemos por analisar a frase em questão:

(1) «[…] [a própria esterilização [por ação direta do fogo]complemento do nome [, isto é, em termos técnicos, a flambagem [(prática que não estamos muito habituados a ver, hoje, no meio laboratorial, mas que era importante nos primórdios da medicina)]modificador do nome apositivo,]modificador do nome apositivo]sujeito implica também […].»

Como se pode observar, o sujeito tem, no seu interior, um conjunto de constituintes encaixados, que operam num nível interno ao do sintagma nominal. Assim, o nome nuclear do sintagma nominal é esterilização. É sobre ele que incidem os diversos constituintes:

(i) «por ação direta do fogo»: funciona como complemento do nome, sendo pedido por ele para complementar o seu sentido;

(ii) «isto é, em termos técnicos, a flambagem (prática que não estamos muito habituados a ver, hoje, no meio laboratorial, mas que era importante nos primórdios da medicina)»: este constituinte modifica o nome esterilização, constituindo um aposto explicativo, introduzido pelo conector de reformulação «isto é»;

(iii) «(prática que não estamos muito habituados a ver, hoje, no meio laboratorial, mas que era importante nos primórdios da medicina)»: no interior do constituinte anterior identificamos um novo modificador apositivo, que surge sob a forma de comentário parentético.

Note-se que o constituinte assinalado em (ii) deve estar separado do nome sobre o qual incide por vírgula, devendo este mesmo constituinte ficar isolado por vírgulas, as quais assinalam o seu estatuto de inciso.

Assim sendo, deve existir vírgula depois dos parênteses, como assinalado...

Pergunta:

É correto dizer «Vou dar uma caminhada»?

Resposta:

A expressão é correta, embora se trate de uma construção usada preferencialmente em contextos coloquiais.

Neste caso particular, o verbo dar é usado como verbo leve. Estes verbos perderam o seu sentido pleno e caracterizam-se por terem sofrido um «esvaziamento semântico», pelo que funcionam associados a um constituinte nominal1. Observamos o seu funcionamento em construções como:

(1) «dar animação à festa» (= animar a festa)

(2) «fazer uma intervenção» (= intervir)

(3) «ter lucro» (= lucrar)

Como se observa, o verbo leve em conjunto com o constituinte nominal pode ser parafraseado por um verbo que se relaciona com o nome. O mesmo acontece com a construção apresentada pela consulente:

(4) «dar uma caminhada» (= caminhar)

Assim, as construções com verbos leves são uma possibilidade em língua portuguesa, pelo que não poderemos considerá-las incorretas. Existirão, todavia, opções mais cuidadas que poderão explorar de forma mais rica as opções da língua.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Gonçalves e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp.1214-1218.

Pergunta:

Pretendo saber o significado da palavra "espatuchavam" que encontrei no livro Apenas uma Narrativa, de António Pedro.

Grato.

Resposta:

Não encontramos registo do verbo em dicionários de português. Todavia, a palavra espatuxar tem verbete em dicionários de língua asturiana, com uma forma muito próxima de espatuchar, o que nos indica que o sentido poderá ser similar.

O verbo espatuxar é usado com o significado de «mexer as patas com força; mexer mãos e pés com força, dar com as plantas dos pés na água». Em sentido figurado, pode significar «protestar; rebelar-se contra algo».

Atendendo ao contexto em que surge a expressão na obra assinalada, transcrito em (1), julgamos que as pistas que encontramos no asturiano poderão ser indicativas do seu valor de uso, uma vez que na constituição da palavra será possível identificar o radical pat(a) e o prefixo es-. Este último poderá ser usado com o sentido de iteração (presente em formações como esbracejar ou espernear). Note-se ainda que o verbo é usado numa sequência em que se alude a palmípedes, ou seja, a aves que têm patas com membranas, como as dos patos:

(1) «Os homens do bar estavam todos contentes, como é costume, e riam imenso para que nenhuma dúvida fosse possível sobre a alegria com que espatuchavam os pés de palmípede na água [...].» (António Pedro, Apenas uma Narrativa)