Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Embora eu veja sempre recomendado o uso da preposição de a seguir a «tenho a certeza», parece-me haver excepções.

Por exemplo, no seguinte diálogo:

– Deixaste a porta fechada?

– Tenho a certeza que sim.

Aqui parece-me mais correcto sem a preposição. "Tenho a certeza de que sim" não me parece bem.

Se possível gostaria de um esclarecimento. Obrigado.

Resposta:

Os usos normativos determinam o uso da preposição de após predicados nominais como certeza. Este uso deve ocorrer em diferentes situações:

(i) com uma oração completiva como complemento:

(1) «Tenho a certeza de que ele chegará hoje.»

(ii) com um complemento nominal:

(2) «Tenho a certeza da necessidade de fazer exercício.»

(3) «Tenho a certeza disso.»

Com complemento oracionais, como em (1), tem lugar com alguma frequência, e sobretudo em contextos mais informais, a supressão da preposição de. Os gramáticos consideram que este poderá ser um sinal de mudança linguística em curso dada a frequência de ocorrências detetada1. Não obstante, no presente momento, não poderemos considerar que se trata de uma opção correta.

Deste modo, do ponto de vista normativo, a preposição de deve ser usada na frase apresentada, ainda que a pressão dos usos possa dar a sensação a alguns falantes de que a frase é pouco natural:

(4) «Tenho a certeza de que sim.»

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, Cf. Peres e Móia, Áreas críticas da língua portuguesa. Caminho, pp. 108-143.

«Burro velho não toma andadura»
Significados de um provérbio

A professora Carla Marques explora os significados do provérbio «Burro velho não toma andadura» no seu apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2, em 20/10/2024.

 

Pergunta:

Relativamente ao emprego de comoque – penso que neste caso sejam conjunções –, poderiam dizer-me qual é a forma correta de escrever a seguinte frase?

«Sem lhe responderem perante tamanha postura sisuda, ela assentou com um pestanejo, baixou o olhar para o chão e retirou-se do mesmo jeito como tinha chegado.»

ou: «Sem lhe responderem perante tamanha postura sisuda, ela assentou com um pestanejo, baixou o olhar para o chão e retirou-se do mesmo jeito que tinha chegado.»

Obrigada!

Resposta:

As duas construções são possíveis. No entanto, a opção pela conjunção que parece ser a mais frequentemente adotada.

Acrescente-se ainda que a estrutura «do mesmo jeito» é mais típica da variedade de português do Brasil, como nos indica uma pesquisa no Corpus do Português, de Mark Davies. Por esta razão, se a opção for a de redigir o texto em português europeu, poderá utilizar construções como «da mesma maneira/forma» ou «do mesmo modo», que serão sentidas como mais naturais.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «Sorriu, apontando para o Sol», o segmento destacado corresponde a que função sintática? A um complemento oblíquo?

Agradeço a vossa confirmação.

Resposta:

Na frase em análise, o constituinte «para o Sol» desempenha a função de complemento oblíquo.

Entre as suas várias possibilidades, o verbo apontar pode ser usado como transitivo indireto regendo a preposição para:

(1) «O António apontou para o quadro.»

Neste contexto, o verbo apontar tem o significado de «indicar através dos sentidos; indicar»1 e o constituinte «para o quadro» é um argumento do verbo que desempenha a função de complemento oblíquo.

A mesma situação ocorre na frase apresentada pelo consulente.

Disponha sempre!

  

1. Malaca Casteleiro (dir.), Dicionário gramatical dos verbos portugueses. Texto editores.

Pergunta:

Li a seguinte frase: «O que tiveres feito para a enfurecer, sugiro que pare agora.»

A minha dúvida é se é correto mudar o tempo verbal para : «O que tivesses feito para a enfurecer...» ou «o que tenhas feito para a enfurecer, sugiro que pare agora».

Se não me engano, o uso do verbo ter no futuro do conjuntivo (tiveres) refere-se a uma ação que pode ou não acontecer no futuro, mas acho que a frase no exemplo acima, «O que tiveres feito para a enfurecer, sugiro que pare agora», tem sentido passado.

Muito obrigada antecipadamente pela ajuda!

Resposta:

Com efeito, o futuro do conjuntivo não parece ser a solução mais ajustada à frase e à sua intenção. Será preferível optar pelo presente ou pelo pretérito perfeito composto do conjuntivo, de acordo com as intenções.

Poderá optar-se pelo presente do conjuntivo, que indica a sobreposição das duas situações:

(1) «O que faças para a enfurecer, sugiro que pare agora.»

 Nesta frase, o uso do presente aponta para o facto de a situação descrita como «ter feito para enfurecer» ocorrer até ao momento de enunciação ou então aponta para uma situação que se repete de forma iterativa.

Também o pretérito perfeito composto do conjuntivo pode descrever situações que se sobrepõem ao momento de enunciação:

(2) «O que tenhas feito para a enfurecer, sugiro que pare agora.»

Do ponto de vista aspetual, este tempo verbal também apresenta a situação como concluída, ou seja, no caso em análise verbaliza-se a expectativa de que a situação já tenha terminado.

Por fim, uma frase que inclua o futuro do conjuntivo tem problemas do ponto de vista da semântica temporal:

(3) «*O que fizeres para a enfurecer, sugiro que pare agora.»

Habitualmente, o futuro do conjuntivo assinala um tempo futuro relativamente ao momento de enunciação. Ora, neste caso, solicita-se que se pare uma situação que ainda vai acontecer, o que traz problemas de coesão temporal à frase.

Disponha sempre!

 

* Assinala a inaceitabilidade da frase.