Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Podem dizer-me se a palavra "geodestino" existe em português?

Grata de antemão.

Resposta:

A palavra geodestino não se encontra averbada nos dicionários de língua portuguesa de referência. Não obstante, uma pesquisa na Internet mostra que a palavra é usada com alguma frequência, sobretudo em contextos relacionados com destinos turísticos.

Trata-se de uma palavra bem formada, composta por geo + destino, que inclui o radical geo, elemento que integra inúmeras palavras compostas em língua portuguesa, pelo que poderá ser utilizada com toda a propriedade.

Disponha sempre!

 

N.E. (21/09/2019) – A expressão geodestino turístico (ou simplesmente geodestino) encontra-se em espanhol. Por exemplo, na Galiza, usa-se oficialmente como termo definido por legislação e referente à área do turismo: «[...] se entiende por geodestinos turísticos las áreas o espacios geográficos limítrofes que comparten una homogeneidad territorial basada en sus recursos turísticos naturales, patrimoniales y culturales, con capacidad para generar flujos turísticos y que, junto a su población, conforman una identidad turística diferenciada y singular.» [tradução livre: «entende-se por geodestinos turísticos as áreas ou espaços limítrofes que compartilham uma homogeneidade territorial baseada nos seus recursos turísticos naturais, patrimoniais e culturais, com capacidade de gerar fluxos turísticos e que, juntamente com a sua população, configuram uma identidade turística diferenciada e singular.»] Lei 7/2011, de 27 de outubro do Turismo da Galiza). Este termo adapta-se facilmente ao português, sem grande alterações e parece ocorrer esporadicamente em Portugal, também em referência ao turismo e à sua organização oficial (cf. 

Pergunta:

Um colega de trabalho insiste que «adquirir conhecimento sobre» (por exemplo, «adquirir conhecimento sobre matemática») está errado e que, nestes casos, é necessário utilizar o plural: «adquirir conhecimentos sobre».

No entanto, uma pesquisa no Google mostra o dobro das entradas para a opção no singular. Além disso, pesquisei nos dicionários mais populares e não vejo motivo para considerar errada a construção no singular.

Na vossa opinião, «adquirir conhecimento sobre» está errado ou causaria alguma estranheza a um falante de português de Portugal?

Muito obrigada.

Resposta:

A opção por uma das formas, singular ou plural, traduz sentidos distintos.

De acordo com o Dicionário Houaiss, a palavra conhecimento, na forma singular, pode significar, entre outros sentidos:

(i) «ato ou efeito de apreender intelectualmente, de perceber um facto ou uma verdade, cognição, perceção»: «o conhecimento das causas de um fenómeno»1;

(ii) «coisa que se conhece, de que se sabe, de que se está informado, ciente, consciente»: «o nosso conhecimento sobre o lugar não é muito grande».

Na forma plural, conhecimento poderá significar:

(i) «erudição, sabedoria, cultura, sapiência»: «sem muitos conhecimentos, mas profundamente capaz na sua profissão»;

(ii) «a coisa conhecida; noções, informações, fundamentos, base»: «os conhecimentos geográficos dos antigos».

Assim, a seleção da forma plural ou singular deverá estar de acordo com os sentidos que se pretendem mobilizar em cada contexto específico.

Desta forma, não sendo possível determinar com exatidão qual a intenção do enunciado apresentado, poderemos apenas afirmar que se o significado buscado se relaciona com o ato cognitivo de construção de saber numa determinada área, então será de optar pela forma singular. Se se pretender referir um conjunto de saberes técnicos, de noções numa área, então a forma a adotar será o plural.

 Disponha sempre!

 

1. Os exemplos aqui apresentados são retirados do

Pergunta:

Sei que, diversamente do pronome ne do italiano ou en do francês, o pronome português lhe usualmente não pode empregar-se no lugar de um complemento introduzido pela preposição de, mas gostava de saber, especificamente, se é correto dizer «o uso que se lhe faça», em que o pronome lhe se substitui ao complemento introduzido pela preposição de («de alguma coisa»).

A frase soa-me correta, mas não sei se estou a contaminar a nossa língua com um italianismo (em italiano dir-se-á perfeitamente «l'uso che se ne faccia»).

Muito obrigado pelo excelente trabalho que já tanto me ajudou e ainda ajuda!

Resposta:

No caso particular apresentado pelo consulente, pretende-se determinar se é possível substituir um complemento do nome pela forma dativa do pronome pessoal, como se observa na frase (1a)1:

(1) «Ele faz uso da violência

(1a) «*Ele faz-lhe uso.»

Ora, de acordo com a norma padrão, a substituição do constituinte «da violência» por lhe é incorreta, devendo, antes, usar-se a forma tónica do pronome:

(1b) «Ele faz uso dela

Note-se, porém, que, noutros contextos, é possível assinalar usos do verbo fazer acompanhado do pronome lhe:

(i) quando lhe substitui um complemento indireto: «Ela fez um desenho ao amigo / Ela fez-lhe um desenho»

(ii) em substituição de alguns complementos oblíquos: «Faça uns cortezinhos na carne/nela. / Faça-lhe uns cortezinhos.2»

(iii) em situações de dativo de posse: «O livro é um sucesso. Ele fez-lhe a capa.»

 

Disponha sempre!

* Assinala uma frase agramatical.

 

1. Para facilitar a análise, simplificamos a frase apresentada pelo consulente.

2. Exemplo analisado nesta resposta.

Pergunta:

No período «O transporte é público, já o corpo da mulher não», a palavra pode ser considerada uma conjunção?

Observo que ela acrescenta, de alguma forma, uma ideia de oposição, como se fosse uma conjunção coordenativa adversativa. No entanto, não consegui encontrar nenhuma gramática que a classificasse dessa maneira.

Existe uma lacuna nos manuais ou essa classificação de fato não é possível? "seria, então, um advérbio? Que circunstância indicaria? E que diferença de sentido existiria entre o uso dessa palavra e de mas, por exemplo?

Pergunto ainda se a pontuação da frase em análise está adequada.

Obrigado.

Resposta:

Na frase apresentada pelo consulente estão descritas duas situações que contrastam entre si: o facto de o transporte ser público contrasta com o facto de o corpo da mulher não ser público. Isto significa que o contraste existente na frase não depende da palavra , mas antes do conteúdo semântico da cada uma das orações.

Note-se, ainda, que este contraste poderia ser tornado explícito pela presença da conjunção coordenativa adversativa mas, cuja presença não impede a utilização de .

(1) «O transporte é público, mas já o corpo da mulher não.»1

Este é um uso que é também possível identificar na literatura. Veja-se, a título de exemplo2:

(2) «A irritação ditava-lhe uma violenta resposta, mas já lho não permitia a consciência.» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais. 1860)

Ora, uma vez que a coordenação entre dois termos só pode ser assegurada por uma, e apenas uma, conjunção3, esta construção vem mostrar que não é uma conjunção.

Na verdade, neste contexto, é um advérbio que tem como função marcar o contraste entre «uma entidade A com outra entidade B relativamente à maneira como o f...

Pergunta:

Gostaria de saber se está correta a substituição de portanto por pois nesse caso:

«João não tirou a nota mínima na prova. Não pode ser aprovado, pois.»

Obrigado.

Resposta:

 A substituição de portanto por pois está correta.

No contexto apresentando, portanto e pois funcionam como conectores conclusivos, na medida em que «explicitam uma relação causa-efeito entre dois termos, sendo atribuído ao constituinte afectado pelo conector, o valor de efeito ou consequência da situação reportada pelo outro termo» (Gabriela Matos in Mira Mateus, Gramática da Língua Portuguesa. Caminho, p. 569).

Estas palavras são consideradas conectores e não conjunções por diversos autores (cf. ibidem, p. 565) porque estas apresentam propriedades que as distinguem das conjunções. Entre elas está a possibilidade de não ocuparem a posição inicial de oração, como acontece na frase apresentada pelo consulente.

Refira-se, ainda, que pois só será conector conclusivo em situações em que se encontra posposto (cf. ibidem, p. 573), ou seja, em contextos em que não surge em início de oração (ou frase).

A pontuação é também um fator importante para o uso correto destes conectores. Assim:

(i) quando colocados no início da oração (à exceção de pois), devem levar uma virgula antes: «O Manuel telefonou, logo deve querer ir passear.»

(ii) se forem colocados no interior da oração, devem levar vírgula antes e depois: «O Manuel telefonou, deve, pois, querer ir passear.»

(iii) se colocados no final da frase, devem...