Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Quando é que se deve usar o artigo indefinido e quando é que se o deve[*] omitir?

Nalgumas situações os substantivos soam melhor com artigo e noutras soam melhor sem artigo.

Por exemplo, as frases «tens namorada?» e «sou professor» soam melhor do que as frases «tens uma namorada?» e «sou um professor», mas as frases «comprei uma camisola» e «ontem falei com uns turistas espanhóis» soam melhor do que as frases «comprei camisola» e «ontem falei com turistas espanhóis».

 

[*N.E. – Mantém-se a sequência «se o», embora a sua gramaticalidade seja controversa.]

Resposta:

Em termos gerais, o uso do artigo indefinido está relacionado com a intenção de expressar um valor [± específico].

Assim, se o falante pretender, por um lado, veicular uma leitura com um valor [+específico], «usa o sintagma nominal indefinido para referir uma entidade particular do universo do discurso (ou um grupo particular de entidades), indicando, no entanto, ao ouvinte que a identificação dessa entidade ou grupo não é importante no contexto discursivo – em certos casos (mas não em todos), porque assume que o ouvinte, de qualquer modo, não tem informação suficiente para fazer essa identificação»1, como se verifica nas frases seguintes:

(1) «Li um livro de Saramago.»

(2) «Comprei uma camisola desportiva.»

(3) «Falei com um turista espanhol.»

Por outro lado, quando o artigo indefinido é usado com um valor [-específico], «o falante não tem qualquer referente particular em mente (e por isso se considera que este uso não é referencial)»2. Este valor fica bem patente em usos como:

(4) «Vai ler um livro.»

(5) «Ele falou com um turista.»

(6) «Ele comprou uma camisola.»

Em português, existe também a possibilidade de fazer uso de sintagmas nominais reduzidos, ou seja, de grupos nominais sem determinante3, como se observa no constituinte destacada em (7):

(7) «Lisboa é capital

O uso ou não do artigo indefinido está relacionado com razões pragmáticas, isto é, depende das intenções do falante e da interpretação dada aos enunciados.

Assim, embora não conheçamos um estudo que aprofunde a...

Pergunta:

Surgiu-me uma dúvida em relação à preposição do verbo adaptar.

Normalmente temos presente a preposição a regida por este verbo (ex.: «adaptou-se à nova realidade»), mas é também considerada gramatical a preposição para (ex.: «eu adaptei esta toalha para este fim»)? Qual a diferença?

Gostava de saber a vossa opinião. Obrigada.

Resposta:

Nos dicionários consultados e nas diversas publicações que abordam a questão da regência verbal, não está prevista a construção do verbo adaptar com a preposição paraEste é construído tipicamente com a preposição a:

(1) «Adaptar (a obra) ao teatro»

(2) «Adaptar-se a alguém»

Não obstante, uma busca em corpora de referência do português encontra vários exemplos de regência da preposição para:

(3) «[…] Miguel Rovisco ao adaptar para teatro esta novela camiliana foi ao encontro […]»  (jornal Público in Corpus de referência do português contemporâneo)

(4) «Há uma velha definição romana de advogado ("vir bonus dicendi peritus") que eu gostaria de adaptar para a definição do crítico ideal […]» (Mário de Carvalho in

Pergunta:

Num artigo do consultório deparou-se-me a citação seguinte:

«A irritação ditava-lhe uma violenta resposta, mas já lho não permitia a consciência.» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais. 1860).

Esta frase suscitou-me a dúvida seguinte cujo esclarecimento antecipadamente agradeço.

Pergunto se, corretamente, não deverá antes escrever-se: «…mas já não lha permitia a consciência», isto é, escrever «lha» em vez de «lho», porquanto na 2.ª oração estamos referindo-nos à violenta resposta.

Resposta:

Não erra, na sua frase, o escritor Júlio Dinis. Para interpretarmos devidamente a construção presente na frase é necessário recuperar um excerto um pouco mais longo:

(1) «O conselheiro continuava silencioso, como hesitando no que devesse responder a Augusto. A irritação ditava-lhe uma violenta resposta, mas já lho não permitia a consciência.» (Júlio Dinis, A Morgadinha dos Canaviais. Porto Editora, p. 448)

Consideramos que a forma lho resulta da contração do pronome pessoal lhe, que retoma o nome «conselheiro» com o pronome demonstrativo neutro o, que representa não um grupo nominal, mas a oração «dar uma resposta violenta». Assim, a frase sem  a forma lho ficaria semelhante a (2):

(2) «A irritação ditava-lhe uma violenta resposta, mas a consciência já não permitia ao conselheiro dar uma violenta resposta.»

É evidente que se o autor tivesse optado por retomar apenas o grupo nominal «uma violenta resposta», o pronome contraído teria a forma

Pergunta:

Na frase «O projeto contribuirá para combater as alterações climáticas"», como classificamos a oração «para combater as alterações climáticas»? Final ou completiva?

Obrigada.

Resposta:

No caso em apreço, a oração «para combater as alterações climáticas» é uma oração subordinada completiva.

Para classificar uma oração introduzida por para, teremos de ter em consideração a possibilidade de duas situações:

(i) para é uma preposição regida pelo verbo que, neste caso, forma com ela um predicador complexo1: o verbo rege a preposição e esta rege a oração completiva, como se observa na frase (1), neste caso, com a preposição por:

            (1) «Ele lutou por melhorar a vida das pessoas.»

(ii) para é uma é uma preposição equivalente a «para que»N.E., não sendo, portanto, regida pelo verbo: neste caso, para é independente do verbo e introduz uma oração subordinada adverbial final:

            (2) «Estudou imenso para conseguir passar de ...

Pergunta:

Gostaria de saber qual a classificação certa para a oração subordinada seguinte:

«Não há nenhum [animal] tão grande que se fie do homem.» (Padre António Vieira)

Não pode a oração ser restritiva? O meu raciocínio é este: os animais grandes não se fiam do homem; os animais que são grandes não se fiam do homem; embora haja animais grandes, estes não se fiam do homem.

O «que» não retoma o «animal grande»? O não se fiar é uma consequência da sua grandeza? A grandeza é uma característica/causa que, apesar de existir, impossibilita, tem como consequência o não se fiarem?

Muito obrigada.

Resposta:

A oração «que se fie no homem» é uma subordinada adverbial consecutiva.

Para facilitar a análise, começaremos por colocar a frase apresentada na polaridade afirmativa:

(1) «Há animais tão grandes que se fiam do homem.»

No sentido de esclarecermos a relação da oração «que se fiam do homem» com a subordinante, teremos de determinar a função do advérbio de grau tão. Assim, verificamos que, se o omitirmos da frase, o sentido da frase passa a ser diferente do expresso na frase (1):

(2) «Há animais grandes que se fiam do homem.»

Na frase (2), a oração «que se fiam do homem» é uma subordinada adjetiva relativa restritiva, que delimita um conjunto de «animais grandes» que se caracterizam por confiar no homem.

Na frase (1), está presente um sentido diferente, na medida em q...