Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
É “Mendch” e não “Mendèsh”
Vamos lá repetir 1917 vezes

O realizador britânico Sam Mendes está nas "bocas do mundo", pelo seu último filme, 1917... Um cineasta até de origem portuguesa com um apelido de origem portuguesa que, no entanto, os  media portugueses teimam em pronunciar "à inglesa", como  assinala neste apontamento  a professora  Carla Marques

Pergunta:

No texto "Meu 'caso' com Fernando Pessoa, de André Luiz Oliveira,  o excerto

«Essa sensação de intervalo e essa ânsia doída contida nos versos do poeta refletem aquilo que não temos e não vemos, mas desejamos e queremos: navegar por dentro, rumo ao lugar encoberto onde reina o mais legítimo de nós. (...) Mas o espírito argonauta era pouco, e a forma que eu encontrei para comungar essa paixão pela palavra do poeta foi na música.»

constitui, predominantemente, o exemplo de uma sequência argumentativa, certo?

O uso da primeira pessoa e o facto de traduzir uma interpretação da mensagem do poema conduzem-me a este raciocínio...

Muito obrigado.

Resposta:

Antes de mais, é importante referir que o texto apresentado é heterogéneo, incluindo sequências de natureza distinta. Não obstante, a natureza dominante do texto disponível no endereço indicado pelo consulente é narrativa, uma vez que apresenta uma sucessão de eventos alinhados numa linha temporal e inclui predicados transformados e uma causalidade narrativa1.

No interior do texto, é possível identificar uma sequência mínima argumentativa. Esta natureza é evidenciada pelo facto de nela se apresentarem um conjunto de dados que levam a uma conclusão2. Esta sequência está presente neste excerto:

«Nesse livro, Fernando Pessoa traduz em linguagem metafórica uma antiga aspiração do ser humano, um sentimento obscuro de que existe um mundo interior a ser descoberto, à semelhança dos descobrimentos portugueses. Essa sensação de intervalo e essa ânsia doída contida nos versos do poeta refletem aquilo que não temos e não vemos, mas desejamos e queremos: navegar por dentro, rumo ao lugar encoberto onde reina o mais legítimo de nós.»

Podemos concluir que, pelo exposto, o texto em questão é predominantemente narrativo, incluindo uma sequência argumentativa.

Disponha sempre!

 

1. Estas são algumas das características apresentadas por Adam para identificar a sequência argumentativa (cf., para maior desenvolvimento, J.-M. Adam, Les textes. Types et prototypes. Nathan, 2001, pp. 45-58).

Pergunta:

Na frase «ele é da outra equipa», estamos perante um determinante demonstrativo ou indefinido?

Obrigada.

Resposta:

No caso em apreço outra é um determinante demonstrativo, porque é antecedido de determinante artigo definido (a) e porque expressa um valor deítico (referindo uma equipa que se encontra distante do locutor) ou um valor anafórico (tendo como referência uma equipa mencionada anteriormente à de que se fala no momento). Só um conhecimento mais alargado do contexto de produção da frase poderá esclarecer qual o valor que a palavra expressa.

Não se trata de um determinante indefinido porque estes não são acompanhados por artigo definido e indicam um valor indefinido1, como acontece em (1):

(1) «Ele é de outra equipa.»

Disponha sempre!

 

1. Esta distinção é feita, por exemplo, por Nascimento e Lopes in Domínios. Gramática da Língua Portuguesa. Plátano Editora, p. 164 e 166.  

Discriminar a descriminação
Quando um -e- e um -i- fazem toda a diferença

A confusão constante entre descriminar / descriminação discriminar / discriminação pode levar a mensagens estranhas e contraditórias. Carla Marques alerta para a importância de se distinguir claramente o -e- do -i- de modo a que não se confunda «deixar de considerar crime»  com «colocar alguém de parte».

Pergunta:

Como devemos fazer a análise sintática da seguinte frase: «É só não roubares, que não vais para a cadeia.»?

Tenho sérias dúvidas.

Considerar «que não vais para a cadeira» como o sujeito da frase parece-me muito acomodatício. Parece-me mais razoável considerar essa oração como uma oração coordenada explicativa como seria na frase: «Não roubes, que não vais para a cadeia».

Mas neste caso onde está o sujeito da oração «É só não roubares»? Será aqui o verbo "ser" impessoal como em «É meio-dia agora.»?

Podem-me ajudar?

Resposta:

 A frase apresentada é semanticamente equivalente a uma construção condicional:

(1) «Se não roubares, não vais para a cadeia.»

Na frase em análise, a primeira oração, «É só não roubares», expressa a condição necessária para que tenha lugar a consequência, que é expressa pela segunda oração, «que não vais para a cadeia».

Neste caso, não poderemos falar de uma verdadeira relação de subordinação, pois a frase não segue a estrutura prototípica, introduzida por conjunções / locuções conjuncionais como se, caso ou no caso de. Estamos perante uma construção com orações finitas com valores condicionais. Estes valores podem inclusive ser expressos por uma coordenação de orações por meio da conjunção e:

(2) «Não roubes e não vais para a cadeia.»

Estamos, portanto, perante uma frase composta por duas orações que têm um sujeito de segunda pessoa do singular (tu), que está subentendido.

Disponha sempre!