Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Fiquei responsável de redigir uma ata de reunião e corrigiram o tempo verbal associado à passagem para o discurso indireto. A frase era mais ou menos a seguinte:

«As professores X e Y comunicaram que, no dia Z, seria feita a entrega de prémios do concurso de poesia.»

Escrevi "seria", usando o condicional, partindo do princípio de que devia respeitar as regras de transposição de discurso direto para indireto, assumindo que em discurso direto teria sido usado o futuro do indicativo. Saliento que a ata foi lida e aprovada na reunião seguinte, portanto depois do referido evento (a entrega de prémios) já ter sido realizado.

Consultei as gramáticas de referência, como a da Gulbenkian, e percebi que de facto, por vezes, as regras mais "clássicas" não devem ser aplicadas, mas não encontrei qualquer regra que justifique que tenham corrigido "seria" e passado para "será". Há alguma regra que eu desconheça e que faça com que esta correção esteja correta?

Agradeço muito se me puderem responder, porque estou tentada a continuar a escrever no condicional, quando se tratar da citação em discurso indireto sobre algo que se prevê para o futuro.

Obrigada.

Resposta:

Na transposição da frase em questão para o discurso indireto é possível recorrer tanto ao futuro do indicativo como ao condicional.

As regras preconizadas pela gramática tradicional, e normalmente ensinadas em contexto pedagógico, são muitas vezes redutoras face às possibilidades de construção do discurso relatado1. Assim, uma frase simulada de discurso direto como (1) pode ser reproduzida em discurso indireto pelas frases (2) a (4), entre outras:

(1) «Comunicamos que, no dia x, será feita a entrega de prémios do concurso de poesia.»

(2) «As professores X e Y comunicam que, no dia Z, será feita a entrega de prémios do concurso de poesia.»

(3) «As professores comunicaram que, no dia Z, seria feita a entrega de prémios do concurso de poesia.»

(4) «As professores X e Y comunicaram que, no dia Z, será feita a entrega de prémios do concurso de poesia.»

A seleção destes tempos/modos verbais respeita a consecutivo temporum2, na medida em que o importante é que se veicule a ideia de que a entrega será feita posteriormente ao ato de comunicar.

Note-se ainda que a opção pelo futuro do indicativo ou pelo condicional também poderá estar relacionado com uma intenção modal. Assim, o futuro expressa uma modalidade epistémica com valor de certeza ao passo que o condicional se pode associar à modalidade epistémica com valor de probabilidade.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Duarte in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2597.

2. Vejam-se algumas combinações possíveis entre o tempo da subordinante e o da subordinada em Oliveira in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 543 – 544.

Pergunta:

Gostaria de saber se em «Vinha pela rua a falar sozinho para si mesmo: "Não irei lá!"» é correta a construção «sozinho para si mesmo». Não seria um pleonasmo «sozinho para si mesmo»?

Muito obrigada e parabéns pelo trabalho!

Resposta:

A expressão pode ser entendida como algo redundante, mas tal não significa que esteja incorreta, pois poderá estar ao serviço de uma intenção expressiva.

O adjetivo sozinho significa «que está completamente só, sem mais ninguém», ao passo que falar é uma atividade que, normalmente, envolve mais do que uma pessoa.  Deste modo, a expressão «falar sozinho» já pressuporá que o locutor desenvolve a atividade de falar apenas para si, não a dirigindo a um interlocutor, pelo que não será necessário acrescentar «para si mesmo» porque a expressão não traz informatividade à frase.

Não obstante, a expressão «falar sozinho para si mesmo» pode implicar outras intenções como o contraste entre «falar para dentro» vs. «falar para o ar»; «falar baixo» vs. «falar alto» e, neste caso, a expressão «para si mesmo» já não será redundante.

Deste modo, o conhecimento do contexto de produção e das intenções do locutor será importante para a avaliação da pertinência do uso de «para si mesmo» na frase em análise.

Disponha sempre!

Pergunta:

Li numa notícia a frase «A metade do corpo dela estava frio, frio».

Minha dúvida é sobre a concordância nominal, porque, intuitivamente, diria «A metade do corpo dela estava fria, fria», mas tenho dúvidas sobre a expressão partitiva «a metade de» e a possibilidade de usar a forma masculina do adjetivo.

Agradeço imensamente vossa ajuda.

Resposta:

No caso em apreço, é possível a concordância tanto no masculino como no feminino, embora seja preferível esta última para evitar ambiguidades.

A concordância com sintagmas que incluam uma expressão partitiva como «metade de» pode ocorrer de duas formas. Vejamos o seguinte exemplo:

(i) a concordância faz-se com a expressão «metade de», ficando o adjetivo no feminino singular:

(1) «Metade das alunas estava calma.»

(ii) a concordância faz-se com alunas, ficando a adjetivo no feminino plural:

(2) «Metade das alunas estavam calmas.»

No caso em apreço, embora a concordância se possa fazer tanto com «metade de» como com corpo e uma vez que a expressão partitiva determina uma palavra que refere uma realidade concreta, será preferível a concordância com «metade de». Ao fazer-se a concordância com corpo, a frase poderá expressar a ideia de «corpo na globalidade», o que entra em conflito com «metade de», podendo passar a ideia de que todo o corpo estava frio e não apenas a sua metade. Por esta razão, para garantir a clareza, parece preferível optar pela forma feminina singular do adjetivo:

(3) «A metade do corpo dela estava fria, fria.»

Disponha sempre!

Pergunta:

1. Entusiasmada, a professora sorriu.

2. A professora, entusiasmada, sorriu.

3. A professora sorriu entusiasmada.

Nas três frases, pode considerar-se que o adjetivo tem um valor adverbial e que desempenha a função sintática de modificador do grupo verbal em todas as ocorrências (grupo móvel)? Considerando a possibilidade de, nas frases 1 e 2, ser um modificador do nome apositivo, esta função sintática pode ser constituída por um grupo adjetival (considerando a informação do Dicionário Terminológico, onde se lê que, tipicamente, são grupos nominais ou orações)?!

Ou é obrigatório subentender-se uma oração subordinada adjetiva relativa explicativa («que estava entusiasmada»)?! Neste caso, só na frase 2 isso seria possível...

Grata desde já pelos vossos esclarecimentos.

Resposta:

Nas frases em questão, o constituinte entusiasmada é um adjetivo que desempenha a função de modificador do nome apositivo.

Antes de mais, comprovamos que, nas frases apresentadas, entusiasmada é um adjetivo pelo facto de admitir flexão em grau, sendo compatível com o advérbio muito:

(1) A professora, muito entusiasmada, sorriu.

Para além disso, comprova-se que entusiasmada incide sobre o grupo nominal «a professora» pelo fenómeno de concordância. Uma alteração no género e número deste grupo nominal geraria alterações no adjetivo, como se observa nas frases (2) e (3):

(2) «O professor, muito entusiasmado, sorriu.»

(3) «As professoras, muito entusiasmadas, sorriram.»

A função sintática desempenhada pelo adjetivo identifica-se pelo facto de este incidir sobre o grupo nominal, independentemente da sua posição na frase. Uma vez que não constitui um argumento do nome professora, desempenha a função de modificador do nome. Trata-se em particular de um modificador apositivo porque não restringe o valor referencial do nome, constituindo, antes, um comentário que pode ser eliminado da frase sem prejudicar a sua gramaticalidade. Neste caso particular, o modificador constitui um comentário avaliativo sobre a realidade denotada pelo nome1, pelo que o adjetivo terá uma natureza avaliativa (mais do que adverbial). Recorde-se que os adjetivos avaliativos «expressa[m] uma avaliação subjetiva, geralmente da responsabilidade do falante, acerca das entidades referidas pelo sintagma nominal»2.

Refira-se ainda que quando os adjetivos não são identificadores, ainda que incidam sobre o nome, podem surgir noutros locais da frase3, o que justifica a possibilidade das frases (4) e (5), sem que a função do adjetivo se altere.

Outra leitura possível é a de que o adjetivo poderá ter uma leitura não atributiva (com...

Pergunta:

Qual é a forma correta para a seguinte frase: «As filhas aprendiam a serem como as mães» ou «as filhas aprendiam a ser como as mães»?

Na minha opinião, a segunda frase é a correta. Contudo, tenho visto defender-se a primeira opção.

É possível elucidarem-me?

Resposta:

Neste caso, a forma preferencial é a que inclui o infinitivo não flexionado (na sua forma dita impessoal).

Embora existam muitas flutuações no caso de uso dos infinitivos não flexionados (infinitivo impessoal) e flexionado (infinitivo pessoal), os usos gerais indicam que quando um verbo tem uma oração completiva infinitiva como complemento direto, o infinitivo não flexionado é preferido na maior parte das construções1. Esta é a situação presente na frase transcrita em (2), o que justifica a preferência pelo infinitivo não flexionado:

(2) «As filhas aprendiam a ser como as mães.»

Disponha sempre!

 

1. Há, todavia, exceções. Para mais informações, cf. Barbosa e Raposo in Raposo et al., Gramática do português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1927-1934.