Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber qual a forma mais correta de classificar a seguinte oração que tem como e quando na seguinte frase:

«E o menino contava esta maravilha com a sua inocência costumada, como quando repetia a história de José do Egito, que ouvira ler a um vizinho.»

Deve ser considerada como subordinada comparativa ou subordinada temporal?

Obrigada.

Resposta:

No segmento frásico em questão, as orações em questão são ambas subordinadas: uma oração comparativa, que opera ao nível da frase, e uma oração temporal encaixada (de acordo com a tipologia prevista no Dicionário Terminológico), que funciona ao nível da oração.

Antes de mais, vejamos que a oração «quando repetia a história de José do Egito» opera num plano hierárquico inferior ao da oração comparativa, desempenhando a função de modificador. Trata-se de uma oração subordinada adverbial temporal que é sintaticamente equivalente a uma construção como «durante toda a infância»:

(1) «E o menino contava esta maravilha com a sua inocência costumada, como (fizera) durante toda a infância.»

Já a oração introduzida por como é, de acordo com o quadro previsto no Dicionário Terminológico, classificada como uma oração subordinada comparativa, que, neste caso, é elítica, pois omite o verbo. A oração completa poderia ser a que se apresenta em (2):

(2) «E o menino contava esta maravilha com a sua inocência costumada, como fazia quando repetia a história de José do Egito, que ouvira ler a um vizinho.»

A oração comparativa tem, portanto, encaixada no seu interior uma oração temporal, que, por seu, turno, tem encaixada no seu interior uma oração subordinada adjetiva relativa («que ouvira ler a um vizinho»).

Refira-se ainda que existem outras propostas diferentes das que se consideram no quadro do ensino não universitário em Portugal, que permitem uma outra classificação da oração introduzida por como. Neste âmb...

Pergunta:

Já vi em inúmeros livros recomendações sobre a reprovação de usar «eis que» como sinônimo de porque para estabelecer ideia de causa.

Mas a pergunta é: seria correto classificar esta referida expressão como conjunção temporal?

«Estava no alpendre de minha casa repousando, eis que vislumbro bem de longe algo estranho no céu, um óvni.»

Resposta:

No caso em apreço, «eis que» é equivalente a uma locução conjuncional com valor temporal.

Podemos considerar várias possibilidades de construção com eis.

Por um lado, na qualidade de advérbio de designação, eis é usado para apresentar algo ou alguém que é referido de seguida na frase:

(1) «Eis o meu irmão, acabado de chegar.»

O advérbio eis pode ser acompanhado de uma oração introduzida pela conjunção que, como em (2):

(2) «Eis que chega o meu irmão.»

Neste caso, o advérbio eis não forma uma locução com que. Eis tem a função de apresentar a oração que se segue.

Noutros casos, encontramos registos de usos nos quais «eis que» é usado como locução equivalente a «de repente»1, como acontece na frase apresentada pelo consulente, aqui transcrita em (3):

(3) «Estava no alpendre de minha casa repousando, eis que vislumbro bem de longe algo estranho no céu, um óvni.»

Este uso é equivalente à locução «eis senão quando», que tem um valor equivalente:

(4) «Estava no alpendre de minha casa repousando, eis senão quando vislumbro bem de longe algo estranho no céu, um óvni.»

Disponha sempre!

<i>Nunca</i>
Um advérbio de tempo

Do ponto de vista da integração numa classe de palavras, nunca é um advérbio de negação ou um advérbio de tempo? A resposta é dada no apontamento da professora Carla Marques.

 

(Apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2)

 

Pergunta:

A minha dúvida: «Festas de Lisboa é no largo Madragoa!» ou «Festas de Lisboa são no largo Madragoa!»?

Sendo Festas de Lisboa uma "marca", faz-me sentido utilizar o verbo no singular...

Resposta:

Neste caso, é preferível a concordância do verbo no singular.

Quando o sujeito e o predicativo do sujeito têm um valor de número diferente (singular e plural), o verbo ser tem tendência a flexionar no plural1.

No entanto, no caso em apreço, estamos perante uma situação particular. O sujeito «Festas de Lisboa» é equivalente a um título, o que leva a que seja interpretado como uma entidade única. Este facto desencadeia uma concordância verbal pelo sentido, o que justifica o recurso ao singular2:

(1) «Festas de Lisboa é no largo Madragoa!»

Note-se, ainda, que em casos semelhantes ao analisado pode ocorrer concordância no plural se o sujeito incluir um determinante artigo. Nesta situação, far-se-ia a concordância no plural:

(2) «As Festas de Lisboa são no largo Madragoa!»

Disponha sempre!

 

1. Cf. 1. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2483.

2. Para mais informações, cf. Idem, Ibid., p. 2455-2457.

Pergunta:

O verbo sobrevoar tem voz passiva?

Pode dizer-se «fui sobrevoado por um avião», por exemplo?

Obrigado.

Resposta:

O verbo sobrevoar pode ser usado em construções passivas. No entanto, a frase apresentada terá um uso duvidoso no quotidiano.

De uma forma geral, os verbos transitivos admitem forma passiva. Estes caracterizam-se por selecionar um argumento interno com o papel temático de paciente, que desempenha a função sintática de complemento direto, e um argumento externo, que tem o papel temático de agente e que desempenha a função sintática de sujeito. Na forma passiva, as frases com estes verbos descrevem tipicamente situações em que uma das entidades envolvidas sofreu algum tipo de mudança.

Ora, o verbo sobrevoar é transitivo direto, pelo que admite ser usado na passiva, o que aliás se pode comprovar por usos identificados no Corpus do Português, de Mark Davies, similares ao que aqui se apresenta:

(1) «Ao princípio de o dia, aviões da Nato tinham sobrevoado a capital bósnia, depois de uma coluna de camiões governamentais ter sido atacada por forças sérvias bósnias em a região ocidental de Sarajevo.» (Público, 1995)

O verbo sobrevoar constrói-se normalmente com um argumento interno com a função de complemento direto que tenha um valor locativo, ou seja, «sobrevoar algum local». É mais rara a construção «sobrevoar alguém»:

(2) «O avião sobrevoou os jovens.»

Neste caso, «os jovens» será entendido como o local onde os jovens se encontram. Esta construção com complementos de natureza human...