Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Após várias pesquisas, estou bastante confusa... Na classificação morfológica, que tipos de advérbios podemos encontrar?

Obrigada!

Resposta:

Do ponto de vista morfológico, os advérbios são pouco interessantes porque, por norma, são palavras invariáveis e o seu comportamento não motiva a identificação de subclasses relevantes para o estudo da estrutura da palavra ou da sua flexão. Neste campo, poderemos apenas mencionar o estudo dos advérbios formados com o sufixo -mente.

Pelo contrário, o tratamento dos advérbios enquanto classe de palavras é muito rico e tem permitido propostas muito diversificadas e até radicais. A identificação das subclasses pode adotar critérios sintáticos, relacionados com o comportamento das palavras na frase, e/ou semânticos, relacionados com a sua significação.

Os vários programas de português e documentos de referência curricular têm, ao longo do tempo, acusado esta oscilação de propostas teóricas, o que também traz incertezas à prática didática. Em termos diacrónicos, poderemos recordar que, mais recentemente, esteve em vigor a proposta constante do Dicionário Terminológico, documento de referência para os estudos gramaticais no ensino não universitário. Todavia, a entrada em vigor em 2015 do Programa e Metas Curriculares do Ensino Básico trouxe uma proposta distinta, mais próxima da que tradicionalmente se tinha considerado no ensino. Este documento foi, posteriormente, substituído pelas Aprendizagens Essenciais para o Ensino Básico, que, por seu turno, não indicam quais as subclasses do advérbio que devem ser tidas em consideração no ensino, referindo apenas o advérbio como classe a estudar e apontando o advérbio relativo, como subclasse a abordar no 8.º ano de escolaridade (A este propositivo, ver também esta

Pergunta:

Envio breve citação da obra de Aquilino Ribeiro, Terras do Demo:

«Para mais, veio longe o Inverno, cedo saindo das profundas, onde o Diabo o gerou para tormento da Serra, com borrifos, ventania e o carujo lá em cima, entre as barrocas, a fazer manta aos lobos para dizimar os rebanhos. E com ele veio o taró que corta as orelhas e os beiços e o suão que parece uma navalha de salteador a picar, lento e malvado, o corpo todo. Mal se podia arredar passo fora de telha. À noite, no serão — que para poupar creosende Rosa amalhoava com outras na sua loja — todas clamavam que era castigo de Deus pelos muitos pecados dos homens, e que temporais tão duros só podiam ser sinal de fim do mundo. Mimosos e felizardos os que tinham os cabanais bem providos de lenhas, e não lhes faltava carniça e salpicão na salgadeira e batata farinhota no monte!» Terras do Demo, p. 59

O que significa «fazer a manta» neste contexto?

Muito Obrigado.

Resposta:

Podemos interpretar como uma metáfora que indica a formação de nevoeiro denso que escondia os lobos. 

Pelo contexto, a expressão parece querer significar que o vento e tudo o que ele arrastava consigo, em particular o carujo (ou seja, o nevoeiro), davam disfarce aos lobos, que assim tinham as condições ideais para atacarem os rebanhos, pois ficavam escondidos debaixo da "manta" que se formava. 

Disponha sempre!

Pergunta:

Antes de mais, muito obrigada pela utilidade gigantesca desta página.

Uma vez que a palavra frio pode funcionar como adjetivo e nome, estou com dúvidas na construção desta frase comparativa:

Hoje está tanto/ tão frio como ontem.

Deve usar-se tão ou tanto? E será preferível utilizar quanto em vez de como?

Muito obrigada.

Resposta:

Será a interpretação da frase que determinará a seleção de um dos advérbios: tão ou tanto.

Recordemos, antes de mais, que tão e tanto(a/os/as) são advérbios que podem funcionar como o primeiro termo da construção de comparativo de igualdade: «a forma tão surge com adjetivos e advérbios e tanto coocorre com nomes e com verbos:

(1) «Ele é tão simpático quanto a irmã.»

(2) «Ele chegou tão cedo quanto a professora.»

(3) «Ele tem tantos livros quanto a professora.»

(4) «Ele trabalha tanto quanto a irmã.»

Se atentarmos na frase apresentada pela consulente, verificamos que, se não considerarmos a presença da elipse de um elemento, não poderemos considerar frio como adjetivo, visto que não incide sobre um nome. Consequentemente, frio será nome, o que levará ao uso do advérbio tanto:

(5) «Hoje está tanto frio como ontem.»

Se a frase correspondesse ao que se apresenta em (6), na qual frio incide sobre dia, sendo, deste modo, um adjetivo, o advérbio a usar seria tão:

(6) «Hoje está um dia tão frio como ontem.»

Neste contexto, poderemos considerar a possibilidade de a frase apresentada pela consulente poder corresponder a uma construção elítica, na qual se omite o nome dia, mantendo-se frio um adjetivo:

(7) «Hoje está tão frio como ontem.»

De qualquer forma, diga-se que esta será uma frase que só funcionará numa situação comunicativa em que os interlocutores estejam detentores da informação que lhes permita recuperar a informação elidida, não devendo, portanto, ser apresentada como frase prototípica ou ser objeto de análise modelar em contexto escolar.

<i>Sic</i>
A palavra latina que assinala o erro

A professora Carla Marques aborda o significado e o contexto de uso da palavra latina sic.

 (Apontamento incluído no programa Páginas de Português, na Antena 2, de 22/09/2024)

Pergunta:

Aproveito essa oportunidade para agradecer a toda a equipa do Ciberdúvidas o trabalho que têm desenvolvido incessantemente ao longo dos anos. A plataforma tornou-se um recurso mais que valioso para muitos seguidores da lusofonia e, sobretudo, permitam-me aqui uma nota, um meio de preservação e pesquisa de particularidades que destacam precisamente o português de Portugal, bastante e imerecidamente preterido hoje em dia em materiais didáticos estrangeiros e pela Internet fora.

Ao assunto.

1. Apareceu-me uma frase:

«[O sobrinho]… respondeu-me com o braço por cima dos meus ombros, cresceu quase meio metro a mais do que eu e tem gosto em sentir que nos protege (...)» (P., 18/08/24, por B.W.).

Embora eu tenha visto tal uso diversas vezes em edições precolendas portuguesas (Público, etc.), ouvido estar em plena circulação no português do Brasil e tenha sido o fenómeno registado em:

1. Dicionário Priberam

e 2. Infopedia – nos exemplos não verificados pelos editores e na descrição do verbete, sempre me deixa em dúvida a "convivência" das duas expressões, a meu ver, distintas: «qualquer coisa mais (do) que qualquer coisa» e «qualquer coisa a mais».

Na maioria esmagadora dos resultados que obtive ao pesquisar, a preposição a surgia na formação «a mais do que qualquer coisa», enquanto a regência verbal («... corresponde a mais do que metade...») ou nominal («referência/algo referente a mais do que...»), e não como parte da locução comparativa única. Ou, se ocorria «a mais», era seguida de um ponto final: «tantas vezes a mais»; «uns anos a mais»; «ficou com moedas a mais», etc. O mesmo aco...

Resposta:

No contexto apresentado, o uso da locução «a mais» é possível e está correto.

A locução adverbial «a mais» é uma expressão fixa que pode ser usada com o valor de «além do desenvolvido ou necessário; a maior, em excesso, de sobra» (Dicionário Houaiss)

Assim, na frase em apreço, identificamos uma oração principal, aqui simplificada na frase transcrita em (1)

(1) «Ele cresceu quase meio metro a mais.»

A esta oração acrescenta-se uma oração subordinada de valor comparativo, que na sua forma completa ficaria como se exemplifica em (2):

(2) «Ele cresceu quase meio metro a mais do que eu cresci.»

Na frase original, o verbo da oração subordinada está omitido, tal como acontece muito frequentemente com as orações subordinadas comparativas:

(3) «Ele cresceu quase meio metro a mais do que eu.»

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça.

Disponha sempre!