Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Poder-me-ia esclarecer sempre o ato de fala presente na frase «Agora é tempo de tornar reais as promessas da Democracia», presente no discurso de Martin Luther King?

É possível considerar um ato de fala diretivo? E assertivo?

Muito obrigado.

Resposta:

Podemos considerar que a frase em apreço configura um ato ilocutório diretivo indireto.

Antes de mais, recordemos que existe uma diferença entre as expressões «ato de fala» e «ato ilocutório». O ato de fala é um conceito que descreve as ações realizadas por um locutor através de um enunciado, visando intencionalmente obter algo. Um ato de fala é composto por três atos: o ato locutório, que corresponde ao enunciado pronunciado na sua materialidade linguística; o ato ilocutório, que corresponde ao ato realizado pelo locutor quando pronuncia um determinado enunciado; o ato perlocutório, que corresponde ao efeito produzido por um ato ilocutório no interlocutor. 

Neste caso particular, interessa-nos identificar o ato ilocutório veiculado pelo enunciado. Considerando que os atos ilocutórios diretivos têm o objetivo ilocutório procurar levar o interlocutor a realizar uma ação futura, poderemos considerar que, no contexto em que foi produzido o discurso político, o locutor tinha a intenção de incitar os interlocutores a uma ação que permita tornar reais e concretas as ideias da democracia. De acordo com essa interpretação, estamos perante um ato ilocutório diretivo.

Trata-se, todavia, de um ato ilocutório diretivo indireto porque o locutor não expressa uma ordem de forma direta. Esta ordem é atenuada por meio do recurso a uma frase declarativa, que, no entanto, pode ser interpretada como equivalente a (1), onde a ordem é apresentada de forma direta:

(1) «Vamos tornar reais as promessas da Democracia.»

Não consideramos que a frase apresentada pelo locutor veicule um ato ilocutório assertivo porque a intenção do enunciado não parece estar veiculada a um valor de verdade da afirmação. Por essa razão, não consideramos que a frase seja equivalente à afirmação apresentada em (2) porque o objetivo ilocutório não parece resumir-se, neste...

Pergunta:

Pode um sítio ser simpático? E um objecto? É a simpatia exclusiva dos seres vivos?

Conheço uma pessoa que regularmente afirma «este sítio é simpático» ou «este jantar é simpático», mas não consegue clarificar exatamente o que isso significa. Gera-se então a discussão do que significa ser simpático e se pode ser aplicável a lugares e objectos inanimados.

dicionário Priberam define simpático como «que inspira simpatia». Consigo conceber que isso se aplique a um local (mas não uma refeição) até ler a definição de simpatia no mesmo dicionário: «Sentimento de atração moral que duas pessoas sentem uma pela outra.» Esta definição nem dá latitude para animais serem simpáticos (discutível), mas parece de todo fechar a porta a objetos. Isto é, até ler a definição de moral: «Não físico nem material (ex.: estado moral). = ESPIRITUAL.» Um sítio pode invocar uma atração espiritual, mas se formos por este caminho temo que já nos estejamos a afastar demasiado do cerne da questão.

Recapitulando: pode a palavra simpático ser aplicada a seres não vivos?

Resposta:

O adjetivo simpático pode surgir em construções aplicado a entidades não humanas.

O adjetivo simpático deriva do nome simpatia e dele herda os traços semânticos que, nas aceções mais gerais, contribuem para a descrição de uma «afinidade moral, similitude no sentir e pensar que aproxima duas ou mais pessoas»1. Também pode descrever uma «impressão agradável, disposição favorável que se experimenta em relação a alguém que pouco se conhece»1 ou referir uma «pessoa que costuma ser agradável, delicada, afável»1. Podemos, assim, concluir que simpatia/simpático nas aceções denotativas previstas nos dicionários se aplica a entidades humanas.

No entanto, na língua, é possível recorrer a processos de extensão semântica, mais ou menos criativos, que permitem usos que à partida não estavam previstos. Estes procedimentos podem ocorrer, por exemplo, por meio de recursos expressivos que exploram usos criativos da linguagem. Tal pode ocorrer com o adjetivo simpático, que, por exemplo, por meio da construção de uma hipálage2, pode ser aplicado a entes não humanos. Tal acontece porque este recurso permite a transferência de uma característica humana para um animal ou objeto. Neste contexto, no Corpus do Português, de Mark Davies, na secção histórica, os usos do adjetivo simpático aplicado a diversas realidades estão bem documentados, o que mostra que nem sequer estamos perante um modismo recente:

(1) «Trazia um vestido simples, simpático, alegre, um grande avental claro – e os dentes brancos s...

Pergunta:

Gostaria de saber se o verbo ligar pode ser usado como intransitivo na frase seguinte que aparece nas instruções de utilização de um dispositivo médico.

«Desligue o dispositivo e ligue novamente.»

Na minha opinião, nesta frase falta o objeto direto e, por isso, deve ser alterada da seguinte forma: «Desligue o dispositivo e ligue-o novamente.»

Muito obrigada pela resposta!

Resposta:

O verbo ligar, usado com o sentido de «pôr em funcionamento», é transitivo direto, pelo que deve ser acompanhado de um constituinte com a função de complemento direto.

Deste modo, na frase em questão, deverá ser usado o pronome -o:

(1) «Desligue o dispositivo e ligue-o novamente.»

O verbo ligar pode ser usado intransitivamente com o sentido de «combinar» (2) ou de «telefonar» (3):

(2) «A saia e o casaco não ligam.»

(3) «Sempre que quiser, pode ligar.»

Disponha sempre!

Pergunta:

Como classificar a expressão «como um salvador» em «ele foi imaginado como um salvador»?

Resposta:

No caso em apreço, o constituinte «como um salvador» tem a função de predicativo do sujeito.

A frase transcrita em (1) é passiva e corresponde à frase ativa (2):

(1) «Ele foi imaginado como um salvador.»

(2) «Uma pessoa imaginou-o como um salvador.»

Na frase (2), o pronome -o desempenha a função de complemento direto e «como um salvador» é o predicativo do complemento direto.

Quando a frase é convertida na forma passiva, o complemento direto -o passa a sujeito, assumindo a forma ele. Por seu turno, o constituinte «como um salvador», que predicava sobre o complemento direto, passa a ter como núcleo o sujeito, pelo que assume a função de predicativo do sujeito.

Disponha sempre!

«Inocentou-se aquele réu»
A passiva de -se

A questão de saber se a frase «Inocentou-se aquele réu» se encontra na passiva dá tema ao apontamento da professora Carla Marques (divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2, em 3/11/2024).