Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Como se faz a enumeração de nomes/verbos com regimes preposicionais diferentes numa frase sem alterar a ordem dos verbos/nomes? Qual das seguintes opções está correta?

«Os alunos aprendem a entender, lidar com e resolver os problemas.»

Ou «Os alunos aprendem a entender, lidar e resolver os problemas»?

«O estudo procura verificar se há uma identificação com ou alheamento aos valores atuais por parte dos jovens.»

Ou «O estudo procura verificar se há uma identificação ou alheamento aos valores atuais por parte dos jovens»?

Resposta:

Na escrita, não é aconselhável a enumeração assente em verbos (ou outras classes de palavras) com regências diferentes, ou combinando verbos sem regência com verbos com regência. É possível, sim, enumerar verbos com a mesma regência. No caso em que a enumeração envolver palavras que regem diferentes preposições, o ideal será encontrar processos alternativos que evitem esta opção.

Deste modo, nas frase em questão, é possível propor outras estruturas que assegurem o rigor da frase sem perder a ideia de situações cumulativas, como, por exemplo:

(1) «Os alunos aprendem a lidar com a situação, entendendo e resolvendo os problemas.»

(2) «O estudo procura verificar se, por parte dos jovens, há uma identificação com valores atuais ou um alheamento a estes.»

Neste último caso, seria possível subentender «a estes», terminado a frase em alheamento.  

Disponha sempre!

Pergunta:

Desde já, quero agradecer-lhes pela excelente dedicação com que respondem às nossas dúvidas.

A minha questão refere-se ao uso de algumas palavras no plural. Por exemplo:

«Ainda que revelassem alguma apreensão, pai e filha assomaram as cabeças para o interior e adentraram o compartimento.»

Segundo esta frase, poderia substituir-se «cabeças» por «cabeça», ou ficaria ambíguo?

«Ainda que revelassem alguma apreensão, pai e filha assomaram a cabeça para o interior e adentraram o compartimento.»

A mesma dúvida surge com outras palavras, como «sorriso/ coração/alma, mente/ espírito»:

«Depois de ter passado muito tempo nesse estado depressivo, os amigos recuperaram os sorrisos», ou «Depois de ter passado muito tempo nesse estado depressivo, os amigos recuperaram o sorriso»?

«A Júlia e a Maria sentiam muita tristeza nos corações/ almas/ mentes/espíritos», ou «A Júlia e a Maria sentiam muita tristeza no coração/ alma/ mente/espírito»?

Obrigado!

Resposta:

No caso em apreço, é possível aceitar os dois tipos de concordância.

Poderemos optar pela concordância gramatical, na qual cabeça surge no plural concordando com o sujeito composto:

(1) «Ainda que revelassem alguma apreensão, pai e filha assomaram as cabeças para o interior e adentraram o compartimento.»

Não obstante, é possível também optar por uma concordância siléptica, ficando o nome cabeça no singular uma vez que se assume, pelo sentido, que se refere a cabeça de cada um (pai e filha):

(2) «Ainda que revelassem alguma apreensão, pai e filha assomaram a cabeça para o interior e adentraram o compartimento.»

No entanto, considerando que há possibilidade de ambiguidade, a melhor opção é a que se apresenta em (1), na qual cabeça surge no plural, indicando claramente que se fala da cabeça de cada uma das pessoas que surgem no sujeito.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça.

Disponha sempre!

Pergunta:

Relativamente à frase que se segue, perguntava-vos se o verbo levar admite neste contexto a preposição destacada:

«Uma criança quando amada terá o hábito de levar esse sentimento PARA os outros.»

Obrigado

Resposta:

A preposição preferível é a preposição a, adotando a frase a estrutura que se apresenta em (1):

(1) «Uma criança quando amada terá o hábito de levar esse sentimento aos outros.»

Em primeiro lugar, deve usar-se a preposição a porque o constituinte «os outros» desempenha a função de complemento indireto, uma função que, habitualmente, é introduzida pela preposição a.

Em segundo lugar, a preposição para, quando combinada com o verbo levar, assume sobretudo um sentido locativo: «levar de um lugar para o outro»; «levar algo para aquele local», pelo que não será a mais ajustada para o uso em análise. 

Disponha sempre!

Pergunta:

É possível que a sintaxe do verbo deixar admita a preposição destacada?

«Ana deixou uma carta PARA Rui.»

Obrigado.

Resposta:

A preposição para é admissível na frase em apreço. Todavia, esclareça-se que esta preposição não está dependente do verbo deixar porque não introduz um constituinte cuja função se defina em relação ao verbo. Na verdade, o constituinte «para o Rui» relaciona-se com o substantivo carta, desempenhando a função de modificador restritivo do nome.

Pelas razões atrás expostas, o verbo deixar não exerce influência sobre a preposição para na frase.

Se o que se pretende é indicar o paciente da ação de «deixar a carta», a preposição adequada será a preposição a, porque o constituinte desempenhará a função de complemento indireto:

(1) «Ana deixou uma carta ao Rui.»

Disponha sempre!

Pergunta:

No texto «em 10 anos tivemos muitas ideias más», a continuação deverá ser «foram todas aquelas que eram necessárias para encontrar as boas» ou «foram todas aquelas que foram necessárias para encontrar as boas»?

Agradeço antecipadamente a vossa atenção.

Resposta:

As duas possibilidades são aceitáveis. Veiculam, contudo, significados ligeiramente distintos.

A opção pelo pretérito perfeito, na forma foram, serve para descrever uma situação passada que já está concluída, fechada. O uso do pretérito imperfeito permite descrever uma situação perspetivada num tempo passado alargado. A situação é descrita no seu decurso e não se sabe se foi concluída.

Assim, a opção por um destes dois tempos verbais prender-se-á com a intenção do locutor: pretende descrever um situação dada concluída? Ou pretende colocar a tónica do processo de procura das ideias? Em função disso, selecionará respetivamente o pretérito perfeito ou o pretérito imperfeito.

Não obstante, verifica-se um problema na qualidade da frase, pois a opção pelo pretérito perfeito levaria, a adotar a construção proposta pelo consulente, à repetição da mesma forma verbal, o que torna a frase pouco elegante:

(1) «[…] foram todas aquelas que foram […]»

Convém então acrescentar que a construção proposta é um pouco pesada porque inclui muitos verbos. A eliminação de algumas das formas verbais poderá melhorar a construção frásica. Fica uma sugestão:

(2) «Em 10 anos tivemos muitas ideias más: todas aquelas que eram/foram necessárias para encontrar as boas.»

Também é possível eliminar as formas verbais e a oração relativa, o que tornará a frase mais simples e mais elegante para o ouvido:

(3) «Em 10 anos tivemos muitas ideias más: (todas) as necessárias para encontrar as boas.»

Disponha sempre!