Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Eu venho estudando a gramática italiana, e me deparei com o vocábulo italiano ovvero, «congiunzione disgiuntiva».

A respeito desse vocábulo italiano, o dicionário bilíngue Martins Fontes: Italiano–Português (São Paulo: 2012) apresenta como possíveis traduções: ou, «ou então».

Minha dúvida é esta: se pode usar a locução «ou então» no lugar da conjunção disjuntiva ou em qualquer oração?

Exemplos:

1. «Suas palavras podem ser sinceras ou (ou então) falsas.» (Dicionário: italiano–português, p.685)

2. «Ou (ou então) preste atenção, ou (ou então) saia.»

Caso contrário, como usar de modo certo «ou então»?

Em que situação usá-lo? Se não for pedir demais. Por favor, gostaria que explicasse de modo mais acurado.

Desde já, o meu muitíssimo obrigado.

Resposta:

A locução «ou então» pode ser usada com um valor disjuntivo similar ao da conjunção ou. Por essa razão, poderá surgir em muitos contextos onde aparece ou:

(1) «Vamos ao cinema ou/ou então vamos à praia.»

Esta é a situação verificada também na frase 1. apresentada pelo consulente na pergunta que nos endereça, na qual a locução «ou então» expressa um valor de opção ou de alternativa entre os termos coordenados.

No entanto, a conjunção correlativa «ou… ou» não é equivalente a «ou então… ou então», como se verifica em (2):

(2) «Ou vamos ao cinema ou vamos à praia.»

(2a) «*Ou então vamos ao cinema ou então vamos à praia.»

Conclui-se assim que «ou então» não poderá ser associado ao primeiro membro coordenado, pois a frase fica agramatical. Esta situação verifica-se porque a locução «ou então» terá tendência para ativar uma interpretação inferencial que assenta numa leitura exclusiva da disjunção, ou seja, «ou então» será preferencialmente usado em frases que convoquem a leitura de que apenas um dos membros da coordenação é verdadeiro.

Por esta razão, a frase (3) será possível:

(3) «Ou presta atenção ou então saia.»

A locução «ou então» ativa a interpretação de que não se verificando a oração «presta atenção», a alternativa será «saia». Com a estrutura «ou então» parece ser difícil ativar uma leitura inclusiva em que ambos os membros coordenados podem ocorrer em simultâneo:

(4) «Ou assina o pai ou assina o filho, ou ambos.»

(4a) «?Ou assina o pai ou então...

<i>Ir</i>
Do verbo de movimento aos movimentos da vida

A versatilidade do verbo ir, desde os significados de deslocação espacial às combinações plurais que permite, na crónica* de Carla Marques.

*Crónica emitida no programa Páginas de Português, na Antena 2, no dia 19 de setembro de 2021.

Pergunta:

Maria Helena Mira Mateus, na sua Gramática da Língua Portuguesa, pág. 266, diz que «quando o objecto directo é o pronome relativo quem, ocorre obrigatoriamente precedido da preposição a

Em virtude disso fiquei na dúvida se construções, como «Eu vi quem o viu» e «Eu vi quem o atropelou» – bem que corriqueiras – não seriam erróneas.

Em que contexto é que o relativo quem deve vir obrigatoriamente precedido da preposição a?

Muito obrigado!

Resposta:

Não poderemos avaliar o rigor da interpretação apresentada pelo consulente na questão porque não nos foi possível identificar a edição da Gramática da Língua Portuguesa, de Mira Mateus et al. citada. 

Não obstante, na 5.ª edição, revista e aumentada, desta obra, é dito de forma clara que «quem, precedido de preposição, usa-se com antecedente exclusivamente humano, como objeto indireto, e como oblíquo; quando precedido da preposição de marca também o genitivo» (p. 663). Para confirmar esta afirmação, apresentam-se os exemplos aqui transcritos como (1), (2) e (3):

(1) «Apareceu o homem a quem fizeram tanto mal.»

(2) «Eis a pessoa sobre quem tanto falaram.»

(3) «Está ali o homem de quem perguntaste o nome.»

Para melhor compreender o funcionamento do relativo quem, é importante distinguir duas situações: aquelas em que este integra uma oração subordinada adjetiva, que tem, portanto, um antecedente expresso; aquelas em que surge sem antecedente expresso, integrando uma oração subordinada substantiva.

Nos casos em que tem antecedente expresso, o relativo quem só ocorre em oração relativa introduzida por preposição, desempenhando as funções sintáticas referidas por Mira Mateus acima.

Já nas orações relativas sem antecedente, quem desempenha qualquer função sintática, podendo não ser introduzido por preposição, como acontece nas funções de sujeito ou de complemento direto, como se observa em (4) e (5):

(4) «Quem tudo quer tudo perde.»

Pergunta:

Por que a maior parte das pessoas conjuga os verbos nos tempos errados?

Por exemplo:

«Eu queria ir ao cinema com você!»

[queria é só se desistiu de querer por alguma circunstância ou se não tem mais condições de continuar querendo, porque já não dá mais tempo ou já não dá mais certo, ou seja, é quero nesse caso aí...]

«Eu não sabia que você tinha toda essa habilidade!»

[tinha é só se deixou de ter por alguma circunstância do destino ou se abandonou o que já tinha, ou seja, é tem nesse caso aí...]

Fiz a busca no Google (para ver se esclarecia de vez a respeito das dúvidas...), e isso só tornou o caso ainda mais confuso e desorientado!

Pois muito bem, no aguardo de seu retorno!

Resposta:

Na verdade, não poderemos afirmar que nos casos apresentados os verbos estão conjugados erradamente. Para compreendermos o uso do imperfeito do indicativo, teremos de analisar os valores que este traduz: temporais ou modais.

As frases em análise incluem verbos conjugados no pretérito imperfeito do modo indicativo. Este tempo tem um valor semântico de passado, o que lhe permite localizar as situações num intervalo temporal anterior ao momento da enunciação.

Não obstante, pode ser também usado com um valor unicamente modal associado a diferentes intenções. Este uso observa-se com frequência na interação oral, pois o uso do imperfeito do indicativo permite atenuar o valor menos cortês associado ao presente do indicativo ou ao imperativo. Comparem-se as seguintes frases:

(1) «Quero um café.»

(2) «Traz-me um café.»

(3) «Queria um café.»

O cotejo entre as três frases coloca em evidência a capacidade modal que o imperfeito tem de atenuar o valor de ordem direta (mais ameaçador para o interlocutor), convertendo-o num pedido polido (menos ameaçador para o interlocutor), associado a uma intenção pragmática de delicadeza.

Outra possibilidade de uso com valor modal do imperfeito do indicativo está presente na segunda frase apresentada pelo consulente, aqui transcrita como (4):

(4) «Eu não sabia que você tinha toda essa habilidade.»

De novo, o imperfeito não é usado com valor temporal, pois não tem a função de localizar uma situação no passado. É antes usado para expressar que o locutor não tinha uma expectativa positiva relativamente a determinada habilidade do interlocutor1.

Um valor semelhante está presente na frase (5):

(5) «O ...

Pergunta:

«Ele sempre costumava fazer comentários maldosos sobre os colegas, contra o que sempre fui.»

Há alguma impropriedade na frase acima?

Obrigado.

Resposta:

A frase apresentada não aparenta ter qualquer impropriedade.

Esta é composta por duas orações: uma oração subordinante (1) e uma oração subordinada relativa (2):

(1) «Ele sempre costumava fazer comentários maldosos sobre os colegas»

(2) «contra o que sempre fui»

A oração subordinada é uma relativa de frase, o que significa que a locução «o que» tem como referente toda a oração subordinante. Este facto permite afirmar que a oração subordinada é equivalente a (3):

(3) «Sempre fui contra (o facto) de ele sempre costumar fazer comentários maldosos sobre o colegas»

Ainda no caso da oração em particular, o sujeito é uma primeira pessoa do singular subentendida, desempenhando o constituinte «contra o que» a função sintática de complemento oblíquo / complemento relativo1.

Relativamente ao facto de a oração subordinada ser introduzida pela preposição contra, poderemos verificar que está é regida pelo verbo ser («ser contra alguma coisa»), o que motiva o seu aparecimento em início de oração.

Disponha sempre!

 

1. De acordo com a proposta de E. Bechara, Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Lucerna, p. 346.