Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Na frase «siga até à estrada alcatroada», o verbo seguir deve ser considerado principal intransitivo (e «até à estrada alcatroada», modificador do grupo verbal), pois poderíamos dizer «Siga», «Siga depois», «Siga pela estrada alcatroada»?

Muito obrigada.

Resposta:

Na frase apresentada, o verbo seguir é transitivo indireto e «pela estrada alcatroada» ou «até à estrada alcatroada» são constituintes que têm a função de complemento oblíquo.

O verbo seguir pode ser usado como

(i) verbo intransitivo:

     (1) «Ordenou que os trabalhos seguissem.»

(ii) verbo transitivo direto:

     (2) «Ele seguiu os colegas.»

(iii) verbo transitivo indireto:

     (3) «Ele seguiu por aqui.»

     (4) «Ele seguiu (depois) pela estrada alcatroada.»

      (5) «Ele seguiu até à estrada alcatroada.»

Para distinguir os casos em que o verbo está a ser usado como intransitivo daqueles em que surge como transitivo indireto, podemos fazer uso de testes sintáticos que focalizam o verbo e seus complementos. Entre eles, usaremos o teste da construção pseudoclivada. Apliquemo-lo às frases (3) e (4): 

    (3a) «O que ele fez foi seguir por aqui.»

    (3b) «*O que ele fez por aqui foi seguir.»

   ...

Pergunta:

Na frase «este percurso pedestre começa num miradouro», o verbo começar deve ser considerado principal transitivo indireto (e «num miradouro», complemento oblíquo), já que, se disséssemos «este percurso pedestre começa agora», estaríamos a transmitir outra ideia (nesta última frase começar seria verbo principal intransitivo e agora, modificador do grupo verbal)?

Muito obrigada.

Resposta:

A análise proposta pela consulente é correta, dando conta de um comportamento distinto do verbo começar nas duas frases.

O verbo começar pode ter naturezas diversas:

(i) verbo intransitivo:

     (1) «A aula começou.»

(ii) verbo transitivo direto:

     (2) «O João começou o trabalho.»

(iii) verbo transitivo indireto:

      (3) «O trabalho começa na página dois.»

Para identificar os complementos do verbo, distinguindo-os dos modificadores, podemos fazer uso de dois testes sintáticos: o teste da estrutura pseudoclivada e o teste de clivagem. Estes têm como objetivo separar o modificador do verbo e seus complementos. Apliquemo-los às frases apresentadas pela consulente.

(i) Teste da estrutura pseudoclivada:

    (4) «O que este percurso pedestre faz é começar num miradouro.»

    (4a) «*O que este percurso pedestre faz num miradouro é começar.»          

  ...

Pergunta:

Na loja online onde trabalho estão sempre a usar expressões como «envios gratuitos para encomendas superiores a x» ou «aproveite já milhares de produtos com envios gratuitos», contudo isto soa-me muito mal.

Acredito que não seja errado usar o plural das duas palavras «envios gratuitos», mas soa-me melhor dizer «envio gratuito para encomendas superiores a x» ou «aproveite já milhares de produtos com envio gratuito».

Fui pesquisar grandes marcas na área e maior parte usa as duas palavras, no singular, nestas e em expressões similares a esta. Alguém me pode ajudar neste sentido?

Obrigado

Resposta:

A opção pelo singular ou pelo plural fica dependente da intenção associada à expressão.

O singular designará uma situação única, enquanto o plural descreverá um conjunto de situações.

No contexto apresentado, o mais comum será, com efeito, o recurso ao singular, «envio gratuito», uma vez que, à partida, o cliente fará uma única encomenda e será o envio dessa encomenda singular que será gratuito. O mesmo se aplica à expressão «milhares de produtos com envio gratuito», se o que se pretende afirmar é que cada encomenda feita terá envio gratuito.

Não obstante, se o que se pretende é descrever a empresa como uma entidade que opta por enviar gratuitamente todos os produtos encomendados, poder-se-á optar por uma afirmação como «A empresa faz envios gratuitos a partir de X».

Disponha sempre!

Pergunta:

Conforme a gramática, os verbos repensar e pensar pedem a preposição em:

«Pensei no problema.»

«Repensei no caso.»

Mas tenho visto a omissão da preposição em frases como:

«Vamos repensar o mundo.»

«A iniciativa é repensar o que deve ser mudado.»

«Vamos repensar o nosso vocabulário?»

«É preciso repensar o sistema educacional.»

«É necessário pensar o mundo.»

Então a minha pergunta é: a regência verbal nesses casos está correta, por conta do sentido do verbo repensar nessas frases, ou o correto seria pôr a preposição "em"?

Muito obrigada pela atenção e pelos preciosos esclarecimentos de sempre!

Resposta:

As construções do verbo pensar e seus derivados sem recurso à preposição são possíveis.

O verbo pensar admite vários tipos de uso:

(i) como verbo intransitivo:

     (1) «Penso, logo existo.»

(ii) como verbo transitivo direto:

     (2) «Penso o contrário dele.»

      Segundo Celso Luft, a construção transitiva direta do verbo veicula significados como «avaliar pelo raciocínio», «julgar», «imaginar», «supor»1;

(iii) como verbo transitivo indireto:

     (3) «Penso nesta situação.»

      Luft associa esta construção aos significados “meditar”, “ter na mente” ou “lembrar-se”2.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Celso Luft, Dicionário prático de regência verbal. , p. 398.

2. Id. Ibid.

Pergunta:

Na resposta "Adjetivos qualificativos vs. adjetivos relacionais", Ana Martins afirma que os adjetivos relacionais ocupam posição pós-nominal (depreende-se que seja sempre) e dá como exemplo "monocromático".

Ora, no conhecido filme de animação Madagáscar, um dos pinguins refere-se à zebra como "meu monocromático amigo". Isto estará errado?

Por outro lado, na mesma resposta diz-se que os adjetivos relacionais não são graduáveis. Então, não é correto considerar que um enredo é "kafkianíssimo"?

A resposta citada refere, ainda, que os adjetivos relacionais não podem ocorrer em posição predicativa, o que me espanta, pois é possível dizer que "um jornal é diário ou semanal". Ou não estão os adjetivos diário e semanal, neste caso, em posição predicativa? Finalmente, esclarece-se que os adjetivos relacionais não têm antónimos. No entanto, podemos considerar que policromático é o antónimo de monocromático... ou não?

Não pretendo pôr em causa a resposta fornecida, mas resolver a minha dificuldade em distinguir os adjetivos relacionais dos qualificativos!

Grata pela vossa atenção e parabéns pelo excelente e meritório trabalho!

Resposta:

A resposta dada por Ana Martins aborda apenas as características regulares e típicas do adjetivo relacional, daí não prever exceções ou casos particulares.

Consideremos, agora, os aspetos focados pela consulente:

I. Os adjetivos são graduáveis quando se podem associar a uma escala. Por essa razão, os adjetivos relacionais típicos não variam em grau, uma vez que formam com o nome uma relação fechada que não é suscetível de variar segundo uma escala. Por exemplo, de um polícia não se poderá afirmar que é «muito ou pouco civil». No entanto, em contexto figurados/de natureza estilística, a subclasse pode moldar-se à expressão de sentidos não literais, que se poderão processar através de graduação do adjetivo. Será o que explica a possibilidade de «Enredo kafkianíssimo» ou «uma invasão pouco americana».

II. Geralmente, os adjetivos relacionais não aceitam a posição predicativa. Há, no entanto, exceções, previstas1: 

     (i) o adjetivo relacional pode estar ao serviço de uma construção contrastiva (explícita ou implícita), o que pode acontecer em (1):

          (1) «O jornal é diário (não semanal).»

     (ii) «os adjetivos relacionais formados a partir de outros adjetivos relacionais, como amoral, monocromático ou multirracial, ao contrário das suas bases, aceitam facilmente a função predicativa»2.

III. Tradicionalmente, os adjetivos relacionais não se podem antepo...