Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Que preposição é que empregamos em contextos como este:

A obra foi apresentada à época do evento...

A obra foi apresentada na época do evento...

A preposição a ou em?

A minha dúvida dá-se em razão de dizermos «isso deu-se quando? Em 2 de janeiro», por exemplo. Por outro lado, dizemos também «aos 2 de janeiro».

O emprego do a é aí galicismo?

Muito obrigado!

Resposta:

A construção preferida pela norma será «na época de». No entanto, «à época de» também será aceitável.

A preposição utilizada para localizar uma situação num dado intervalo de tempo é tipicamente a preposição em, pelo que a construção apresentada em (1) poderá ser sentida como mais normativa:

(1) «A obra foi apresentada na época do evento.»

Não obstante, a locução «à época» é usada como equivalente de «naquela época», em construções como as que se apresentam de seguida:

(2) «Segundo Décio Freitas em seu livro Palmares: A Guerra dos Escravos: “não é fácil saber de onde foi que Jorge Velho partiu para ir combater Palmares, se de São Paulo ou do Piauí (...) no entanto um memorial dirigido ao rei pela sua viúva e seus oficiais afirma que à época vivia no Piauí” (pg. 144)»1

(3) «Mais de metade da população do concelho é hoje uma população urbana, com expectativas e exigências muito diferentes da população de agricultores e pequenos empregados dos serviços públicos, que caracterizava o concelho à época do 25 de Abril.»2  

Encontramos a construção inclusive em Bechara:

(4) «[…] mas o fato se explica porque tais adjetivos em -ês e -or eram uniformes no português antigo, à época dessas derivações adverbiais.»3

Refira-se, ainda, que a expressão estará alinhada com «ao tempo», locução composta por a + nome, registada por Énio Ramalho, sem qualquer identificação com os galicismos: «tempo, ao: ele estava ao t. exilado em Espanha (naquele tempo); Paris era ao t. o centro cultural da Europa e do mundo; ela era ao t. uma encantadora menina (nessa altura); dout...

Pergunta:

Na frase «A dedicação é correspondente ao amor», qual é a função sintática de «ao amor»?

Será complemento indireto, se aceitarmos que o verbo ser é aqui auxiliar e que «é correspondente» é igual a corresponde?

Ou será complemento do adjetivo correspondente?

Resposta:

O constituinte «ao amor» desempenha a função sintática de complemento do adjetivo.

A forma correspondente é, na frase, um adjetivo, não sendo equivalente ao particípio do verbo corresponder, que tem a forma correspondido. Por esta razão, não poderemos considerar que estamos perante um complexo verbal no qual o verbo ser funciona como auxiliar.

O adjetivo correspondente, por sua vez, ao ser formado a partir do verbo corresponder, mantém a estrutura argumental do verbo, como se verifica nas frases (1) e (2):

(1) «O título corresponde ao conteúdo.»

(2) «O título é correspondente ao conteúdo.»

Desta forma, o adjetivo correspondente seleciona um complemento introduzido pela preposição a (assim como o verbo corresponder seleciona um complemento introduzido pela mesma preposição), o que implica que estamos perante um complemento do adjetivo.

Disponha sempre!

Pergunta:

Em «trabalhador braçal», «braçal» é complemento do nome?

Resposta:

O adjetivo braçal tem a função de modificador do nome restritivo.

Braçal é um adjetivo relacional, formado por derivação sufixal do nome braço, o que implica que semanticamente equivale ao grupo preposicional «de braço».

Frequentemente, os adjetivos relacionais desempenham a função sintática de complemento do nome. Não obstante, é preciso distinguir dois tipos de adjetivos relacionais:

(i) os adjetivos relacionais argumentais, que se combinam com nomes que designam eventos ou situações, desempenhando a função de complemento do nome, como acontece em (1):

    (1) «a ocupação romana» (= «Os romanos ocuparam...»)

(ii) os adjetivos relacionais caracterizadores, que se combinam com os nomes e «atribuem-lhes as propriedades que caracterizam aqueles nomes, criando subtipos naturais das entidades denotadas pelo nome modificado»1. Neste caso, o adjetivo desempenha a função de modificador do nome, como acontece em (2):

   (2) «um ambiente estudantil»

No caso em apreço, o adjetivo relacional pertence à subclasse dos adjetivos relacionais classificadores, como se verifica pelo facto de o grupo nominal «trabalhador braçal» representar um tipo de trabalhador, diferente, por exemplo, de «trabalhador intelectual». Por esta razão, consideramos que o adjetivo braçal desempenha a função de modificador do nome restritivo.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Veloso e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1378-1380....

Pergunta:

Em «um fado da Amália», «da Amália» é complemento oblíquo?

Resposta:

O constituinte «da Amália» desempenha a função sintática de complemento do nome.

Tipicamente, os nomes relacionados com obras culturais, como artigo, capítulo, filme, livro, sinfonia, entre outros, pedem como complemento um constituinte que identifica o autor ou o divulgador. A preposição mais frequentemente usada para identificar esta entidade é a preposição de.1

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Brito e Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1064.

Pergunta:

Na frase «Em boa verdade, de nada importará dizer-se que o ser humano é livre e que possui plena autodeterminação, se as condições básicas da sua subsistência não estiverem garantidas», podemos considerar a existência de que tipo de dêixis?

Poder-se-á considerar dêixis pessoal em sua e dêixis temporal em estiverem?

Resposta:

 A frase apresentada não constitui um bom exemplo para tratamento da dêixis.

Tal acontece porque, por falta de contexto, não é possível identificar as coordenadas de enunciação eu-tu-aqui-agora. Para além disso, não podemos considerar o determinante sua um deítico, uma vez que não aponta nem para o locutor (eu) nem para o interlocutor (tu). A forma verbal estiverem também não configura um caso de dêixis temporal, uma vez que aponta para um tempo hipotético e não real.

Disponha sempre!