Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
138K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Relativamente ao verbo combinar, deparei-me com esta construção: «Combinámos para irmos à pista num sábado.»

Perguntava-vos se podemos usar esta construção.

Obrigado.

Resposta:

No contexto da frase apresentada, o verbo combinar não rege preposição.

Quando significa «entrar em acordo para a consecução de um determinado fim» (Dicionário Houaiss), o verbo combinar é seguido de nome (1) ou de verbo no infinitivo (2):

(1) «Combinei um encontro.»

(2) «Combinei encontrar-me contigo.»

Assim sendo, na frase apresentada, se o que se combinou foi a ida à pista não deve haver lugar a preposição, não sendo também necessário o uso do infinitivo flexionado:

(3) «Combinámos ir à pista num sábado.»

Não obstante, a frase em análise poderá apresentar a elipse do complemento direto, sendo a sua forma completa algo como o que se regista em (4):

(4) «Combinámos um encontro para irmos à pista num sábado.»

Neste caso, para não é regido pelo verbo combinar, é antes o elemento que introduz uma oração subordinada adverbial final, que expressa a finalidade do encontro combinado.

Disponha sempre!

Pergunta:

O advérbio principalmente pode ser utilizado como um tipo de operador argumentativo?

Veja a frase:

«Cada porta fechada aumenta essa insegurança e sensação de impotência, principalmente no cenário atual que nos prende em um ciclo de rejeição.»

Obrigado.

Resposta:

A interpretação do advérbio principalmente como operador argumentativo está dependente da inserção da palavra num movimento argumentativo.

Por exemplo, principalmente pode ser usado como introdutor do último elemento numa escala argumentativa. Pode também ser incluindo num processo de adição de argumentos, no qual o advérbio destaca o mais importante/forte.

 No caso apresentado, o advérbio principalmente procede à focalização de constituinte «no cenário atual que nos prende em um ciclo de rejeição». Se toda a frase estiver ao serviço da construção de um argumento, o advérbio servirá essa intenção. Caso a frase se encontre, por exemplo, ao serviço de um movimento de descrição, principalmente destaca o contexto em que a afirmação anterior tem lugar.

Disponha sempre!

Pergunta:

Em «vi-os aos dois», «comprei-as a todas», qual é a função sintáctica dos termos em destaque de acordo com a Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário[1], a Nomenclatura Gramatical Portuguesa (1967) e a Nomenclatura Gramatical Brasileira (1959)?

 

[1 N. E. – Esta terminologia, conhecida pela sigla  TLEBS e, entre 2004 e 2007, aplicada no ensino básico e secundário de Portugal, foi substituída em 2008 pelo Dicionário Terminológico, que constitui, conforme se lê na Direção-Geral de Educação, «um documento de consulta, com função reguladora de termos e conceitos sobre o conhecimento explícito da língua, de forma a acabar com a deriva terminológica». Sobre a TLEBS e a polémica que gerou, consultem-se os artigos reunidos pelo Ciberdúvidas aqui.]

Resposta:

 Em qualquer dos quadros gramaticais, os constituintes destacados desempenham a função sintática de complemento direto.

Estamos, no entanto, perante um caso particular de sintaxe designado redobro do clítico1. Este fenómeno caracteriza-se pela possibilidade de apresentar dois constituintes com a mesma função sintática, sendo o redobro do clítico feito por um pronome forte, como acontece em (1) e (2), onde se destacam os constituintes com a mesma função:

(1) «Eu vi-o a ele

(2) «Ele deu-me a chave a mim

Estes pronomes que fazem o redobro podem ocorrer isoladamente, como acontece nas frases anteriores, ou com uma expressão de quantificação, como a que se destaca em (3) e (4):

 (3) «Eu vi-os a eles os dois

(4) «Eu comprei-as a elas todas

Ora, nesta situação de quantificação, os pronomes podem ser omitidos, como acontece nas frases apresentadas pelo consulente, aqui transcritas em (5) e (6):

(5) «Eu vi-os a [-]* os dois.»

(6) «Eu comprei-as a [-]* todas.»

Disponha sempre!

 

*[-] assinala o constituinte omitido.

 1. Cfr. Mateus et al., 

Pergunta:

Antes de mais, parabéns pelo vosso trabalho!

Na frase «duvido que chova», temos modalidade epistémica com valor de [in]certeza ou de probabilidade?

Muito obrigada desde já!

Resposta:

Sem um contexto que possa enquadrar a frase apresentada, é difícil determinar com alguma precisão o valor da modalidade que ela veicula. Não obstante, poderemos considerar a possibilidade de estarmos perante a expressão da modalidade epistémica com valor de probabilidade.

A modalidade epistémica pode envolver a dimensão da possibilidade, que se pode expressar em diferentes graus. Este facto permite estabelecer uma diferença entre a modalidade epistémica com valor de probabilidade e a modalidade epistémica com valor de possibilidade. O primeiro valor exprime uma certeza maior relativamente à situação descrita na frase, enquanto o segundo valor veicula uma certeza menor.

O verbo duvidar permite veicular um valor de crença negativa1, o que significa que, à partida, a situação é apresentada pelo locutor como tendo alguma probabilidade de vir a ter lugar, uma vez que permite uma leitura de crença forte relativamente à verdade da frase. Assim, por defeito, poderá ser esta a interpretação do valor de modalidade veiculado pela frase.

Refira-se, no entanto, que no contexto do ensino não universitário, e de acordo com o previsto no Dicionário Terminológico, se estabelece apenas a distinção entre o valor de certeza e o valor de probabilidade, tendo o valor de possibilidade deixado de ser abordado.

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça.

Disponha sempre!

 

1. Para maior aprofundamento, cf. Oliveira e Mendes in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 630-632. ...

Pergunta:

Agradecia que me explicassem o seguinte:

a) a razão do uso do infinitivo pessoal com «que tal...?» – ex: «Já é tarde! Que tal te levantares?»

b) Como classificar «que tal»?

Obrigadíssima pelo vosso trabalho e dedicação em prol do português!

Resposta:

A expressão apresentada configura um ato ilocutório diretivo indireto, na medida em que tem a intenção de levar o interlocutor a realizar uma ação, neste caso a de se levantar.

A frase é introduzida pela expressão fixa «que tal» que, neste caso, funciona como um constituinte interrogativo. Em termos semânticos, a frase apresentada é equivalente a uma frase condicional como a que se propõe em (1):

(1) «E se te levantasses?»

O modo infinitivo que acompanha a frase, como acontece em (2), poderá traduzir alguma neutralidade em termos temporais, estando orientado sobretudo para um valor de modalidade deôntica (nos casos em apreço):

(2) «Que tal filmar esta cena?»

Note-se que o constituinte «que tal» pode ainda não ser acompanhado de verbo, mas apenas de nome:

(3) «Que tal o filme?»

É certo que os usos com o constituinte «que tal» merecem uma análise mais aprofundada que, neste espaço, não nos é possível desenvolver.

Disponha sempre!