Pergunta:
Em resposta de 23 de março de 2007 (https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/era-uma-vez/19978), diz-se que «era uma vez» “pode ser classificada sintacticamente como complemento circunstancial de tempo” e dá como exemplo «Era uma vez um gato que tinha duas botas pretas».
Ora, sendo «que tinha duas botas pretas» uma oração subordinada, se «era uma vez» é complemento, não existe verbo para uma oração subordinante!
Quer-me parecer que mais lógico é considerar «era» núcleo do sintagma verbal, e apenas «uma vez» complemento circunstancial.Se for assim (e também se não for), resta saber a função de «um gato».
Dado que nós também diríamos «era uma vez dois gatos» (e não «eram uma vez dois gatos»), «gato» ou «gatos» pode ser o sujeito?
Ou teremos de admitir que temos aqui um uso de especial de ser equivalente a haver? «Havia uma vez dois gatos» não levanta dúvida nenhuma.
Grato pela vossa atenção e serviço à comunidade.
Resposta:
Parece-nos a análise proposta pelo consulente justa, uma vez que estamos perante um funcionamento particular do verbo ser.
O constituinte «era uma vez» é uma expressão fixa com um valor equivalente a “há muito tempo” (Dicionário Houaiss). Não obstante, esta expressão tem a particularidade de ser analisável e de se combinar com diferentes constituintes.
Assim, em «era uma vez», o verbo ser é o verbo nuclear, que aqui funciona como verbo intransitivo, sendo o grupo nominal que o segue o seu sujeito. Por essa razão, nas construções seguintes «um príncipe», «um homem» e «uma aldeia» têm a função de sujeito do verbo ser:
(1) «Era uma vez um príncipe»
(2) «Era uma vez um homem»
(3) «Era uma vez uma aldeia»
Repare-se que esta construção tem, todavia, a particularidade de manter o singular ainda que o sujeito seja plural:
(4) «Era uma vez dois príncipes»
(5) «Era uma vez três homens»
(6) «Era uma vez duas aldeias»
Este facto sintático inusitado é justificado por Bechara, citando A.G. Kury: «a atração fortíssima que exerce o numeral uma da locução uma vez”, leva a que o verbo fique no singular ainda quando o sujeito seja um plural: Disse que era uma vez dois (...) compadres, um rico e outro pobre [CC.1, 31]. Era uma vez três moças muito bonitas e trabalhadeiras [CC.1, 120].»
De acordo com esta análise sintática, a locução adverbial «uma vez» desempenha a função de modificador do grupo verbal (ou de complemento circunstancial)2.
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