Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

O que é mais correto: «desliguei-o um pouco» ou «desliguei-o durante um pouco»?

Obrigado.

Resposta:

Num contexto de maior formalidade, a frase transcrita em (1) não será muito rigorosa:

(1) «Desligue-o um pouco.»

A locução adverbial «um pouco» significa «de modo reduzido», «numa proporção reduzida». Ora, o verbo desligar, pela sua natureza, não é compatível com expressões que referem o grau de uma dada situação, como se verifica nas frases seguintes:

(2) «*Desliguei-o muito.»

(3) «*Desliguei-o bastante.»

(4) «*Desliguei-o ligeiramente.»

Por esta razão, se o que se pretende é indicar que um dado aparelho ficou desligado durante um dado período de tempo, dever-se-á usar a preposição durante que exprime «duração ou permanência de algo num tempo determinado» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Assim sendo, a frase correta será:

(5) «Desliguei-o durante um pouco.»

Não obstante, num contexto informal, a locução «um pouco» é muitas vezes entendida como equivalente a «durante um pouco», o que explica o seu uso corrente com esta significação.

Disponha sempre!

 

*assinala a inaceitabilidade da construção.

Pergunta:

Em resposta de 23 de março de 2007 (https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/era-uma-vez/19978), diz-se que «era uma vez» “pode ser classificada sintacticamente como complemento circunstancial de tempo” e dá como exemplo «Era uma vez um gato que tinha duas botas pretas».

Ora, sendo «que tinha duas botas pretas» uma oração subordinada, se «era uma vez» é complemento, não existe verbo para uma oração subordinante!

Quer-me parecer que mais lógico é considerar «era» núcleo do sintagma verbal, e apenas «uma vez» complemento circunstancial.Se for assim (e também se não for), resta saber a função de «um gato».

Dado que nós também diríamos «era uma vez dois gatos» (e não «eram uma vez dois gatos»), «gato» ou «gatos» pode ser o sujeito?

Ou teremos de admitir que temos aqui um uso de especial de ser equivalente a haver? «Havia uma vez dois gatos» não levanta dúvida nenhuma.

Grato pela vossa atenção e serviço à comunidade.

Resposta:

Parece-nos a análise proposta pelo consulente justa, uma vez que estamos perante um funcionamento particular do verbo ser

O constituinte «era uma vez» é uma expressão fixa com um valor equivalente a “há muito tempo” (Dicionário Houaiss). Não obstante, esta expressão tem a particularidade de ser analisável e de se combinar com diferentes constituintes.

Assim, em «era uma vez», o verbo ser é o verbo nuclear, que aqui funciona como verbo intransitivo, sendo o grupo nominal que o segue o seu sujeito. Por essa razão, nas construções seguintes «um príncipe», «um homem» e «uma aldeia» têm a função de sujeito do verbo ser:

(1) «Era uma vez um príncipe»

(2) «Era uma vez um homem»

(3) «Era uma vez uma aldeia»

Repare-se que esta construção tem, todavia, a particularidade de manter o singular ainda que o sujeito seja plural:

(4) «Era uma vez dois príncipes»

(5) «Era uma vez três homens»

(6) «Era uma vez duas aldeias»

Este facto sintático inusitado é justificado por Bechara, citando A.G. Kury: «a atração fortíssima que exerce o numeral uma da locução uma vez”, leva a que o verbo fique no singular ainda quando o sujeito seja um plural: Disse que era uma vez dois (...) compadres, um rico e outro pobre [CC.1, 31]. Era uma vez três moças muito bonitas e trabalhadeiras [CC.1, 120].»

De acordo com esta análise sintática, a locução adverbial «uma vez» desempenha a função de modificador do grupo verbal (ou de complemento circunstancial)2.

...

Pergunta:

Na frase «Sua obra será sons que se ouvem no papel», que se encontra na tradução de uma obra literária, apontaram um incorreção na concordância verbal, porque o verbo ser deveria concordar com «sons» e não com «obra». É a única concordância possível?

Existem bons gramáticos que apontam como correta a concordância com o sujeito nesse caso?

Podem nos ajudar com essa questão, por favor?

Resposta:

As duas opções são aceitáveis.

Há diversas situações nas quais os verbo ser concorda com o constituinte que se coloca à sua direita, como se sintetiza nesta resposta. Aqui explica-se, em particular, que quando o verbo ser é equivalente a «ser constituído por»1, concorda com o constituinte à direita. Este parece ser o caso da frase apresentada pelo consulente, como se observa em (1)

(1) «Sua obra será constituída por sons que se ouvem no papel.»

Afirma ainda Bechara que «[n]as orações ditas equativas em que com ser se exprime a definição ou a identidade, o verbo, posto entre dois substantivos de números diferentes, concorda em geral com aquele que estiver no plural.»2

Por estas razões, a opção pela flexão no plural do verbo ser encontra-se devidamente justificada, embora constitua uma exceção. No entanto, acrescente-se que Cunha e Cintra3, tratando a questão da concordância do verbo ser quando encontra um constituinte no singular e outro plural, preveem a possibilidade das duas opções, flexão no singular ou no plural, pelo que a opção pelo singular do verbo é igualmente aceitável. 

Disponha sempre!

 

1. cf. também E. Bechara, Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Lucerna, p. 453.

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Natal
De adjetivo a nome próprio

Da origem da palavra Natal à sua transcategorização de adjetivo para nome próprio: sobre estes temas trata a crónica da professora Carla Marques, no programa Páginas de Português, da Antena 2, do dia 12 de dezembro de 2021.

Pergunta:

Gostaria de saber se é possível considerar a expressão «sair de lá» como um pleonasmo.

Obrigada.

Resposta:

De acordo com o E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia, o pleonasmo é uma «figura de estilo utilizada sempre que se tenha por objetivo reforçar uma ideia, repetindo-a, causando um efeito de eco semântico». Neste mesmo verbete, consideram-se pleonasmos expressões oralizantes como (1) ou (2):

(1) «Vem cá pra dentro!»

(2) «Sai lá pra fora!»

Nestes casos, a repetição de ideias ocorre entre os significados do verbo vir, do advérbio  e de «pra dentro», em (1), e dos significados do verbo sair, do advérbio  e de «pra fora», em (2).

O verbo sair, enquanto verbo de movimento, pode significar «ir ou passar para fora», «passar a raia, os limites», «tirar-se de onde estava» ou «pôr-se a caminho a partir de um local» (Dicionário Priberam). Por seu turno, o advérbio tem como significados dominantes «naquele lugar», «aquele ou naquele lugar já mencionado» ou «local afastado do falante» (idem). Deste modo, a combinação das duas palavras em «sair de lá» não parece apresentar um reforço de ideias ou uma repetição, na medida em que o advérbio  tem a função de explicitar o local a partir de onde se iniciou o movimento de sair. Por essa razão, é possível combinar o verbo com outras palavras de valor locativo distinto, como se observa em (3) ou (4):

(3) «sair de cá»

(4) «sair de casa»

Repare-se, todavia, que a expressão apresentada em (5), que retoma parte da frase (2), já constitui ...