Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A propósito da consulta sobre o tema acima, feita por Maria Fernández, em 01/02/2022, não consegui estabelecer diferença, quanto à factualidade, entre as orações «Ainda que tenha imenso trabalho» e «Mesmo que tenha imenso trabalho».

A meu ver, podem ambas ser tomadas como hipotéticas (talvez pelo valor ambíguo citado pela consultora Carla Marques), o que já não ocorre quando se emprega a conjunção embora: «Embora tenha imenso trabalho, João vai passear (irá à praia).»

O uso dessa conjunção confere um caráter de fato real indubitável à mensagem (ele tem, de fato, um imenso trabalho a fazer). Que não o impedirá de se divertir... Esperto, esse João!

Resposta:

Com efeito, como afirma, de forma muito pertinente, o consulente, as frases aqui transcritas em (1) e (2) podem ser ambas interpretadas como tendo um valor hipotético1:

(1) «Ainda que tenha imenso trabalho, o João irá à praia.»

(2) «Mesmo que tenha imenso trabalho, o João irá à praia.»

Habitualmente, a locução conjuncional «mesmo que» é usada apenas com concessivas de valor hipotético ou contrafactual. Já a locução «ainda que» pode combinar-se com os diferentes valores, factual, hipotético ou contrafactual, como se observa pela diferença entra as frases (3) a (5):

(3) «Ainda que tenha tido imenso trabalho, o João foi à praia.»

(4) «Ainda que tenha imenso trabalho, o João irá à praia.»

(5) «Ainda que tivesse tido imenso trabalho, o João teria ido à praia.»

Assim, em (3), a concessiva é factual na medida em que se descreve a situação de «ter trabalho» como tendo tido efetivamente lugar. Já em (5), a situação é descrita como não tendo tido lugar. Em (4), o valor da oração é ambíguo, pois o locutor pode pretender afirmar que efetivamente se verificou o facto de ter existido imenso trabalho, mas, por outro lado, poderia apenas estar a colocar a hipótese de ter existido imenso trabalho. Apenas o contexto poderá esclarecer o valor que se pretende veicular.

Isto significa que a locução «ainda que» pode ser associada a orações que tenham qualquer um dos três valores apontados. Já a conjunção embora usa-se comummente com os valores factual e hipotético.

Disponha sempre!

 

1. Este foi um aspeto que não se aprofundou na resposta à questão mencionada na pergunta, atendendo a que se tratava de uma resposta a uma...

Pergunta:

Estive lendo estes dois artigos em O Globo e na agência de notícias Alma Preta.

Em ambos, foi levantada a questão de o sentido original de algumas palavras não ser mais respeitado. Daí, a dúvida: devemos levar isso a sério realmente, se a maior parte das palavras troca de sentido com o passar dos tempos?

É porque, em um artigo, dizem que foram deturpados os sentidos originais das palavras aniversário e obra-prima. Já no outro, dizem que foi deturpado o sentido original da palavra índio! Mas não é bem comum que palavras passem por mudanças um tanto quanto radicais e extremas, sejam para o bem, sejam para o mal? Vejam o caso da palavra desaforo, por exemplo, na página Origem da Palavra!

Pois muito bem, que palpites vocês próprios têm disso tudo aí de verdade?

Por favor, muitíssimo obrigado e um grande abraço!

P.S.: por falar em aniversário, percebi que vocês fizeram 25 anos de existência enquanto site. E eu também faço anos no dia 29 de janeiro. Bem legal poder fazer anos! Não é verdade isso?

Resposta:

Na verdade, os estudos de história da língua mostram que a evolução das palavras através dos tempos é marcada por uma transformação mais ou menos acentuada dos seus sentidos. Se há palavras que conservam alguns dos traços de significação originais, que possuíam em latim ou noutras línguas, outras sofreram profundas evoluções no que aos seus sentidos diz respeito. Exemplificando este fenómeno, Mário Eduardo Viaro, professor da Universidade de São Paulo, aponta vários casos de evolução dos significados1:

(1) cara é usado no português do Brasil com o significado de «pessoa»

(2) pessoa encontra a sua origem em persona, que significava «máscara»

(3) testa significava originariamente «vaso, telha, caco»

A língua é uma entidade dinâmica que está em constante evolução e transformação e esse é um dos traços que a caracterizam mais profundamente. Basta olhar um pouco para trás no tempo e perceber como ela era atualizada de forma diferente daquilo que acontece atualmente.

Em nome do Ciberdúvidas, agradecemos e retribuímos a nota de parabéns que nos deixa.

Disponha sempre!

 

1. Mário E. Viaro, "História das palavras: etimologia" [disponível aqui].

Maioria
… mas sem tirania

A propósito dos resultados eleições legislativas em Portugal, que deram maioria absoluta ao Partido Socialista, a professora Carla Marques reflete sobre os significados da palavra maioria

Pergunta:

Que sentido tem a expressão «elegância florentina», usada na crónica de Clara Ferreira Alves na Revista do semanário Expresso [de 22/01/2022]?

Resposta:

O adjetivo florentino forma-se a partir de Florença, cidade localizada na região da Toscana, em Itália, que foi durante muito tempo capital da moda e é conhecida por ser o berço do Renascimento italiano. A cidade acolhe obras de artistas do Renascimento, como Miguel Ângelo, Leonardo da Vinci, GiottoSandro Botticelli, Rafael, Donatello, entre outros. Por estas razões, o adjetivo florentino convoca as ideias de requinte, harmonia de formas ou perfeição.

Assim, quando Clara Ferreira Alves, na sua crónica intitulada «O líder que não se demite» (revista do Expresso), profere a afirmação que transcrevemos em (1), pretende afirmar que Mitterrand conseguiu sobreviver a vários escândalos de forma elegante, requintada e até com toques de perfeição. De tal forma que a sua imagem permaneceu intocada e apreciada pelos franceses:

(1) «Mitterrand usou o truque para sobreviver a vários escândalos,...

Pergunta:

Qual das frases está correta? Ou estarão as duas?

«Todos os que estavam com ela sorriam e a acarinhavam.»

«Todos os que estavam com ela sorriam e acarinhavam-na.»

Resposta:

As duas formas são aceitáveis.

De uma forma geral, as orações coordenadas copulativas introduzidas pela conjunção e e as orações coordenadas adversativas introduzidas pela conjunção mas, assumem as regras de colocação dos pronomes clíticos que se aplicam às frases simples ou às orações subordinantes. Isto significa que os pronomes nelas incluídos são colocados em posição enclítica, isto é, depois do verbo, se não existir no interior da oração nenhum elemento que atraia o pronome para posição proclítica, isto é, para antes do verbo. Em (1), a posição é enclítica porque nenhum elemento atrai o pronome e em (2) é proclítica porque o pronome ninguém atrai o pronome:

(1) «O João deu-lhe um livro e pediu-lhe ajuda.»

(2) «O João pediu ajuda e ninguém lha deu.»

Não obstante, como afirma Martins, «[n]as estruturas coordenadas copulativas, a presença de elementos indutores de próclise num dos termos da estrutura coordenada pode condicionar, ou não, a colocação dos pronomes clíticos nos termos subsequentes da mesma estrutura»1. A autora apresenta exemplos como:

(3) «as trevas davam lugar a uma espécie de paz branca, a uma espécie de ausência, pensou ainda E amanhã?, e nada lhe doía já, o ofendia, o incomodava, o perturbava» (CPRC, L. Antunes, Fado)

Desta forma, podemos considerar ambas as frases apresentadas corretas, tanto com próclise do pronome da oração coordenada (4), como com ênclise (5):

(4) «Todos os que estavam com ela sorriam e a acarinhavam.»