Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber qual o valor da modalidade epistémica configurado no seguinte excerto:

«... mas quero crer que nunca como agora se assistiu a uma geração que revelasse tão vasta quantidade de autoras.»

Muito obrigada.

Resposta:

Na verdade, a frase apresentada não configura a modalidade epistémica, mas antes a modalidade desiderativa ou volitiva.

Ao passo que a modalidade epistémica está relacionada com «graus de certeza ou avaliação de probabilidade acerca do conteúdo proposicional da frase»1, a modalidade desiderativa «expressa a volição ou o desejo»1. Assim, a frase (1) configura a expressão da modalidade epistémica, enquanto a frase (2) expressa a modalidade desiderativa:

(1) «Sei que o João não fez os trabalhos.»

(2) «Queria que o João fizesse os trabalhos.»

Deste modo, uma vez que na frase apresentada, o verbo da oração subordinante é querer, este enforma toda a frase com a expressão geral deste desejo do locutor.

Acrescente-se, noutro plano, que o verbo crer construído com um grupo preposicional introduzido por em normalmente configura uma modalidade epistémica com valor de certeza; mas, crer acompanhado do oração completiva já expressa alguma incerteza, pelo que configura a modalidade epistémica com valor de probabilidade2:

(3) «Creio em Deus.»

(4) «Creio que o João chega amanhã.»

Visto que na frase apresentada se combinam dois verbos modais, querer e crer, poderemos considerar que no interior da modalidade desiderativa se identifica uma modalidade epistémica com valor de possibilidade (que expressa algo como «eu desejo que isto possa ser desta forma (mas não é certo)»).

Não obstante, visto que a modalidade desiderativa não integra os programas do Ensino Secundário e dada a comple...

Pergunta:

Lendo um poema de Paulo Leminski, o título chamou minha atenção e causou dúvida.

Segue o título e o questionamento: «O assassino era o escriba.»

Como fica uma análise sintática desse período? E se invertemos os termos: «O escriba era o assassino»?

Como ficaria a análise?

Obrigado.

Resposta:

A frase copulativa apresentada é um caso de copulativa identificadora, que se caracteriza por «identifica[r] o indivíduo representado pelo sujeito como sendo o portador exclusivo da propriedade individual definida pelo SN predicativo.»1 As frases (1) e (2) são exemplo deste tipo de copulativas:

(1) «O João é o meu melhor amigo.»

(2) «Aquele senhor é o autor deste livro.»

Nas frases copulativas identificadoras, o predicativo do sujeito identifica o sujeito como sendo dotado de uma dada propriedade2. Assim em (1) identifica-se o João como tendo a propriedade de «ser meu amigo» e, em (2) identifica-se «aquele senhor» com a propriedade de «ser autor deste livro».

Ora, na frase apresentada pelo consulente, coloca-se um problema de referência. Visto que as copulativas identificadoras identificam o sujeito atribuindo-lhe uma propriedade, resta saber qual o sintagma nominal que se encontra na referência do leitor. Ou seja, até ao momento da identificação de quem se falou? De um assassino? Ou de um escriba? Só a resposta a esta questão permitirá encontrar a solução para a identificação das funções sintáticas dos constituintes, pois o predicativo do sujeito será a propriedade que se atribui à pessoa de que se fala («ele é o escriba» ou «ele é o assassino»).

Apelando ao nosso conhecimento do mundo, e sem outro contexto, diria que o mais expectável é que o grupo verbal «ser assassino» seja o constituinte predicativo, o que faria do «o escriba» sujeito e de «o assassino» predicativo do sujeito. No entanto, não dispomos de elementos que atestem a interpretação.

Convém ainda acrescentar que as orações copulativas poderão surgir na ordem canónica ou na ordem inversa, sem que tal altere a função sintática dos constituintes. Assim, em (3) e (4), as funções sintáticas não se alteram: «Nós»...

Guerra
Das palavras aos atos

conflito na fronteira entre a Ucrânia e a Rússia abre caminho à palavra guerra, cuja origem e evolução se explora na crónica da professora Carla Marques

O léxico da guerra Rússia-Ucrânia
Topónimos, neologismos e outros

«O conflito entre a  Rússia e a Ucrânia  está não só a abalar o mundo como também, no caso português (e noutros não será diferente), a própria língua, que se vê na necessidade de referir novas realidades e de designar locais, pessoas ou acontecimentos respeitantes a realidades distantes e com pouca tradição de referência na língua», refere-se neste apontamento dos professores Carla Marques e Carlos Rocha dedicado a questões lexicais que emergem na língua a propósito da atualidade noticiosa em torno do diferendo entre os dois países.  

Pergunta:

Causou-me estranheza parte dum texto com que me deparei hoje:

«Lisboa era visitada por gente de todo o mundo e para ela convergiam pessoas ilustres e foi difícil deixá-los de fora: embaixadores, aristocratas, pobres, prostitutas, amas, até um macaco. Não resisti a tornar todos eles personagens numa Lisboa protagonista absoluta.»

Não deveria ter sido usado o pronome clítico os em vez de eles como complemento do verbo tornar («torná-los todos personagens»)?

Aproveito o ensejo para parabenizar a equipe do Ciberduvidas pelo inestimável serviço que presta ao nosso querido idioma.

Resposta:

A forma apresentada está correta.

O quantificador todos pode combinar-se com o pronome pessoal de diferentes formas, colocando-se antes ou depois da forma pronominal, como se observa em (1) e (2):

(1) «Todos eles vieram à aula.»

(2) «Eles todos vieram à aula.»

Como é sabido, o pronome pessoal, quando tem a função de complemento direto, assume a forma o(s) / a(s), dita forma fraca (=clítico):

(3) «Encontrei-os na escola.»

Ora, se este complemento direto incluir uma quantificação operada por todos, o pronome pessoal terá de assumir a forma forte (eles), pois, como adverte Bechara, «O pronome ele, no português moderno, só aparece como objeto direto quando precedido de todo ou (adjetivo)»1:

(4) «Encontrei todos eles na escola.»

O quantificador todos pode ainda ser associado a uma construção de redobro do pronome, que corresponde a uma construção que repete o complemento direto com uma intenção enfática, como se observa em (5):

(5) «Encontrei-os a todos (eles).»

Por fim, a construção apresentada em (6) é também aceitável, sendo eventualmente uma opção sentida como menos normativa2, na medida em que corresponde à colocação do quantificador todos depois do pronome (como acontece em (2)), o que levará a que o pronome retome a sua forma fraca:

(6) «Encontrei-os todos na escola.»

Pelas razões expostas, a construção apresentada pelo cons...