Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

«Os residentes abandonaram o prédio e fugiram, sem saberem se teriam casa no rescaldo.»

Nesta frase é correto empregar-se o infinitivo flexionado (sem saberem)? «Sem saber» não será mais correto, já que o sujeito das duas orações é o mesmo? A frase foi retirada da Revista E do semanário Expresso desta semana (7 de outubro).

Resposta:

Na frase em análise, é possível o recurso tanto ao infinitivo flexionado como ao infinitivo não flexionado.

Nas construções que incluem uma oração subordinada infinitiva, verifica-se a tendência para não flexionar o infinitivo quando o seu sujeito é o mesmo da oração subordinante:

(1) «Eles queriam saber a verdade.»

(2) «*Eles queriam saberem a verdade.»

Não obstante, há exceções a esta tendência geral. Uma delas ocorre com orações infinitivas introduzidas pela preposição sem. Nestes casos, quando o sujeito da oração subordinante é o mesmo da oração subordinada, é possível usar tanto o infinitivo flexionado como o infinitivo não flexionado (dito impessoal)1:

(3) «Eles vieram sem ter avisado.»

(4) «Eles vieram sem terem avisado.»

Pelo que ficou exposto, na frase apresentada, é possível selecionar quer o infinitivo flexionado (saberem) quer a forma não flexionada (saber).

Disponha sempre!

 

*assinala a agramaticalidade da frase.

 

1. Cf. Para mais informações, Lobo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2027 – 2028.

Pergunta:

No período «Tendo em vista que os recursos são escassos, devemos economizar», «tendo em vista que» pode ser considerada uma locução conjuntiva, e a oração introduzida por ela, subordinada adverbial causal?

Explico minha dúvida: em «tendo em vista que», há um verbo (tendo). Uma locução conjuntiva pode conter verbo?

Segundo: não se trata de oração reduzida de gerúndio, pois há um verbo finito no primeiro período (são), então acabei não chegando à conclusão nenhuma.

Desde já agradeço pela atenção. Um abraço apertado a todos os irmãos unidos pela língua portuguesa!

Resposta:

O constituinte «Tendo em vista que os recursos são escassos» é uma oração gerundiva que inclui uma oração subordinada completiva no seu interior.

Tal como é típico das orações gerundivas, a oração é introduzida por um verbo flexionado no gerúndio, neste caso a forma verbal tendo.

O valor causal que se associa à oração fica a dever-se a processos de inferência que são ativados pelos elementos da frase, nomeadamente o facto de se apresentar uma ordem causa-efeito1. Assim, a ideia de causa aparece em primeiro lugar, veiculada pela oração causal, e a ideia de efeito associa-se à oração subordinante («devemos economizar»), o que permite uma leitura equivalente à frase que se apresenta em (1):

(1) «Devemos economizar porque os recursos são escassos.»

No interior da oração gerundiva, encontramos uma oração completiva que se subordina ao nome «vista». Veja-se que esta relação de subordinação se manteria caso o verbo fosse flexionado no presente do indicativo (numa frase que veicula, naturalmente, valores distintos):

(2) «Tenho em vista que os recursos sejam escassos.»  

Ou seja, a oração «que os recursos são escassos» é uma completiva de nome que, na oração gerundiva, assume uma posição hierárquica dependente. Veja-se que seria possível converter a oração completiva num sintagma nominal, também ele dependente do substantivo recursos:

(3) «Tendo em vista a escassez de recursos, devemos economizar.»

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Lobo in Raposo et al., Gramática d...

Pergunta:

«Dás-me um bocadinho de bolacha?»

«Estás cheia de manias.»

«Não gosto deste tipo de pessoas.»

«Chega de palavras ridículas.»

Nestas situações não poderia substituir o de pelo da?

Se sim, em que situações?

Obrigada.

Resposta:

Sem outro contexto que altera a interpretação, podemos afirmar que apenas a primeira frase permite a substituição da preposição de pela preposição contraída com o artigo definido da.

Quando incide sobre um nome, o artigo definido associa-lhe um traço semântico [+específico], que contribui para referir a entidade descrita pelo nome como uma entidade individual.

Vejamos a diferença entre (1) e (2):

(1) «Come as bolachas.»

(2) «Come bolachas.»

Em (1), o locutor identifica as bolachas, mostrando, por meio do artigo definido, que locutor e interlocutor reconhecem a realidade referida. Já em (2), a ausência do artigo definido leva a que se interprete o nome bolachas como referindo uma entidade entendida como genérica, não existindo a intenção de particularizar quaisquer bolachas em concreto. Não é mesmo certo que os interlocutores (ou um deles) estejam em presença de bolachas.

Esta especificação de sentidos é passível de ser explorada nas frases (3) e (4):

(3) «Dás-me um bocadinho de bolacha?»

(4) «Dás-me um bocadinho da bolacha?»

Em (4), a especificação do artigo definido (contraído com a preposição de) contribui para referir uma bolacha em particular, enquanto em (3), a referência mantém-se genérica.

Refira-se, porém, que nos usos do quotidiano esta especificação e o contraste entre frases como (3) e (4) podem ser anulados, uma vez que o contexto de comunicação pode ajudar a interpretar o referente bolachas como concreto ou como referente a uma “espécie” de alimento.

Relativamente às...

Pergunta:

Estou intrigado com o seguinte uso da vírgula após o pronome relativa que usado na narrativa "Um apólogo" de autoria de Machado de Assis:

«Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:...»

Afinal, por que mesmo usar a vírgulas após esse pronome que, se a oração «disse a um novelo de linha» é adjetiva restritiva?

Por gentileza, poderiam me esclarecer o motivo de usar a vírgula neste caso?

Desde já, agradeço o apoio de sempre.

 

N. E. – Um apólogo é uma «narrativa em prosa ou verso, geralmente  dialogada, que encerra uma lição moral, e em que figuram seres inanimados, imaginariamente dotados de palavra» (Dicionário Houaiss).

Resposta:

A vírgula colocada antes de uma oração adjetiva relativa tem a função de indicar que a oração assume um valor explicativo. Ou seja, trata-se de uma oração que não tem um valor de restringir a área de referência do nome sobre o qual incide. Esta ação semântica explica a diferença verificada entre as frases (1) e (2):

(1) «O livro que o João escolheu é muito difícil.»

(2) «O livro, que tu escolheste, acabou de ser publicado.»

Em (1), a oração relativa, ao incidir sobre o nome livro restringe a sua significação: o locutor não fala de qualquer livro, mas apenas daquele que foi escolhido sobre o João sendo sobre ele que incide a predicação «é muito difícil». Já em (2), a informação de base é «O livro acabou de ser publicado», contendo a oração relativa uma oração acessória, que pode ser eliminada da frase sem prejudicar a sua ideia essencial.

Na frase apresentada1Machado de Assis, ao colocar a vírgula antes da oração relativa, veicula esta informação. A oração relativa não restringe o nome agulha, ou seja, não se vai falar da «agulha que disse ao novelo» que se distingue de outra «agulha que disse à tesoura», por exemplo. A vírgula indica que se vai apresentar uma informação acessória sobre a agulha, que não a identifica nem distingue de outras possíveis agulhas.

Disponha sempre!

 

1. Disponível aqui.

Pergunta:

Como descobrir a regência de adjetivos que se acompanham de substantivos em sequências como: «impulso puro de ideais democráticos».

Nesse caso, de pertence a impulso ou a puro?

Muito obrigado!

Resposta:

No caso em apreço, a preposição de introduz um sintagma que incide sobre o nome.

Uma das formas de identificar as relações sintáticas de maior proximidade na frase assenta na elisão de constituintes, pois se elidirmos um constituinte que funciona como núcleo de uma relação sintática, a frase ficará inaceitável ou, pelo menos, terá uma interpretação difícil.

No caso apresentado, poderemos elidir ora o substantivo ora o adjetivo para identificarmos com qual deles o sintagma preposicional estabelece uma relação de dependência:

(1) «impulso de ideais democráticos»

(2) «puro de ideais democráticos»

Como se pode observar, o sintagma (2) é estranho e de sentido opaco, ao passo que o enunciado (1) tem sentido.

Assim, sem outro contexto que possa, eventualmente, alterar esta análise, concluímos que o sintagma preposicional «de ideais democráticos» incide sobre impulso.

Disponha sempre!