Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

A minha dúvida prende-se com a regência de ávido. Li no vosso material que a ávido se segue a preposição de (ver "Regência", no Glossário de erros mais frequentes).

Todavia, tenho visto em muitos livros a preposição por, principalmente quando a esta se segue uma forma verbal. Por exemplo, «ávido por cooperar», «ávido por mexer», etc,

Será que estamos perante uma formulação errada e a forma correta continua a ser com a preposição de (por exemplo, «ávido de cooperar» a «ávido de mexer»)?

Obrigada.

Resposta:

Com efeito, o adjetivo ávido pode reger tanto a preposição de como a preposição por1.

Estas preposições usam-se tanto seguidas de nome (1) como de verbo no infinitivo (2):

(1) «ávido de / por aventuras»

(2) «ávido de / por esclarecer uma situação»

Parece registar-se alguma tendência para a preferência da preposição de quando seguida de nomes e para a preposição por quando seguida de verbo infinitivo. Todavia, falamos apenas de tendências e não de uma regra normativa.

Disponha sempre!

 

1. Cf., por exemplo, Dicionário Houaiss ou Luft, Dicionário Prático de Regência Verbal. Ática. 

Pergunta:

Nos vossos comentários a questões de interessados na língua portuguesa, distinguem o uso de adesão e de aderência em função do contexto em que é usada cada uma dessas palavras. Há no entanto uma situação que me tem trazido dúvidas.

Deve dizer-se ou escrever-se «a ideia de que o capital internacional escolhe o seu destino de investimento tendo em conta a taxa de IRC não tem aderência à realidade», como escreveu João Taborda da Gama no Expresso de 23/09/2022, ou «... não tem adesão à realidade»?

Como a expressão em causa tem o significado de «... não coincide com a realidade», parece-me que o uso do termo aderência está correto, embora não me “soe” bem.

Será assim?

Resposta:

Na frase em questão, a opção pelo nome adesão parece ser mais ajustada à significação de base das palavras em questão.

Com efeito, aderência e adesão são parcialmente sinónimos porque ambos descrevem o “ato de aderir”. No entanto, o termo aderência tem sido utilizado para descrever a união entre duas superfícies / substâncias, num contexto de materialidade, ou para referir a própria qualidade “daquilo que é aderente”. Já adesão tem sido a palavra preferida para descrever uma ligação de natureza imaterial (a causas, ideais), referindo a união, o apoio, a aceitação de princípios.

Considerando estes sentidos e partindo do princípio de que na frase citada se pretende afirmar que a ideia em questão não é concordante com a realidade ou não se ajusta a ela, teria sido preferível recorrer ao termo adesão1.

Disponha sempre!

 

1. Para mais detalhes sobre as duas palavras, ver os textos relacionados.

 

Pergunta:

Qual o correto?

«Tem dois dias desde que a primavera começou.»

«Tem dois dias que a primavera começou.»

Obrigado!

Resposta:

Num contexto mais cuidado será preferível a expressão que se apresenta em (1):

(1) «Tem / Faz dois dias que a primavera começou.»

A locução «desde que», usada com valor temporal, marca o início de uma dada situação:

(2) «Desde que li este livro, todos os outros me parecem pouco interessantes.»

Em (2), a oração «desde que li este livro» marca o limite inicial do intervalo temporal da situação descrita na oração subordinante.

Do ponto de vista aspetual, «desde que» introduz habitualmente uma oração que tem um valor pontual (ou seja, que descreve uma situação não tem um valor temporal durativo). Já o valor do predicado da oração subordinante deve ser durativo. Esta particularidade justifica a estranheza presente na frase (3), que combina duas situações pontuais:

(3) «?O João abriu a porta desde que eu o conheço.»

Estamos em crer que a estranheza que causa a frase apresentada pelo consulente e aqui transcrita em (4) está relacionada com o facto de as duas situações serem perspetivadas como pontuais:

(4) «?Tem/faz dois dias desde que a primavera começou.»

Tanto o constituinte «tem/faz dois dias» como o constituinte «desde que a primavera começou» são apresentados como situações pontuais, que aconteceram num dado momento do intervalo intemporal e que não se prolongaram. Será esta combinação de situações que causa estranheza.

Tal já não acontecerá se se introduzir uma perspetiva durativa na oração introduzida por «desde que», tal como acontece em

(5) «Dois dias já passaram desde que a primavera começou.»

Ainda assim, é de referir que a construção (4) é usada comummemente em interações do quotidiano no portug...

Pergunta:

Na frase «Convenci-me de que as mais belas coisas do mundo se punham enquanto profundos e urgentes mistérios», qual é o significado e a aplicação gramatical do enquanto?

Muito obrigado.

Resposta:

Enquanto é uma conjunção que pode ser usada em diferentes contextos. No caso em apreço, é equivalente a «na qualidade de, na condição de, como».

Enquanto ativa este valor quando se combina com um substantivo, como acontece nas frases seguintes:

(1) «Enquanto trabalhador, tenho acesso ao interior do edifício.»

(2) «Enquanto professor, posso ler este documento.»

Ao combinar-se a um substantivo, enquanto contribui para a associação da situação descrita pelo predicado da frase a um determinado domínio/ esfera de ação. Por exemplo, em (1), o acesso ao interior do edifício só é possível ao grupo de pessoas identificadas com o domínio de «ser trabalhador».

No enunciado apresentado pelo consulente, aqui transcrito em (3), o sintagma introduzido por embora relaciona-se não com a totalidade do predicado, mas com o verbo, uma vez que é um complemento pedido pelo verbo pôr:

(3) «Convenci-me de que as mais belas coisas do mundo se punham enquanto profundos e urgentes mistérios»

Neste caso, não conseguimos avaliar com certeza qual o sentido com o qual o verbo está a ser usado, por falta de contexto. Não obstante, será possível que tenha como significado «imaginar-se, supor-se» ou «desempenhar a função de». A ser este o valor, o sintagma introduzido por enquanto traduz a forma como as «coisas mais belas do mundo» se imaginavam ou desempenham a função.

Disponha sempre!

Pergunta:

Costumeiramente se afirma que no famoso verso de Camões «Que da ocidental praia lusitana» (Os Lusíadas, I, II) há uma sinédoque.

Dizem que o poeta toma a praia por toda a nação portuguesa, mas o que me parece é que a expressão «ocidental praia lusitana» se refere ao porto de Lisboa, que fica na parte ocidental do país.

Por tudo isso, peço humildemente que me expliqueis a correta interpretação do verso camoniano e como chegar a ela.

Resposta:

A sinédoque é considerada um tipo particular de metonímia que se caracterizado pela «atribuição do nome de uma realidade a outra é aqui fundamentada não numa relação externa acidental mas sim essencial, tomando-se o todo pela parte ou a parte pelo todo» (Dicionário de e-termos literários).

O verso em questão integra a primeira estância d’Os Lusíadas, que aqui se recorda:

«As armas e os barões assinalados,
Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;»

A identificação de uma sinédoque no segundo verso da estância é uma questão de interpretação. Se considerarmos que a interpretação deste enunciado deve ser literal, então a leitura que dele se fará será coincidente com a que apresenta o consulente: os portugueses partiram de uma praia localizada no ocidente de Portugal, que poderia, eventualmente, corresponder a uma praia de Lisboa.

Todavia, esta interpretação empobreceria a interpretação da intenção do poeta, pois este não quer cantar apenas um grupo de homens que saíram de um porto de Lisboa, quer, antes, cantar todos os homens de valor que saíram de Portugal (tomado como um país inteiro) para conquistarem os mares por descobrir. Nesta interpretação, o verso de Camões assume uma significação mais grandiloquente, ao estilo de um poema épico, e corresponderá melhor às intenções do poeta, que quer tomar como matéria do seu poema não um herói individual, mas um herói coletivo: os portugueses.

Por esta razão, prefere-se a interpretação do verso em análise como uma sinédoque que toma a «ocidental praia Lusitana» como uma pa...