Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tanto em italiano quanto em espanhol há verbos cujo sujeito vem após o verbo, por exemplo:

1. «Mi piace il cioccolato.»/«Mi piacciono i cioccolati.»

2. «Me gusta el chocolate.»/«Me gustan los chocolates.»

Só que estes verbos piacere e gustar, quando têm como sujeitos verbos no modo infinitivo não mudam.

1.1. «Mi piace cantare e ballare.»

2.1. «Me gusta cantar y bailar.».

I. Eu gostaria de saber esta regra se funciona com o verbo português agradar, ou seja, se o verbo muda ou não, quando o sujeito é composto por verbos no modo infinito, como:

3.1. «Agrada-me dançar e cantar.»

3.2. «Agradam-me dançar e cantar.»

II. E se «agrada-me dançar e cantar» é o correto, por que o verbo fica no singular já que o sujeito é composto: «dançar e cantar»?

Desde já, muito obrigado.

Resposta:

Em primeiro lugar, quando o verbo tem um sujeito oracional, a colocação da oração em posição pós-verbal é comum:

(1) «Alarmou-os sentir dificuldades no exame

(2) «Custou começar a estudar

Em segundo lugar, a concordância do verbo com um sujeito oracional composto não segue as regras gerais de concordância do verbo com dois ou mais sintagmas nominais coordenados. Com efeito, quando o verbo tem como sujeito vários sintagmas nominais coordenados, a concordância faz-se na 3.ª pessoa do plural:

(3) «A flor e o cartão foram uma bela prenda.»

Todavia, ao contrário da situação anterior, um sujeito composto por duas orações coordenadas desencadeia uma concordância na 3.ª pessoa do singular:

(4) «Ler e escrever ajuda na preparação do exame.»

Este facto é justificado na Gramática do Português do seguinte modo: «Nas orações, de facto, não existe um núcleo nominal ou pronominal que possa ser fonte de um traço de número para a concordância. Logo, o verbo assume automaticamente a flexão morfológica singular, quer o sujeito oracional seja simples […] quer seja composto.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Raposo in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2448.

Pergunta:

Tenho uma pergunta quanto ao uso do verbo dever no pretérito perfeito simples. Ele é muito usado?

Pergunto porque numa roda de conversa um amigo disse: «Os donos da casa saíram e todos deveram sair também.»

Pela lógica, a frase é gramaticalmente correta, mas confesso que soou estranho ouvi-la.

Se tivesse ouvido o «ter de» em vez de dever, não teria soado estranho:

«Os donos da casa saíram e todos tiveram de sair também.»

Talvez seja porque quase não ouço a construção do verbo dever no pretérito perfeito simples.

Por isso, pergunto se é muito usado ou não.

Agradeço desde já a atenção dispensada.

Resposta:

Na frase apresentada, a flexão do verbo dever no pretérito perfeito do indicativo não é aceitável.

O verbo dever é, na frase em análise, usado como um verbo auxiliar modal. Ou seja, trata-se de um verbo que contribui para a expressão de um valor de obrigação (modalidade deôntica) ou um valor de dúvida (modalidade epistémica), como em (1):

(1) «O João deve ir à escola hoje.»

Nesta frase, o verbo dever pode traduzir um valor de obrigação, que incide sobre o verbo ir, o que leva a que frase seja interpretada como «O João tem a obrigação de ir à escola hoje.» Em função do contexto, o verbo pode também expressar a dúvida, sendo a frase equivalente a «É possível que o João vá à escola hoje.»

O verbo dever pode ser usado como auxiliar modal com os valores referidos nos tempos do presente e do imperfeito, do modo indicativo e do modo conjuntivo. Pode também ser usado no condicional e no futuro do indicativo. Todavia, na qualidade de auxiliar com os valores indicados, este verbo não se usa no pretérito perfeito do indicativo. Veja-se a sequência de frases abaixo, na qual só a frase (7) é inaceitável pelo facto de o verbo se encontrar no pretérito perfeito do indicativo:

(2) «O João devia ir à escola hoje.» (imperfeito do indicativo)

(3) «Talvez o João deva ir à escola hoje.» (presente do conjuntivo)

(4) «Talvez o João devesse ir à escola hoje.» (imperfeito do conjuntivo)

...

Pergunta:

Na frase «a vós criou primeiro que os homens», gostaria que me dissessem qual a função sintática de «primeiro».

Muito obrigada.

Resposta:

O constituinte «primeiro que os homens» desempenha a função de modificador do grupo verbal1.

Se começarmos por analisar uma frase com estrutura simplificada, para facilitar a interpretação, veremos que o advérbio primeiro pode ser omitido da frase:

(1) «A vós2 criou (primeiro).»

O advérbio primeiro introduz na frase um valor de ordenação temporal que não integra o núcleo de significação nem é pedido pelo verbo, o que é compatível com a função de modificador do grupo verbal.

Na frase em questão, está presente ainda uma estrutura que é equivalente a uma construção comparativa «primeiro que aos homens», na qual «que aos homens» é um constituinte dependente do primeiro, podendo ser visto como equivalente a um segundo termo de comparação (ou, numa visão mais tradicional, a uma oração comparativa):

(2) «A vós criou primeiro que (criou) os homens.»

Neste caso, o advérbio primeiro incorpora o valor de um operador comparativo, que poderia equivaler ao que se apresenta em (3):

(3) «A vós criou mais cedo do que os homens.»

Pelo que ficou exposto, a função de modificador do grupo verbal é desempenhada, na frase em apreço, pelo constituinte «primeiro que os homens».

Disponha sempre!

 

1. A frase em análise será uma adaptação de parte de uma passagem do Sermão de Santo António, de Padre António Vieira: «A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos anima...

Pergunta:

Tenho uma dúvida em relação à estrutura desta frase : «Pode ir lendo...»

Sei que estamos a usar o presente + infinitivo + gerúndio.

A minha pergunta é se esta estrutura tem um nome gramatical ou alguma explicação gramatical em particular?

Muito obrigada.

Resposta:

No quadro do Dicionário Terminológico1, o constituinte em questão recebe o nome de complexo verbal, realidade que corresponde a uma «Sequência de um ou mais verbos em que apenas um deles é um verbo principal e os restantes verbos são verbos auxiliares.»

O constituinte em questão é composto por um verbo principal, o verbo ler, que é auxiliado pelo verbo ir (auxiliar temporal). A construção «ir + gerúndio» transmite um valor de situação em progressão, em desenvolvimento:

(1) «Ele vai lendo a obra.»

A associação a esta estrutura do verbo auxiliar poder traz um novo valor ao complexo verbal. O verbo poder é um auxiliar aspetual, que pode ter natureza deôntica e que, neste caso, expressa a permissão ou a autorização, como acontece em (2):

(2) «Podes ir embora.»

No caso da estrutura em análise, expressa-se, assim, a ideia de que alguém autoriza um interlocutor a dar início à leitura da obra, uma atividade que deverá ir desenvolvendo.

Em síntese, a estrutura apresentada é um complexo verbal composto por um verbo principal (lendo) acompanhado por um auxiliar temporal (ir) e por um auxiliar aspetual (podes).

Disponha sempre!

 

1. O Dicionário Terminológico apresenta os termos e conceitos a utilizar em contexto de ensino não universitário, em Portugal. 

Concordância do verbo
A situação do sujeito composto

Devemos dizer «A tristeza e a solidão abateu-se sobre mim» ou «A tristeza e a solidão abateram-se sobre mim»? Esta questão é respondida pela professora Carla Marques na rubrica divulgada no programa Páginas de Português (de 17/10/2022).