Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Neste momento, estou a fazer uma tradução de inglês para português em que figura o termo highlight, que, julgo eu, pode ser traduzido como «ponto alto».

No entanto, a minha dúvida é a seguinte: «ponto alto» exprime apenas a ideia de tempo, ou seja, refere-se apenas ao momento mais importante e mais esperado, ou pode também traduzir a ideia de lugar mais importante, mais louvável?

Obrigado.

Resposta:

Sem considerar qualquer contexto, podemos afirmar que a expressão «ponto alto» poderá ser usada com o valor figurado de “lugar mais importante”.

A expressão «ponto alto» pode ter uma significação locativa, que permite referir um dado espaço físico:

(1) «Chegaram ao ponto (mais) alto da montanha.»

Ponto também pode ter uma significação de natureza temporal, equivalente a «altura; momento»:

(2) «Chegou a um ponto em que não podia voltar atrás.»

Por um processo metonímico, a expressão pode derivar deste uso de base temporal, sendo usada com um valor não literal de «clímax; ápice», como acontece nas passagens seguintes:

(2) «Porque, até agora, o galanteio alimentar marcava o ponto alto do namoro» (João Guimarães Rosa, O Último dos Maçaricos)

(3) «O livro termina com um capítulo que parece chamar a atenção para os céus indecifráveis, assunto que hoje seria o ponto alto das pesquisas científicas, nas penetrações espaciais.» (Euclides da Cunha, À Margem da História)

(4) «Em Portugal, cujas primeiras notícias datam da época dos trovadores e jograis, serve de ponto alto a polémica conhecida como “Questão Coimbrã”.» (Questão Coimbrã – Camilo 2.0)

Esta extensão de significação também poderá acontecer no plano da significação espacial, como em (5), onde «ponto alto» é equivalent...

Pergunta:

Estou a elaborar um projecto artístico de fotografia digital em que abordo o tema da saúde mental.

Escrevi o seguinte parágrafo:

«Cheguei à conclusão feliz de que pessoas que sofram de ansiedade, depressão, perturbações obsessivas, pensamentos suicidas – entre outros sensíveis problemas de saúde mental – encontram uma forma de se resgatarem desses cuidados para se sentirem melhores, quer seja através de expressão artística, quer pela meditação, terapia, etc. Doentes com uma frágil saúde mental resgatam-se a si próprias, salvando-se de formas diferentes. »

Assim, cruzei-me com a palavra remir e a sua definição: «resgatar, conseguir a libertação de outrem ou de si. = LIBERTAR, Livrar; tirar ou sair do perigo ou da condenação. = Salvar.»

Neste contexto, gostaria de esclarecer se a palavra remir pode ela, realmente, enquadrar-se na minha exposição anterior.

Resposta:

Antes de mais, é importante saber que o verbo remir é defetivo, o que significa que não se flexiona em todas as pessoas e/ou tempos e modos verbais. Assim, remir conjuga-se apenas nas formas em que o m do radical é seguido de i. Por essa razão, só tem as formas da 1.ª e 2.ª pessoas no presente do indicativo («nós remimos» / «vós remis»); no imperativo só tem a forma de 2.ª pessoa do plural («remi vós») e não se conjuga no presente do conjuntivo. Nas formas em falta, usa-se o verbo redimir (que assume a mesma significação).

Na situação apresentada pelo consulente, é, assim, possível, usar-se o verbo redimir, na forma pronominal, com o valor de «libertar-se, salvar-se».

Tomamos ainda a liberdade de propor algumas correções ao parágrafo apresentado (sinalizadas a negrito):

«Cheguei à conclusão feliz de que pessoas que sofram de ansiedade, depressão, perturbações obsessivas, pensamentos suicidas – entre outros problemas sensíveis de saúde mental – encontram uma forma de se resgatar(em)1 desses cuidados para se sentir(em)1 melhor(es)1, quer seja através de expressão artística, quer através da meditação, terapia, etc. Doentes com uma frágil saúde mental redimem-se a si próprios, salvando-se de formas diferentes.»

Disponha sempre!

 

1. Pode optar-se pela forma não flexionada do infinitivo por se tratar do mesmo sujeito.

Concordância do verbo (2)
Concordância do verbo com o pronome relativo quem

Devemos dizer «Fui eu quem fez este bolo» ou «Fui eu quem fiz este bolo»? Esta é a dúvida cuja resposta é apresentada pela professora Carla Marques no seu apontamento divulgado no programa Páginas de Português, dAntena 2 (24/10/2022). 

 

Pergunta:

Na frase «partiu-se um copo», o segmento «um copo» é um complemento direto ou sujeito?

A minha dúvida reside na possibilidade de a frase estar invertida (=«um copo partiu-se»), contudo penso que, na frase dada para análise sintática, «um copo» parece-me o complemento direto da frase, visto que os copos não se partem sozinhos, ou seja, alguém (ou uma entidade) tem de os partir.

Desta forma, posso considerar que a frase apresenta um sujeito nulo indeterminado do predicado «partiu-se um copo» («partiu-se» = «partiram/alguém partiu») e que «um copo» é complemento direto?

Muito obrigada.

Resposta:

 Na frase apresentada, o constituinte «um copo» desempenha a função sintática de sujeito.

Do ponto de vista semântico, partir é um verbo de alternância causativa-incoativa1. Isto significa que, em construções transitivas, o verbo é causativo porque expressa a ideia de que o sujeito indica o agente (ou a causa) da situação descrita:

(1) «O João partiu um copo.»

Em (1), «o João» é o agente da situação «partir um copo».

Estes verbos causativos admitem uma variante intransitiva, designada incoativa, na qual o constituinte que tinha função de complemento direto passa a assumir a função de sujeito:

(2) «Um copo partiu-se.»

A frase (2) permite colocar a tónica na mudança de estado sofrida pelo copo e não no agente responsável pela ação sofrida pelo copo. Na variante incoativa, o sujeito expressa, assim, o paciente (aquele que sofre a ação desencadeada pelo agente). Acresce que o pronome átono se assinala o facto de o verbo se encontrar na sua variante incoativa.

Finalmente, refira-se que, em português e de uma forma geral, o sujeito poderá ser colocado antes ou depois do verbo.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações sobre este assunto, cf. Duarte in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 450-456.

Pergunta:

Por obséquio, esclareça-me estas questões:

1. Na oração «Este cartão de crédito é importante para você», qual a função sintática da palavra importante e da expressão «para você»?

2. Nessa oração, o verbo ser poderia ser tratado como um «verbo transitivo direto e indireto» (pois quem é, é algo para alguém), de modo que a palavra importante seria objeto direto e a expressão «para você» seria objeto indireto?

Obrigado.

Resposta:

Na frase apresentada, o verbo ser é copulativo, pelo que assegura a ligação entre dois constituintes: o sujeito e o predicativo do sujeito.

 A função de sujeito é desempenhada pelo sintagma nominal «Este cartão de crédito», enquanto a função de predicativo do sujeito é desempenhada pelo sintagma adjetival «importante para você».

Note-se que se estivéssemos perante uma construção de predicação secundária, na qual o verbo pede complemento direto e predicativo do complemento direto, o predicativo do complemento direto incidiria sobre o complemento direto, mas seria independente dele.

Todavia, no caso da frase apresentada, o segmento «importante para você» funciona como um sintagma único, como se observa pela impossibilidade de eliminar o adjetivo importante, que funciona como núcleo. Esta alteração produziria uma frase com sentido diferente:

(1) «Este cartão de crédito é para você.»

Assim sendo, podemos concluir que o constituinte «para você» incide no adjetivo importante desempenhando a função de complemento do adjetivo.

Disponha sempre!