Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Concordância do verbo (3)
A concordância do verbo com o pronome relativo que

Neste apontamento, a professora Carla Marques volta a abordar as questões de concordância e, desta feita, explica qual a opção correta entre as frases «És tu que escreves o texto» ou «És tu que escreve o texto»? (apontamento difundido no programa Páginas de Português da Antena 2). 

Pergunta:

Gostaria que me esclarecessem sobre a função sintática da expressão destacada entre aspas na frase seguinte:

«Ela sentiu-se "pessimamente" com o sucedido.»

É predicativo do sujeito?

Grata pelos preciosos esclarecimentos que prestam.

Resposta:

A frase em questão coloca vários problemas de análise sintática relacionadas com a identificação da natureza do verbo sentir-se, o qual é objeto de várias interpretações sintáticas, que levam a considerá-lo ora verbo copulativo ora verbo pleno (ver Textos relacionados).

Na interpretação que aqui seguimos, optaremos por classificar sentir-se como um verbo principal transitivo. A proposta de integração nesta subclasse deve-se sobretudo ao facto de o verbo selecionar sujeito, algo que os verbos copulativos não têm a capacidade de fazer (ver esta resposta para mais informações).

Não obstante, embora o verbo seja transitivo, o constituinte pessimamente não desempenha a função de complemento do verbo sentir-se. Também aqui estamos perante um caso particular da gramática, na medida em que o verbo sentir-se pode construir-se com predicativo do sujeito (o chamado predicativo do sujeito secundário). Como afirma Raposo, «Os verbos plenos que selecionam um predicativo do sujeito secundário são em pequeno número; entre eles incluem-se passar (por), dar-se (por), sentir-se e viver. Os dois primeiros subcategorizam a preposição por; o segundo e o terceiro conjugam-se reflexamente.» (in Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1344).

Pelas particularidades que ficaram expostas, as frases desta natureza não devem constituir matéria de análise no ensino não universitário, uma vez que não estão ao serviço da sistematização das características definitórias quer das subclasses do verbo quer das funções sintáticas.

G...

Pergunta:

Considere-se a seguinte frase:

«E Florinda acordou, sacudindo os cabelos, esfregou os olhos, e disse:...» (Sophia de Mello Breyner Andresen, O Rapaz de Bronze, 20.a ed., Edições Salamandra, s/d)

Gostaria de saber a justificação para o uso da vírgula antes da copulativa "e".

Grata pela atenção.

Resposta:

O uso da vírgula na situação apresentada é possível.

Diga-se, antes de mais, que muitos usos da vírgula não estão codificados num quadro normativo.

De uma forma geral, usa-se a vírgula para separar sintagmas ou orações coordenadas, exceto as que são introduzidas pela conjunção e:

(1) «O João, a Rita e o Pedro vieram à sessão.»

(2) «Queria que estudassem a matéria, fizessem os exercícios e apontassem as dúvidas.»

Não obstante, usa-se vírgula quando duas orações coordenadas pela conjunção e têm sujeitos diferentes, como em (3), onde se sublinham os sujeitos:

(3) «Entra na cubata à procura da catana e logo aí sua boca apodrece a resmungar contra tudo e todos, que mesmo o soba deixou já de ter alma de soba, o sangue está mole no corpo das pessoas, e as admiráveis mulheres esmorecem sua coragem de continuar o mundo para nada.» (João de Melo, Autópsia de um mar de ruínas. 1992)1

Para além disso, a vírgula pode também ser usada opcionalmente em orações coordenadas por e com o mesmo sujeito2:

(4) «Por fim, desembarcaram Balbino e Juca Tristão, e este, dirigindo-se a um homem cuja presença Alberto não havia fixado, ordenou-lhe […]» (Ferreira de Castro, A Selva. 1967)

(5) «[Ele] Tomou um gole de rhum [sic], e [ele] continuou […]» (Olavo Bilac,

Pergunta:

Há muito que às vezes me deparo com enumerações em que não me parece confortável dar aos termos o mesmo tratamento no que diz respeito ao uso dos artigos. Peço licença de dar um exemplo bastante simplório para mostrar o que gera minha dúvida:

«Ontem, não dormi, fui incomodado por mosquitos, aranhas e uma barata.»

No exemplo, mosquitos e aranhas não recebem artigo nem definido nem indefinido. Já barata, essa, sim, recebe o indefinido. Nenhuma outra redação me parece satisfatória nesse tipo de situação, pois se disser «por uns mosquitos, por umas aranhas e por uma barata» fico com a impressão de diminuir a vagueza quanto a mosquitos e aranhas. Se disser «por mosquitos, aranhas e barata», pensando bem, não encontro problemas maiores, embora sinta (talvez por cacoete) a falta do artigo indefinido diante do único item no singular.

Assim, tomo a liberdade de perguntar qual seria a melhor solução em casos assim de acordo com um estilo de escrever atento ao paralelismo nas construções.

Muito obrigado desde já!

Resposta:

O caso apresentado terá de ser equacionado sobretudo no campo dos valores associados às escolhas feitas pelo falante.

Em enumerações, é comum (e admissível) a omissão do artigo indefinido. Veja-se o exemplo apresentando em (1):

(1) «Na casa encontrei livros, revistas, jornais e ensaios.»

Na frase, é feita a enumeração de um conjunto de entidades, expressas por nomes contáveis e que se encontram no plural. Conclui-se assim que, com um nome contável no plural, pode optar-se pela construção sem artigo indefinido, obtendo-se uma interpretação indefinida. Aos sintagmas coordenados «jornais, romances, revistas, gramáticas, ensaios» é associada uma leitura de quantidade indeterminada, que é comum a todas as realidades referidas.

Se, na frase, se combinar um artigo indefinido com um dos nomes, é possível obter um efeito de contraste entre o valor não específico e o valor específico. Observemos a frase:

(2) «Na casa encontrei livros, revistas, jornais e uns ensaios.»

Com esta frase, é possível associar ao constituinte «livros, revistas, jornais» um valor não específico, ou seja, são referidos seres da espécie indicada numa quantidade indeterminada. Ao sintagma «uns ensaios» pode ser associado um valor [±específico], que indica que o falante tem em mente ensaios específicos, ainda que não os identifique.

No caso da frase apresentada, aqui retomada em (3), a situação pode ser interpretada também pelo contraste indefinido / definido, sendo atribuído a «mosquitos, aranhas» um valor indefinido (no sentido em que se referem elementos destas classes ...

Pergunta:

Volta e meia, me deparo com construções sintáticas encabeçadas pela preposição "a" como a do exemplo que segue : "A depender da palavra, até a leitura pode ser complicada."

A meu ver, o valor semântico da referida preposição neste contexto seria aproximado ao do valor expresso por uma conjunção conformativa. Assim, equivaleria a dizer: conforme o tipo de palavra usada, até a leitura pode ser complicada. Ante isso, por gentileza , peço, se possível for, um esclarecimento sobre o fato.

Estou mesmo certo ou me equivoco?

Desde já grato pelo apoio de sempre.

Resposta:

Na frase em apreço, a oração «A depender da palavra» terá sobretudo um valor condicional, como se comprova pela equivalência que se pode estabelecer com a frase (1), que inclui uma oração subordinada condicional canónica:

(1) «Se depender da palavra, até a leitura pode ser complicada.»

Esta construção é analisada, por exemplo, por Evanildo Bechara1, que atribui à frase apresentada em (2) este mesmo valor condicional:

(2) «A persistirem os sintomas, procure o médico.» («Se persistirem os sintomas, procure o médico.»)

Disponha sempre!

 

1. E. Bechara, Moderna Gramática Portuguesa. 39.ª ed., Ed. Nova Fronteira, p. 693.