Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
130K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora
Um caso de conversão
«O olhar é decisivo»

Na frase «O olhar é decisivo», a que classe de palavras pertence a palavra olhar? Esta é a questão que funciona como ponto de partida para a dúvida da semana, apontamento da professora Carla Marques no programa Páginas de Português da Antena 2 (em 4/12/2022).

Pergunta:

Ouvi um professor dizendo o seguinte:

«Ontem mesmo eu estava lendo uma tradução que um sujeito fez de uma matéria inglesa. Eu não lembro exatamente as palavras, mas vou tentar criar um equivalente aqui: «“A horrivelmente hipócrita sociedade britânica”. Isso não é português; isso é inglês com palavras brasileiras. Em português você não pode fazer isso. Você não pode anteceder um advérbio, um adjetivo e depois um substantivo, porque não funciona. No entanto, o número de pessoas que escreve assim hoje é enorme.»

Há alguma regra gramatical para que não seja assim ou isso é uma questão de estilo? Se essa construção for estranha ou errada, qual seria a melhor para o exemplo dado, i.e., horrivelmente hipócrita?

Obrigado.

Resposta:

Não poderemos afirmar que a frase em questão esteja errada. Todavia, é certo que a construção é pesada, se não um pouco "barroca", e nela poderemos identificar alguma influência da estrutura da língua inglesa, na colocação do adjetivo antes do nome.

Note-se, porém, que a relação entre o nome e o adjetivo admite várias combinações:

(i) o adjetivo surge depois do nome quando tem um valor classificativo:

(1) «a sociedade britânica»

(ii) quando tem um valor avaliativo, o adjetivo pode surgir à esquerda ou à direita do nome:

(2) «uma sociedade hipócrita»

(3) «uma hipócrita sociedade»

(iii) com um adjetivo avaliativo e um adjetivo classificativo, a sequência «adjetivo avaliativo + nome + adjetivo classificativo» é muito frequente:

(4) «uma hipócrita sociedade britânica»

Ora, estes adjetivos avaliativos podem combinar-se com um advérbio também de valor quantificacional ou avaliativo:

(5) «a muito hipócrita sociedade britânica»

(6) «a claramente hipócrita sociedade britânica»

De acordo com esta última sequência, a estrutura apresentada em (7) é teoricamente possível. Não deixa, porem, de ser sentida como artificial1, pelo que seria preferível substituí-la por uma sequência pós-nominal como a que se apresenta em (8), onde se converteu a estrutura anteposta em oração relativa :

(7) «a horrivelmente hipócrita sociedade britânica»

(8) «a sociedade britânica, que é horrivelmente hipócrita»

Disponha sempre!

 

1. A sensação de artificialidade destes usos nos registos coloquiais é referida por Rita Veloso, que também explica a tendência para a anteposição de alguns adjetivos: «[...] os adjetivos que permitem um maior grau de subjetividade podem ser antepostos facilmente em qualquer tipo de registo, apesar de serem mais raros em registos coloquiais quotidianos; um bom exemplo são os adjetivos qualifi...

Pergunta:

Perguntava-vos e a contração daí funciona como atrator do pronome:

«Conheceu a Ana e daí se apaixonou por ela.»

Obrigado.

Resposta:

A forma daí resulta de uma contração da preposição de com o advérbio . Esta pode construir-se com a próclise do pronome (que surgirá antes do verbo) ou com a sua ênclise (colocando-se depois do verbo).

Comecemos por recordar que as orações introduzidas pela preposição de admitem casos de próclise ou de ênclise1:

(1) «Ele tem de se calar.»

(2) «Temos de dar-lhe a liberdade necessária.»

Em particular, a contração da preposição de com o advérbio pode assumir diferentes valores, entre eles o de sinalização de consequência. Este é o valor que está presente na frase apresentada pelo consulente, a qual poderá admitir próclise se sobre a forma daí recair uma intenção de focalização, que destaca o valor de consequência:

(3) «Conheceu a Ana e daí se apaixonou por ela.»

Se o enfoque for colocado não na consequência, mas na situação descrita (apaixonar-se), a ênclise também é aceitável:

(4) «Conheceu a Ana e daí apaixonou-se por ela.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Martins in Raposo, Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2280-2281.

Pergunta:

Em «jornalista RTP» e «reportagem SIC», qual é a função sintática da sigla e do acrónimo? São modificadores restritivos?

Resposta:

As expressões em apreço constituem sintagmas elípticos nos quais se eliminou a preposição de. Assim, estas corresponderão aos sintagmas «jornalista da RTP» e «reportagem da SIC».

Neste caso, os constituintes «da RTP» e «da SIC» desempenham a função de modificador do nome restritivo, pois associam uma propriedade adicional ao nome, restringindo o seu sentido1, não sendo selecionados pelos nomes sobre os quais incidem.

Disponha sempre!

 

1. J. Peres, in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 717.

Pergunta:

Eu dou aulas de Português como Língua Não Materna (PLNM).

Num texto aparece o seguinte:

«Eu sou o Rui e vivo com os meus pais, os meus avós e as minhas duas irmãs mais velhas»

No segundo parágrafo surge o seguinte:

«Eu estou no meu quarto a jogar às cartas e a minha irmã mais nova está a estudar no quarto dela.»

Provavelmente o narrador queria referir que essa é a irmã mais nova das duas irmãs mais velhas... Contudo, é correto exprimir essa ideia dessa forma?

Quem lê o texto é induzido em erro, pensando que o narrador, na verdade, tem três irmãs, referindo-se à mais nova...

Resposta:

Tem razão a consulente na observação que faz. Com a formulação apresentada, a interpretação do texto encontra uma zona de difícil interpretação, que seria importante clarificar.

O texto em questão cria uma rede de coesão lexical em torno do referente Rui, relativamente ao qual define uma rede de parentesco: pais, avós e duas irmãs mais velhas. Nesta linha, quando se apresenta o sintagma nominal «a minha irmã mais nova», a rede de sentidos apontará para Rui, tomado como referente (o que é reforçado pelo uso do determinante possessivo minha, que assume uma relação de coesão referencial). Assim, a leitura preferencial deste sintagma será «a irmã é mais nova do que o Rui» ou «o Rui é mais velho do que a irmã». Ora, este facto vem criar um ponto de incoerência com o sintagma «as minhas duas irmãs mais velhas», uma vez que este sintagma ativou a leitura «as irmãs são mais velhas do que o Rui» ou «o Rui é o mais novo dos irmãos».

Seria possível resolver esta ambiguidade encontrando outra forma de referir a irmã dita mais nova, introduzindo, por exemplo, os nomes próprios no início do texto ou fazendo uma referência à idade das duas irmãs.

Disponha sempre!