Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Gostaria de saber se, na frase abaixo, se faz obrigatório (e por quê) o uso do pronome -se após o verbo.

«Os equipamentos de proteção de borracha deterioram sob a influência de ozônio, calor, óleo, etc.»

Obrigado.

Resposta:

Considerando a frase tal como é apresentada e sem outro contexto, o uso do pronome se é obrigatório.

O verbo deteriorar tem um uso transitivo direto, como se verifica em (1):

(1) «A chuva deteriorou a cobertura.»

O verbo deteriorar exige um argumento interno, o complemento direto, que indique a realidade sobre a qual incide o dano expresso pelo verbo e um argumento externo, o sujeito, que indica o agente da ação. No caso da frase (1), o objeto danificado é a cobertura e o agente a chuva. Se não se verbalizar o argumento interno pedido pelo verbo, a frase ficará agramatical, o que está patente em (2), onde falta a informação sobre o que foi deteriorado:

(2) «*A chuva deteriorou.»

Os verbos que têm este comportamento semântico recebem o nome de causativos. Entre eles alguns admitem uma variante em que o argumento interno, o complemento direto, passa a funcionar como sujeito e o sujeito original não é realizado:

(3) «A cobertura deteriorou-se.»

Esta é considerada a variante incoativa do verbo, que é assinalada por meio da presença do pronome átono se.

Nestas construções incoativas, a causa da ação pode ser expressa por um sintagma iniciado pela preposição com ou por locuções como «devido a» ou «por causa de»1:

(4) «A cobertura deteriorou-se por causa da chuva.»

Ora, parece ser esta a situação presente na frase apresentada pelo consulente, aqui transcrita em (5) e à qual se acrescentou o pronome se:

(5) «Os equipamentos de proteção de borracha deterioram-se sob a influência de ozônio, calor, óleo, etc.»

O verbo está a ter um uso incoativo, o que é assinalado pelo pronome átono; o sujeito corresponde ao argumento interno do verbo, expressando a entidade sobre a qual recai a ação de degradação; o sintagma «sob a influência de ozônio, calor, óleo, etc.» indica...

Pergunta:

Que eu saiba, temos «amigo virtual», «amigo por telefone», «amigo por carta» e outros mais (dos quais não me recordo de prontidão...)!

Logo, como e por que estaria errado falar em «amigo pessoal»?

E, por sinal, não será preferível mesmo «amigo pessoal» a «amigo real»?

«Amigo virtual», por exemplo, ele existe fora de um computador, de um celular e de um notebook... Eu apenas não o estou vendo ao vivo/pessoalmente/em pessoa! Não é verdade isso?

Então, a que tipo de conclusão vocês chegam desse jeito ou nesse sentido de verdade?

Por favor, muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Se tivermos em consideração a significação isolada de cada palavra, veremos que amigo tem o significado de «que ou quem sente amizade por; ou está ligado por uma afeição recíproca a»1, enquanto pessoal significa «que é próprio de cada pessoa»1. Ora, conjugando as duas significações, veremos que existe, com efeito alguma redundância uma vez que o estatuto de amigo é concedido por cada pessoa, é próprio de cada pessoa, ideia que é repetida por pessoal. Por essa razão, quem condena este uso como redundante aponta que a expressão não tem significado próprio e que, a tê-lo, teria de ser entendida como antónimo de «amigo coletivo», por exemplo.

A condenação que encontramos na gramática tradicional relativamente a estas construções está assim relacionada com o uso do pleonasmo lexical, que, tal como afirma Bechara, «resulta do esquecimento do significado de expressões portuguesas e estrangeiras: decapitar (por decepar, já que decapitar só pode referir-se à cabeça) a cabeça, exultar de alegria, panaceia universal, esquecimento involuntário, desde ab aeterno (ab aeterno é expressão latina que já indica desde a eternidade), desde ab initio, tornar a repetir, prever de antemão, antídoto contra e tantos outros.»2

Note-se, no entanto, que a gramática não condena os usos redundantes que exigem algum esforço cognitivo e que, normalmente, se consideram literários. Estes usos inesperados produzem efeitos de sentido que poderão ser muito interessantes e criativos. Assim, a condenação de certos usos pleonásticos também poderá estar ligada ao facto de as expressões visadas se terem tornado banais e, portanto, mais vazias de sentido.

Será este o caso da expressão «amigo pessoal». Não obstante, não deixa de ser verdade que poderemos associar à expressão uma intenção expressiva, pois a palavra

Pergunta:

Em «Mandou-me ficar onde estava», qual a função sintática dos diferentes constituintes da frase?

Se «ficar onde estava» é complemento direto de «mandou», então «onde estava» é predicativo do sujeito?

Resposta:

A frase em questão apresenta um caso particular de subordinação infinitiva, que recebe o nome de construção de elevação do sujeito a complemento1.

Verbos como mandar, designados causativos, pedem como argumento uma oração subordinada infinitiva que funciona como seu complemento direto, como acontece em (1) onde se destaca com parênteses retos o complemento direto:

(1) «Mandou [o João ficar calado].»

Ora este tipo de construção pode sofrer um processo de ajustamento sintático no qual o sujeito da oração subordinada passa a ser complemento direto do verbo da oração principal. Esse fenómeno fica evidente quando substituímos o sintagma nominal «o João» por um pronome e percebemos que ele assume a forma acusativa, o que indica que passou a desempenhar a função de complemento direito de mandar, como em (2), onde se destaca a oração subordinada:

(2) «Mandou-o [ [-] ficar calado.]

Na frase (2), observamos que o pronome o é, funcionalmente, complemento direto de mandar, mas semanticamente continua a ser o sujeito do verbo ficar, o que se assinala por [-]. Esta subida do sujeito à função de complemento direto não é pedida pelo verbo mandar, cujo argumento natural é a oração que indica a ação que resulta da ação do verbo causativo.

Por esta razão, na frase apresentada pela consulente, aqui transcrita em (3), o pronome me é, do ponto de vista funcional, um complemento direto:

(3) «Mandou-me [ [-] ficar [onde estava]].»

Finalmente, a oração subordinada substantiva relativa «onde estava» está dependente do verbo ficar funcionando assim num plano de análise interior à oração infinitiva. Ora, o...

Pergunta:

Venho pedir a vossa ajuda para perceber as possíveis estratégias de coesão presentes no uso do pronome a (em «a sinto») na frase «Escrevi esta carta com sinceridade e é com sinceridade que a sinto». Este pronome constitui um exemplo de coesão gramatical referencial por anáfora.

A minha dúvida é se pode ser também um caso de coesão gramatical frásica, por ser o complemento direto de um verbo e estar no feminino singular.

Muito obrigada pela vossa ajuda.

Resposta:

A coesão frásica é desenvolvida por meio de mecanismos linguísticos que asseguram a ligação entre elementos de uma frase, sendo visível nos fenómenos de concordância nominal, verbal, em género e em número. Está também patente nas relações de regência do verbo com o seu complemento e na própria organização dos elementos da frase.

A coesão referencial, por seu turno, assenta no desenvolvimento de cadeias de referência, anafóricas ou catafóricas, nas quais um determinado elemento linguístico, o referente, é retomado por outros ao longo do texto.

Assim sendo, percebemos que a seleção do pronome a, na frase retomada em (1), tem como objetivo manter uma cadeia de referência, na qual o pronome assume sobretudo a função de retomar o referente carta, apontando para ele, como elemento anafórico:

(1) «Escrevi esta carta com sinceridade e é com sinceridade que a sinto.»

Não obstante, a coesão frásica está presente quer no processo de colocação do pronome na frase quer no de flexão. Assim, são indícios de coesão frásica os seguintes aspetos, que não sendo respeitados resultam em frases agramaticais, nas quais falha, portanto, a coesão frásica:

(i) sua colocação antes do verbo sentir:

    (2) «*Escrevi esta carta com sinceridade e é com sinceridade que sinto-a.»

(ii) o fenómeno de concordância em género e número:

     (3) «*Escrevi esta carta com sinceridade e é com sinceridade que os sinto.»

(iii) a flexão em caso ajustada à função sintática que desempenha na frase:

      (4) «*Escrevi esta carta com sinceridade e é com sinceridade que ela sinto.»

 Disponha sempre!

 

*assinala uma frase na qual  existe um problema de coesão frásica.

Pergunta:

Agradeço muito que me explique qual é a diferença entre prédio e edifício?

Quando se deve utilizar edifício, e quando o prédio?

Obrigado.

Resposta:

As palavras prédio e edifício poderão ser usadas ora como sinónimas ora com sentidos específicos.

Prédio pode assumir os seguintes significados:

«1. porção delimitada de solo com as construções que nele existirem;

2. propriedade rústica ou urbana; imóvel

3. herdade; fazenda; campo

4. edifício destinado a habitação; casa

5. edifício de vários andares»1

edifício pode ser usado com os significados assinalados:

«1. construção de carácter permanente, em geral com paredes e teto e de dimensões médias ou grandes

2. prédio de muitos andares

3. figurado resultado de um conjunto de ideias, de combinações»1

Assim, com o significado de «casa», as duas palavras podem ser usadas como sinónimas.

Não obstante, prédio usa-se comummente para referir um imóvel com vários andares, enquanto edifício é usado de forma mais genérica para referir qualquer construção com paredes e teto. Poderemos, assim, considerar que, nestes casos específicos, edifício é entendido como um hiperónimo, ou seja, uma palavra com um significado mais geral, ao passo que prédio é entendido como um hipónimo, ou seja, uma palavra com sentido mais específico, cuja significação se inclui na de edifício.

Refira-se, ainda, que em linguagem jurídica prédio tem uma significação muito específica, pelo que, nestes usos, não poderá ser substituído por edifício. Neste âmbito, usa-se com o sentido de «porção delimitada de solo com as construções que nele existirem» e distingue-se entre «préd...