Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Em «jornalista RTP» e «reportagem SIC», qual é a função sintática da sigla e do acrónimo? São modificadores restritivos?

Resposta:

As expressões em apreço constituem sintagmas elípticos nos quais se eliminou a preposição de. Assim, estas corresponderão aos sintagmas «jornalista da RTP» e «reportagem da SIC».

Neste caso, os constituintes «da RTP» e «da SIC» desempenham a função de modificador do nome restritivo, pois associam uma propriedade adicional ao nome, restringindo o seu sentido1, não sendo selecionados pelos nomes sobre os quais incidem.

Disponha sempre!

 

1. J. Peres, in Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 717.

Pergunta:

Eu dou aulas de Português como Língua Não Materna (PLNM).

Num texto aparece o seguinte:

«Eu sou o Rui e vivo com os meus pais, os meus avós e as minhas duas irmãs mais velhas»

No segundo parágrafo surge o seguinte:

«Eu estou no meu quarto a jogar às cartas e a minha irmã mais nova está a estudar no quarto dela.»

Provavelmente o narrador queria referir que essa é a irmã mais nova das duas irmãs mais velhas... Contudo, é correto exprimir essa ideia dessa forma?

Quem lê o texto é induzido em erro, pensando que o narrador, na verdade, tem três irmãs, referindo-se à mais nova...

Resposta:

Tem razão a consulente na observação que faz. Com a formulação apresentada, a interpretação do texto encontra uma zona de difícil interpretação, que seria importante clarificar.

O texto em questão cria uma rede de coesão lexical em torno do referente Rui, relativamente ao qual define uma rede de parentesco: pais, avós e duas irmãs mais velhas. Nesta linha, quando se apresenta o sintagma nominal «a minha irmã mais nova», a rede de sentidos apontará para Rui, tomado como referente (o que é reforçado pelo uso do determinante possessivo minha, que assume uma relação de coesão referencial). Assim, a leitura preferencial deste sintagma será «a irmã é mais nova do que o Rui» ou «o Rui é mais velho do que a irmã». Ora, este facto vem criar um ponto de incoerência com o sintagma «as minhas duas irmãs mais velhas», uma vez que este sintagma ativou a leitura «as irmãs são mais velhas do que o Rui» ou «o Rui é o mais novo dos irmãos».

Seria possível resolver esta ambiguidade encontrando outra forma de referir a irmã dita mais nova, introduzindo, por exemplo, os nomes próprios no início do texto ou fazendo uma referência à idade das duas irmãs.

Disponha sempre!

Pergunta:

Estou a estudar os atos ilocutórios e surgiu-me uma dúvida. Os atos ilocutórios têm em conta o locutor e os verbos que expressam a sua intencionalidade.

Tendo em conta este aspeto, na frase «O autor assegura que a personagem dialoga com os leitores», estamos perante um ato ilocutório assertivo ou compromissivo?

No manual, o verbo assegurar aparece na lista do ato compromissivo.

Muito obrigada pela ajuda.

Resposta:

A frase apresentada configura um ato ilocutório assertivo, na medida em que, por meio deste enunciado, o locutor se relaciona com o valor de verdade do conteúdo da proposição. Por essa razão a afirmação será equivalente a (1):

(1) «Eu asseguro que é verdade que o autor assegura que a personagem dialoga com os leitores.»

O ato ilocutório compromissivo tem um objetivo diferente: ele visa comprometer o locutor com a realização da ação expressa no conteúdo proposicional de enunciado. Por essa razão, podemos dizer que a frase (2) configura um ato ilocutório compromissivo, pois nela o locutor compromete-se com a realização da ação «ler este livro»:

(2) «Prometo que vou ler este livro.»

O verbo assegurar pode ser usado como sinalizador de ato ilocutório compromissivo, mas numa circunstância em que seja equivalente a prometer ou a comprometer-se, como em (3):

(3) «Asseguro que a minha personagem vai dialogar com os leitores.» (=«Prometo que a minha personagem vai dialogar com os leitores.»)

O que ficou dito permite-nos perceber que a frase em apreço não configura um ato ilocutório compromissivo, pois nela o verbo assegurar e todo o enunciado não veiculam este valor de compromisso do locutor relativamente a uma ação futura.

 

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Pergunta:

Em documentos, oficiais ou outros, devemos optar pela fórmula «os/as» para consagrar uma linguagem promotora da igualdade do género?

Por exemplo: «O evento destina-se ao/à profissional», ou, no caso do plural, «... a todos/as os/as trabalhadores/as».

Obrigado.

Resposta:

A utilização de linguagem inclusiva tem vindo a ser adotada por diversas instituições. No entanto, não existe ainda uma convenção estabilizada do ponto de vista normativo, até porque esta é uma questão que tem gerado controvérsia, como se pode concluir pelos textos relacionados (que assinalamos na barra).

Não obstante, entre os vários livros de estilo que têm sido dedicados a esta questão, podemos sugerir o Manual de Linguagem Inclusiva, do Conselho Económico e Social.

De acordo com as propostas aqui apresentadas, deve optar-se, sempre que possível, por uma linguagem neutra (que não se associa a nenhum género em particular). Esta opção será possível numa formulação como a que se apresenta em (1):

(1) «O evento destina-se a todo o pessoal (trabalhador).»

No caso de ser importante recorrer a uma palavra em particular, tendo esta dois géneros, como é o caso de profissional, pode sinalizar-se o género masculino e feminino por meio do uso de barras:

(2) «O evento destina-se ao/à profissional»

No caso em que a própria palavra assume formas diferentes de acordo com o género, será preferível não fazer um uso abusivo das barras, que tornam o texto difícil de ler, pelo que se sugere a explicitação das duas formas, como em (3):

(3) «O evento destina-se aos trabalhadores e às trabalhadoras»

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O discurso direto em Saramago
A transposição da fala para a escrita

A representação convencional do discurso direto não é adotada em muitos textos de José Saramago, que cria um sistema próprio de representação desse discurso, como assinala a professora Carla Marques no seu apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2.