Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
125K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Antes de mais, grata pelo vosso serviço.

Ao realizar um questionário com uma das minhas turmas, surgiu a seguinte questão:

Poderemos classificar o verbo saltar como deítico espacial, quando conjugado na 1.ª pessoa?

Obrigada.

Resposta:

 Antes de mais, recorde-se que a «dêixis é um sistema de elementos linguísticos que dependem, para sua interpretação, do contexto situacional»1 e, em concreto, que  a «dêixis espacial permite referir entidades através do seu posicionamento relativamente ao espaço ocupado pelos intervenientes no ato de enunciação, em particular o falante e o ouvinte.»2

Neste âmbito, há verbos de orientação espacial que, normalmente, ativam uma significação de orientação deítica, indicando o ponto de origem do movimento e/ou o final. É o caso de verbos como ir, vir, aproximar-se, afastar-se. Tomando o eu como ponto de referência de identificação do aqui, estes verbos indicam o movimento para um lugar longe do eu ou de um lugar para perto do eu.

No caso do verbo saltar, só o contexto nos poderá dizer se ele está a ser usado como verbo deítico indicador de movimento. Numa frase como a que se apresenta em (1), à partida o verbo tem o sentido de «impulsionar o corpo para se elevar do chão» (in Dicionário Priberam, em linha), pelo que não parece ter um uso deítico:

(1) «Naquele momento, eu saltei.»

Não obstante, em (2), o verbo, ao associar-se à preposição para, já constrói uma significação deítica, indicando um movimento que se orienta de perto para longe do eixo eu-aqui:

(2) «Naquele momento, eu saltei para a rua.»

O mesmo acontece em (3), onde se refere o ponto de origem e o ponto de destino do movimento:

(3) «Eu saltei da janela para a rua.»

Saramago não usa pontuação <br> em muitas das suas obras?
O valor da vírgula e do ponto

A questão do valor da vírgula e do ponto na obra de José Saramago é retomada pela professora Carla Marques neste apontamento divulgado no programa Páginas de Português da Antena 2

Pergunta:

Qual o tipo de coesão na frase «Escorregam da mente criativa de Fernando e foram batidos à máquina tingindo o papel de onde nunca saíram»?

Obrigada.

Resposta:

 A coesão deve ser analisada num segmento textual superior à frase, porque as relações de coesão se estabelecem sobretudo no plano do texto. Não obstante, uma vez que não temos acesso ao texto de onde a frase apresentada foi retirada, poderemos dizer que neste segmento encontramos marcas de coesão gramatical frásica, referencial e interfrásica.

A coesão frásica está presente, por exemplo, no fenómeno de concordância expresso em batidos, que concordará com um sujeito plural, masculino, que não nos é acessível na frase em análise.

A coesão referencial identifica-se na construção da cadeia de referência relativa ao sujeito das formas verbais escorregam, «foram batidos» e saíram, o qual é recuperado por meio de uma elipse (correspondente a um sujeito nulo / não expresso) com a marca de 3.ª pessoa do plural. O antecedente do sujeito estará presente num segmento de texto anterior, e, provavelmente, fará referência a uma entidade identificável no mundo real ou no universo textual.

A coesão interfrásica está presente no recurso aos conectores e e onde, que asseguram a ligação entre orações, atribuindo-lhe um valor de nexo: um valor aditivo em «e foram batidos à máquina tingindo o papel de onde nunca saíram» e um valor de localização espacial em «de onde nunca saíram».

Por fim, a relação entre as formas verbais escorregam, «foram batidos» e saíram causa alguma estranheza pela oscilação entre o presente do indicativo e o pretérito perfeito do indicativo. No entanto, sem termos acesso ao texto original, não poderemos avaliar quer a correção da frase quer possíveis intenções trabalhadas no plano da coesão temporal.

Disponha sempre!

Pergunta:

Qual a modalidade do enunciado «creio que o Ocidente está a perder a batalha intelectual, (…)»?

E o verbo achar configura a mesma modalidade?

Por exemplo, na frase «Acho que o José leu o romance», a modalidade é a mesma?

Obrigada.

Resposta:

A modalidade configurada pela frase apresentada está dependente do valor associado ao verbo crer, que só pelo contexto se poderá recuperar.

Assim, se se usar o verbo crer com o valor de «tomar por verdadeiro, ter por certo» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa), a modalidade configurada será a epistémica com valor de certeza, dado que o locutor veicula uma atitude de certeza relativamente ao que afirma no enunciado «o Ocidente está a perder a batalha intelectual».

Se o verbo crer estiver a ser usado com o valor de «tomar como provável; crença» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa), nesse caso, ativar-se-á a modalidade epistémica com valor de possibilidade, pois o locutor não se compromete com a verdade do enunciado «o Ocidente está a perder a batalha intelectual».

O verbo achar, sendo usado como epistémico, tem o valor de «ter a impressão ou opinião subjetiva» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa), pelo que a sua escolha, à partida, associará ao enunciado uma modalização epistémica com valor de possibilidade.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na expressão «todos os dias compramos um bilhete», ao substituirmos o complemento direto pela forma correspondente do pronome pessoal, qual a regra da pronominalização que prevalece ( «todos os dias o compramos» ou «todos os dias compramo-lo»)?

Podemos aceitar as duas hipóteses?

Agradeço, desde já, a vossa atenção.

Resposta:

Considera-se correta a opção apresentada em (1):

(1) «Todos os dias o compramos.»

O pronome clítico o deve ser colocado em posição proclítica, ou seja, antes do verbo. Tal acontece porque o quantificador todos, a par de outros quantificadores como algum, ambos, bastante, demasiado, muito, pouco(s), entre outros, é uma das palavras que funcionam como atrator de próclise (isto é, atrai o pronome para a posição antes do verbo).  

Disponha sempre