Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Estou a estudar os atos ilocutórios e surgiu-me uma dúvida. Os atos ilocutórios têm em conta o locutor e os verbos que expressam a sua intencionalidade.

Tendo em conta este aspeto, na frase «O autor assegura que a personagem dialoga com os leitores», estamos perante um ato ilocutório assertivo ou compromissivo?

No manual, o verbo assegurar aparece na lista do ato compromissivo.

Muito obrigada pela ajuda.

Resposta:

A frase apresentada configura um ato ilocutório assertivo, na medida em que, por meio deste enunciado, o locutor se relaciona com o valor de verdade do conteúdo da proposição. Por essa razão a afirmação será equivalente a (1):

(1) «Eu asseguro que é verdade que o autor assegura que a personagem dialoga com os leitores.»

O ato ilocutório compromissivo tem um objetivo diferente: ele visa comprometer o locutor com a realização da ação expressa no conteúdo proposicional de enunciado. Por essa razão, podemos dizer que a frase (2) configura um ato ilocutório compromissivo, pois nela o locutor compromete-se com a realização da ação «ler este livro»:

(2) «Prometo que vou ler este livro.»

O verbo assegurar pode ser usado como sinalizador de ato ilocutório compromissivo, mas numa circunstância em que seja equivalente a prometer ou a comprometer-se, como em (3):

(3) «Asseguro que a minha personagem vai dialogar com os leitores.» (=«Prometo que a minha personagem vai dialogar com os leitores.»)

O que ficou dito permite-nos perceber que a frase em apreço não configura um ato ilocutório compromissivo, pois nela o verbo assegurar e todo o enunciado não veiculam este valor de compromisso do locutor relativamente a uma ação futura.

 

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Pergunta:

Em documentos, oficiais ou outros, devemos optar pela fórmula «os/as» para consagrar uma linguagem promotora da igualdade do género?

Por exemplo: «O evento destina-se ao/à profissional», ou, no caso do plural, «... a todos/as os/as trabalhadores/as».

Obrigado.

Resposta:

A utilização de linguagem inclusiva tem vindo a ser adotada por diversas instituições. No entanto, não existe ainda uma convenção estabilizada do ponto de vista normativo, até porque esta é uma questão que tem gerado controvérsia, como se pode concluir pelos textos relacionados (que assinalamos na barra).

Não obstante, entre os vários livros de estilo que têm sido dedicados a esta questão, podemos sugerir o Manual de Linguagem Inclusiva, do Conselho Económico e Social.

De acordo com as propostas aqui apresentadas, deve optar-se, sempre que possível, por uma linguagem neutra (que não se associa a nenhum género em particular). Esta opção será possível numa formulação como a que se apresenta em (1):

(1) «O evento destina-se a todo o pessoal (trabalhador).»

No caso de ser importante recorrer a uma palavra em particular, tendo esta dois géneros, como é o caso de profissional, pode sinalizar-se o género masculino e feminino por meio do uso de barras:

(2) «O evento destina-se ao/à profissional»

No caso em que a própria palavra assume formas diferentes de acordo com o género, será preferível não fazer um uso abusivo das barras, que tornam o texto difícil de ler, pelo que se sugere a explicitação das duas formas, como em (3):

(3) «O evento destina-se aos trabalhadores e às trabalhadoras»

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O discurso direto em Saramago
A transposição da fala para a escrita

A representação convencional do discurso direto não é adotada em muitos textos de José Saramago, que cria um sistema próprio de representação desse discurso, como assinala a professora Carla Marques no seu apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2. 

Pergunta:

Gostava que me pudessem esclarecer se a frase «António Silva estreia-se a titular» (CNN Portugal – Jogo de preparação para o Mundial, Portugal vs Nigéria) está correcta.

O certo não seria «estreia-se como titular»?!

Obrigado.

Resposta:

Com efeito, como refere o consulente e de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, para atualizar o sentido de «ter o seu primeiro desempenho», o verbo estrear-se constrói-se com como:

(1) «Ele estreou-se como gerente de loja.»

Identificamos o uso da preposição a com o verbo estrear-se para introduzir sobretudo constituintes de natureza temporal:

(2) «Ele estreou(-se) a 20 de janeiro.»

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Pergunta:

Na frase «Ao fim de um mês foi bater à porta da mãe», «ao fim» é uma locução adverbial de tempo?

Resposta:

«Ao fim de» pode ser entendido como uma locução prepositiva. Trata-se de uma locução construída por preposição + nome + preposição, que, neste caso, é equivalente à preposição simples após:

(1) «Após um mês foi bater à porta da mãe.»

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