Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Nas frases

«A Joana mora com a Maria.»

«Ambas moram em Leiria.»

«O António vai morar para Lisboa.»

As expressões «com a Maria», «em Leiria» e «para Lisboa» desempenham todas a função sintática de complemento oblíquo?

Surgiu-me esta "dúvida tola" quando tentava aplicar várias preposições a este verbo intransitivo e, como não encontrei nenhuma gramática onde constem todas as preposições que podem ser usadas com alguns destes verbos (como no caso de «ir a, com, contra, de, para, por») senti necessidade de recorrer aos vossos prestimosos serviços.

Grata.

Resposta:

Em todas as frases os constituintes introduzidos por preposição desempenham a função de complemento oblíquo, embora sejam complementos de verbos distintos.

Assim, na frase transcrita em (1), o verbo morar é transitivo indireto pedindo um complemento de lugar onde, que é preenchido pelo grupo preposicional «em Leiria»:

(1) «Ambas moram em Leiria

O constituinte sublinhado desempenha, portanto, a função de complemento oblíquo.

O verbo morar também pode ser usado com o sentido de «compartilhar moradia; viver com» (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Com esse sentido, o verbo constrói-se com a preposição com, como acontece em (2):

(2) «A Joana mora com a Maria.»

Nesta frase, o constituinte «com a Maria» desempenha a função de complemento oblíquo.

Na frase (3), o grupo preposicional «para Lisboa» não é um complemento do verbo morar, mas sim do verbo ir, o que fica patente no facto de a eliminação do verbo ir em (4) produzir uma frase distinta de (3). A frase (5) já será equivalente a (3) e mostra que o constituinte «para Lisboa» é argumento do verbo ir1:

(3) «O António vai morar para Lisboa.»

(4) «O António mora para Lisboa.»

(5) «O António vai para Lisboa [para morar lá].»

Assim sendo, em (3), o grupo preposicional «para Lisboa» desempenha a função de complemento oblíquo do verbo ir.

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Numa resposta a uma pergunta feita por mim, cujo título é “Concordância com infinitivo: 'Agrada-me dançar e cantar'”, a consultora Carla Marques disse: «um sujeito composto por duas orações coordenadas desencadeia uma concordância na 3.ª pessoa do singular». E justificou citando um trecho da Gramática do Português (Fundação Calouste Gulbenkian). Compreendi muito bem a sua resposta, pela qual lhe fico muito agradecido.

Só que, lendo na Nova Gramática do Português Contemporâneo de Lindley Cintra e Celso Cunha, em relação a concordância, apareceu o seguinte:

«Mas o verbo pode ir para o plural quando os infinitivos exprimem ideias nitidamente contrárias:

«Em sua vida, à porfia, Se alternam rir e chorar.» (A. de Oliveira, Póst., 43.).” »

Aí, eu pergunto:

1.º Por que há a possibilidade de o verbo ir para a 3.ª pessoa do plural, já que o sujeito feito de infinitivos não possui um núcleo pronominal ou nominal a ser fonte para uma concordância numérica?

2.º Então, teria de aceitar que «rir e chorar» são sujeitos compostos apesar de não possuir um núcleo pronominal ou nominal?

Desde já, muito obrigado.

Resposta:

Na resposta dada anteriormente abordámos os casos gerais de concordância do verbo com sujeito composto constituído por orações infinitivas. Consideramos agora alguns casos específicos.

Com efeito, tanto Cunha e Cintra1 como Raposo2 assinalam a possibilidade de, em casos particulares, o verbo flexionar no plural quando o sujeito composto inclui duas orações infinitivas3.

Raposo acrescenta ainda que «[e]ssa concordância torna-se mesmo obrigatória quando o predicado exige um sujeito semanticamente plural, como p.e., alternar-se ou o predicado recíproco excluir-se mutuamente […]»4

Para explicar esta possibilidade de concordância do verbo na 3.ª pessoa do plural, Raposo avança a hipótese explicativa de que se pode atribuir às orações infinitivas uma natureza nominal, o que permitira marcá-las com o traço de número singular. Por essa razão, em certas situações e para alguns falantes, ocorrendo em estruturas compostas, duas orações infinitivas coordenadas podem desencadear a concordância na 3.ª pessoa do plural.

Disponha sempre!

 

1. Cf. Cunha e Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 507.

2. Cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2449-2450, caixa [5].

A concordância do verbo <br>com um numeral percentual
Regra geral e especificidades

Diário de Notícias escreveu em manchete «Jovens fogem do país. 70% ganhava menos de mil euros e lá fora recebe mais de 2 ou 3 mil». Este título deixou dúvidas ao ator Diogo Infante devido à concordância do verbo. Este é o tópico que dá matéria ao apontamento da professora Carla Marques no Páginas de Português, da Antena 2 (18/02/2022).

Pergunta:

Produção do cinema = produção cinematográfica.

Produção da televisão = produção televisiva.

E produção de vídeo = produção vidática? Videática? Ou qual a palavra?

Aproveitando: por que razão, nesse caso, é "produção de vídeo" e não "produção do vídeo" mesmo?

Muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

O adjetivo videático não tem registo dicionarístico, mas é uma palavra bem formada.

Videático forma-se a partir da associação do sufixo -ático (que exprime um valor de relação) ao radical video-, formando uma palavra com o significado de “relativo a vídeo”.

Em textos do Brasil, encontramos vários registos do adjetivo em textos atuais:

(1) «letramento videático («Esse vídeo é um tapa na cara»)

(2) «resenha fotográfica (e videática)» (Retrópolis)

(3) «linguagem 'videática'» (Youtube) 

(4) «imagem videática» («Cinema no contexto escolar: por uma pedagogia da criação»)

Pelo exposto, consideramos que o recurso ao adjetivo videático é aceitável.

Relativamente à omissão do artigo em «produção de vídeo», teremos, antes de mais, de recordar que as razões que levam à omissão do artigo poderão ser diferentes entre o português europeu e o português do Brasil. Assim, numa abordagem de natureza gramatical que não considera estas diferenças, poderemos dizer que a opção pelo uso ou omissão do artigo está muitas vezes relacionada com a oposição entre o valor [+definido] e [-definido]. Quando usamos o artigo em «produção da televisão» ou «produção do cinema», estamos a especificar televisão e cinema como entidades concretas. Quando não o fazemos com

Pergunta:

Não me parece correcta a frase, repetida amiúde nos canais de televisão: «Invasão da Rússia à Ucrânia».

Agradecia o vosso parecer.

 

N. E. (19/12/2022) – Mantém-se a grafia correcta, conforme a anterior norma, seguida pelo consulente. No contexto da ortografia em vigor, escreve-se correta.

Resposta:

A construção em causa é aceitável.

O sintagma em análise é considerado uma nominalização, ou seja, uma conversão de um sintagma verbal numa construção em torno de um nome formado a partir do verbo (chamado nome deverbal). Este tipo de construção parte de um sintagma verbal, como o que se apresenta em (1), e resulta na nominalização apresentada em (2):

(1) «A carta chegou.»

(2) «a chegada da carta»

O nome chegada é considerado deverbal. Nomes desta natureza têm a particularidade de herdar os argumentos do verbo. Por essa razão, chegada é um nome que pede um complemento. Neste caso, o complemento «da carta» corresponde ao sujeito do verbo chegar e expressa o agente da ação, aquele que a executou. Este tipo de complemento, que corresponde ao sujeito no sintagma verbal, é introduzido pela preposição de.

Como resultado deste processo de nominalização, é também possível que o nome peça dois argumentos, que resultam da estrutura argumental do verbo. É o que acontece na passagem de (3) para (4):

(3) «O João elogiou a Rita.»

(4) «o elogio do João à Rita»

Uma vez que o nome só admite complementos à sua direita, o sujeito verbal é colocado imediatamente a seguir ao nome elogio, sendo introduzido pela preposição de («do João») e o complemento direto verbal é colocado a seguir, sendo, neste caso, introduzido pela preposição a («à Rita»).

Neste processo de nominalização, uma das questões que se pode colocar está relacionada com a seleção da preposição que introduz cada um dos complementos do nome. Neste âmbito, como se disse, o sujeito verbal converte-se normalmente num nome introduzido por de. A...