Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Aconchegado ou aconchegante?

Numa discussão com o meu namorado sobre estas duas palavras não conseguimos chegar a um consenso. A frase que vimos foi a seguinte:

«Trata-se de um espaço aconchegado do qual não poderá escapar.»

Eu disse que espaço aconchegado não está correto, pois um espaço não pode ser aconchegado mas sim aconchegante.

Ele diz que a frase está correta.

São realmente dois adjetivos, mas como é possível diferenciar as suas nuances?

Agradeço a atenção.

Resposta:

Os adjetivos têm significações distintas. Não obstante, em alguns contextos, poderão expressar valores muito próximos.

Aconchegado significa «que se aconchegou», «em contacto; próximo», «sob proteção física; abraçado», «bem acomodado; confortável»1.

Os exemplos apresentados abaixo, retirados do Corpus do Português, de Mark Davies, exemplificam estes valores:

(1) «Mas nada disso satisfaz a fome que ele tem, nem sabe bem de quê: de se apertar e fechar os olhos, de sentir-se aconchegado.» (José Rodrigues Migueis, A Escola do paraíso. 1982)

(2) «Ficava outro, aconchegado a ela, quase a querer meter-se no seu colo, a esperar que ela conduzisse as coisas.» (António Alçada Baptista, Os nós e os Laços. 1985)

(3) «Tratado, desde os primeiros vagidos, como objecto valioso e quebradiço, (aconchegado em algodões, isolado das correntes de ar, ingurgitado numa alimentação absurda que lhe depauperara os intestinos), a criança medrou debilmente de corpo e pouco vigorosa de espírito.» (Alexandre Cabral, Margem Norte. 1979)

Aconchegante, por seu turno, significa «que aconchega, acolhe agradavelmente», «acolhedor»1. No mesmo corpus, identificámos os seguintes exemplos:

(4) «O aconchegante Hotel Solar Fazenda do Cedro, em Areal, promovendo um festival de fondues e racletes no fim de ...

Pergunta:

Tenho uma dúvida para a qual não encontro explicação satisfatória.

Ao escrever utilizando subordinadas causais, em especial utilizando "como" como sinônimo de "porque", por vezes tenho dúvidas quanto ao uso do indicativo ou do subjuntivo para melhor exprimi-las.

Exemplo: "Como ele era um rapaz ousado, foi até lá." ou "Como ele fosse um rapaz ousado, foi até lá."

Por vezes prefiro intuitivamente a segunda opção. Gostaria de saber se ambas estão corretas e qual a diferença neste caso.

Obrigada desde já.

Resposta:

A conjunção como com valor causal usa-se habitualmente com o modo indicativo.

A oração causal introduzida pela conjunção como apresenta uma causa verdadeira e conhecida de todos, devendo ser colocada à cabeça da frase:

(1) «Como o prazo de entrega do trabalho termina hoje, ficamos em casa.»

O valor de causa real e conhecida é expresso pelos tempos do modo indicativo.

Sobretudo no registo escrito, como pode usar-se com conjuntivo, numa sintaxe que se pode considerar latinizante2.

Registe-se ainda que a conjunção como pode associar-se a outros valores. Por exemplo, quando conjugada com se, exprime uma comparação hipotética, também classificada como comparativa-condicional1:

(2) «Ele agia como se o estivessem a observar.»

Neste caso, recorre-se ao conjuntivo para expressar o valor de possibilidade/hipótese (ver também esta resposta).

Refira-se também que, como se explicou nesta resposta, com este valor, é possível encontrar frases que omitem se. Estas são construções próprias de um registo informal, tendo aceitabilidade duvidosa entre muitos falantes.

Em síntese, a frase apresentada pela consulente poderá apresentar o verbo no indicativo ou no conjuntivo (opção que será sentida como mais literária):

(3) «Como ele era / fosse um rapaz ousado, foi até lá.»

Disponha sempre!

 

Pergunta:

Gostaria de saber se, na frase abaixo, se faz obrigatório (e por quê) o uso do pronome -se após o verbo.

«Os equipamentos de proteção de borracha deterioram sob a influência de ozônio, calor, óleo, etc.»

Obrigado.

Resposta:

Considerando a frase tal como é apresentada e sem outro contexto, o uso do pronome se é obrigatório.

O verbo deteriorar tem um uso transitivo direto, como se verifica em (1):

(1) «A chuva deteriorou a cobertura.»

O verbo deteriorar exige um argumento interno, o complemento direto, que indique a realidade sobre a qual incide o dano expresso pelo verbo e um argumento externo, o sujeito, que indica o agente da ação. No caso da frase (1), o objeto danificado é a cobertura e o agente a chuva. Se não se verbalizar o argumento interno pedido pelo verbo, a frase ficará agramatical, o que está patente em (2), onde falta a informação sobre o que foi deteriorado:

(2) «*A chuva deteriorou.»

Os verbos que têm este comportamento semântico recebem o nome de causativos. Entre eles alguns admitem uma variante em que o argumento interno, o complemento direto, passa a funcionar como sujeito e o sujeito original não é realizado:

(3) «A cobertura deteriorou-se.»

Esta é considerada a variante incoativa do verbo, que é assinalada por meio da presença do pronome átono se.

Nestas construções incoativas, a causa da ação pode ser expressa por um sintagma iniciado pela preposição com ou por locuções como «devido a» ou «por causa de»1:

(4) «A cobertura deteriorou-se por causa da chuva.»

Ora, parece ser esta a situação presente na frase apresentada pelo consulente, aqui transcrita em (5) e à qual se acrescentou o pronome se:

(5) «Os equipamentos de proteção de borracha deterioram-se sob a influência de ozônio, calor, óleo, etc.»

O verbo está a ter um uso incoativo, o que é assinalado pelo pronome átono; o sujeito corresponde ao argumento interno do verbo, expressando a entidade sobre a qual recai a ação de degradação; o sintagma «sob a influência de ozônio, calor, óleo, etc.» indica...

Pergunta:

Que eu saiba, temos «amigo virtual», «amigo por telefone», «amigo por carta» e outros mais (dos quais não me recordo de prontidão...)!

Logo, como e por que estaria errado falar em «amigo pessoal»?

E, por sinal, não será preferível mesmo «amigo pessoal» a «amigo real»?

«Amigo virtual», por exemplo, ele existe fora de um computador, de um celular e de um notebook... Eu apenas não o estou vendo ao vivo/pessoalmente/em pessoa! Não é verdade isso?

Então, a que tipo de conclusão vocês chegam desse jeito ou nesse sentido de verdade?

Por favor, muitíssimo obrigado e um grande abraço!

Resposta:

Se tivermos em consideração a significação isolada de cada palavra, veremos que amigo tem o significado de «que ou quem sente amizade por; ou está ligado por uma afeição recíproca a»1, enquanto pessoal significa «que é próprio de cada pessoa»1. Ora, conjugando as duas significações, veremos que existe, com efeito alguma redundância uma vez que o estatuto de amigo é concedido por cada pessoa, é próprio de cada pessoa, ideia que é repetida por pessoal. Por essa razão, quem condena este uso como redundante aponta que a expressão não tem significado próprio e que, a tê-lo, teria de ser entendida como antónimo de «amigo coletivo», por exemplo.

A condenação que encontramos na gramática tradicional relativamente a estas construções está assim relacionada com o uso do pleonasmo lexical, que, tal como afirma Bechara, «resulta do esquecimento do significado de expressões portuguesas e estrangeiras: decapitar (por decepar, já que decapitar só pode referir-se à cabeça) a cabeça, exultar de alegria, panaceia universal, esquecimento involuntário, desde ab aeterno (ab aeterno é expressão latina que já indica desde a eternidade), desde ab initio, tornar a repetir, prever de antemão, antídoto contra e tantos outros.»2

Note-se, no entanto, que a gramática não condena os usos redundantes que exigem algum esforço cognitivo e que, normalmente, se consideram literários. Estes usos inesperados produzem efeitos de sentido que poderão ser muito interessantes e criativos. Assim, a condenação de certos usos pleonásticos também poderá estar ligada ao facto de as expressões visadas se terem tornado banais e, portanto, mais vazias de sentido.

Será este o caso da expressão «amigo pessoal». Não obstante, não deixa de ser verdade que poderemos associar à expressão uma intenção expressiva, pois a palavra

Pergunta:

Em «Mandou-me ficar onde estava», qual a função sintática dos diferentes constituintes da frase?

Se «ficar onde estava» é complemento direto de «mandou», então «onde estava» é predicativo do sujeito?

Resposta:

A frase em questão apresenta um caso particular de subordinação infinitiva, que recebe o nome de construção de elevação do sujeito a complemento1.

Verbos como mandar, designados causativos, pedem como argumento uma oração subordinada infinitiva que funciona como seu complemento direto, como acontece em (1) onde se destaca com parênteses retos o complemento direto:

(1) «Mandou [o João ficar calado].»

Ora este tipo de construção pode sofrer um processo de ajustamento sintático no qual o sujeito da oração subordinada passa a ser complemento direto do verbo da oração principal. Esse fenómeno fica evidente quando substituímos o sintagma nominal «o João» por um pronome e percebemos que ele assume a forma acusativa, o que indica que passou a desempenhar a função de complemento direito de mandar, como em (2), onde se destaca a oração subordinada:

(2) «Mandou-o [ [-] ficar calado.]

Na frase (2), observamos que o pronome o é, funcionalmente, complemento direto de mandar, mas semanticamente continua a ser o sujeito do verbo ficar, o que se assinala por [-]. Esta subida do sujeito à função de complemento direto não é pedida pelo verbo mandar, cujo argumento natural é a oração que indica a ação que resulta da ação do verbo causativo.

Por esta razão, na frase apresentada pela consulente, aqui transcrita em (3), o pronome me é, do ponto de vista funcional, um complemento direto:

(3) «Mandou-me [ [-] ficar [onde estava]].»

Finalmente, a oração subordinada substantiva relativa «onde estava» está dependente do verbo ficar funcionando assim num plano de análise interior à oração infinitiva. Ora, o...