Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
130K

Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Peço, por favor, que me esclareçam a seguinte dúvida.

Por que razão, na frase «Desde os Romanos aos Mouros, aqui se encontram diferenças, se debatem ideias, se cria», o pronome pessoal se surge antes do verbo?

Transcrevo, de seguida, o texto completo de onde a frase acima foi retirada:

«Quem és tu, Coimbra? Coimbra, a cidade do conhecimento! Na verdade, desde há séculos que a cidade é um ponto de encontro entre culturas. Desde os Romanos aos Mouros, aqui se encontram diferenças, se debatem ideias, se cria. Depois de tornada cidade universitária – a única em Portugal durante 400 anos – foi também lugar de polémicas e de paixões. O seu Fado, triste e melancólico, fala desta cidade como porto de encontros e de partidas. E o rio Mondego traz à cidade a água profunda que vem da Serra da Estrela e atravessa a cidade até chegar ao mar na Figueira da Foz.»

Agradeço, antecipadamente, a vossa disponibilidade.

Resposta:

Os advérbios locativos, quando surgem antes do verbo, poderão ou não atrair o pronome átono para posição proclítica (colocação antes do verbo). A diferença de comportamento sintático está associada ao valor que o advérbio expressa.

Assim, quando os advérbios estão focalizados, usa-se a posição proclítica, como em (1):

(1) «Aqui se faz o melhor pão da região.»

Como explica Martins, «[a]s frases em que ocorrem os advérbios locativos focalizados podem […] ser parafraseadas por ‘[aí/ali/… é que’ ou por ‘só [ai/ali/…] e não noutro lugar’»1. Neste caso, a frase veicula a ideia de que o espaço é exclusivo, destaca-o entre outros lugares onde também se faz pão. Deste modo, a frase (1) equivale a

(1a) «Aí nesse lugar, e em nenhum outro, é que faz o melhor pão da região.»

Os advérbios locativos em posição pré-verbal associam-se à ênclise quando estão topicalizados. Como explica Martins, «[n]esta situação, ou o advérbio locativo tem um antecedente discursivo, interpretando-se como um locativo anafórico ou a referência locativa definida resulta da sua natureza deítica»2.  

(2) «A padaria ficava no final da rua. Ali fabricava-se pão de centeio.»

Neste caso, o advérbio não admite a focalização «aí/ali/… é que». Na frase apenas se afirma que naquele local se fabrica pão de centeio.

Se atentarmos na frase apresentada pela consulente, vemos que a sua interpretação é dúbia:

(3) «Coimbra, a cidade do conhecimento! Na verdade, desde há séculos que a cidade é um ponto de encontro entre culturas. Desde os Romanos aos Mouros, aqui se encontram diferenças, se debatem ideias, se cria.»

Considerando apenas o ex...

Pergunta:

Creio ter aprendido numa aula de Português que, caso se faça uma enumeração após um determinante possessivo, este deverá surgir no plural.

Assim, será mais adequado escrever «os meus tempo e dinheiro» do que «o meu tempo e o meu dinheiro». Isto confirma-se?

Isto parece colocar um problema caso a enumeração tenha substantivos de géneros diferentes, provocando discordância em género. Será alguma das formas seguintes possível?

«Os meus disponibilidade e interesse», ou «as minhas disponibilidade e interesse»?

Obrigado.

P.S. Aproveito para perguntar se as vírgulas estão bem aplicadas na primeira frase.

Resposta:

Neste contexto, dever-se-á optar pela forma singular do determinante:

(1) «o meu tempo e dinheiro»

Quando temos dois nomes coordenados antecedidos de determinante, a opção mais comum é a de omitir os determinantes que incidem sobre o segundo nome:

(2) «o meu amigo e (o meu) companheiro»

Nestes casos, o determinante que acompanha o primeiro nome concorda com ele em género e número, veiculando-se a interpretação de que os determinantes também incidem sobre o termo coordenado1.

Relativamente ao uso das vírgulas na primeira frase, poderemos dizer que estas estão bem aplicadas uma vez que isolam a oração subordinada condicional que intercala a oração subordinada completiva2.

Disponha sempre!

  

1. Para mais informações, cf. Raposo e Brito in Raposo, Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2504-2506.

2. Não esqueçamos, porém, que muitos usos da vírgula são de natureza estilística. A este propósito, consulte-se também os textos relacionados.

Pergunta:

Na frase do conto "A aia" «Assim tumultuosamente os homens de armas lançavam a nova cruel», se substituirmos por um pronome a expressão «a nova cruel», a frase fica com o pronome antes ou depois do verbo?

«Assim tumultuosamente os homens de armas lançavam-na», ou «Assim tumultuosamente os homens de armas a lançavam»?

Penso que, devido ao advérbio assim, o pronome se coloca antes da frase, mas estou com dúvidas.

Resposta:

Advérbios como assim poderão desencadear próclise, atraindo o pronome clítico para antes do verbo, ou associar-se à ênclise, situação em que o pronome se mantém depois do verbo.

Martins refere, a propósito de assim, que se deve distinguir entre o advérbio de modo, que induz próclise (1), e o advérbio conectivo, de valor conclusivo, que se constrói com ênclise (2)1:

(1) «Falou com todos. Assim os pacificou.» (= pacificou os ânimos)

(2) «Fez as leituras em casa. Assim, ajudou-me no trabalho.»

A identificação da natureza do advérbio na frase apresentada exige que se recupere parte do contexto da frase em questão:

(3) «O corpozinho tenro do príncipe lá ficara também, envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado!... Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas – quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergue nos braços, para lho mostrar, o príncipe que despertara.» (Eça de Queirós, A aia.)

No segmento em questão, o narrador afirma que a novidade cruel era lançada daquela forma /com aquelas palavras. Esta interpretação, a ser exata, leva a que se considere assim um advérbio de modo, com função de modificador do grupo verbal (e não um advérbio conectivo). Isto implica que o advérbio induz próclise:

(4) «Assim tumultuosamente os homens de armas a lançavam .»

Disponha sempre!

  

1. Martins in Raposo, Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 2262.

Pergunta:

Aconchegado ou aconchegante?

Numa discussão com o meu namorado sobre estas duas palavras não conseguimos chegar a um consenso. A frase que vimos foi a seguinte:

«Trata-se de um espaço aconchegado do qual não poderá escapar.»

Eu disse que espaço aconchegado não está correto, pois um espaço não pode ser aconchegado mas sim aconchegante.

Ele diz que a frase está correta.

São realmente dois adjetivos, mas como é possível diferenciar as suas nuances?

Agradeço a atenção.

Resposta:

Os adjetivos têm significações distintas. Não obstante, em alguns contextos, poderão expressar valores muito próximos.

Aconchegado significa «que se aconchegou», «em contacto; próximo», «sob proteção física; abraçado», «bem acomodado; confortável»1.

Os exemplos apresentados abaixo, retirados do Corpus do Português, de Mark Davies, exemplificam estes valores:

(1) «Mas nada disso satisfaz a fome que ele tem, nem sabe bem de quê: de se apertar e fechar os olhos, de sentir-se aconchegado.» (José Rodrigues Migueis, A Escola do paraíso. 1982)

(2) «Ficava outro, aconchegado a ela, quase a querer meter-se no seu colo, a esperar que ela conduzisse as coisas.» (António Alçada Baptista, Os nós e os Laços. 1985)

(3) «Tratado, desde os primeiros vagidos, como objecto valioso e quebradiço, (aconchegado em algodões, isolado das correntes de ar, ingurgitado numa alimentação absurda que lhe depauperara os intestinos), a criança medrou debilmente de corpo e pouco vigorosa de espírito.» (Alexandre Cabral, Margem Norte. 1979)

Aconchegante, por seu turno, significa «que aconchega, acolhe agradavelmente», «acolhedor»1. No mesmo corpus, identificámos os seguintes exemplos:

(4) «O aconchegante Hotel Solar Fazenda do Cedro, em Areal, promovendo um festival de fondues e racletes no fim de ...

Pergunta:

Tenho uma dúvida para a qual não encontro explicação satisfatória.

Ao escrever utilizando subordinadas causais, em especial utilizando "como" como sinônimo de "porque", por vezes tenho dúvidas quanto ao uso do indicativo ou do subjuntivo para melhor exprimi-las.

Exemplo: "Como ele era um rapaz ousado, foi até lá." ou "Como ele fosse um rapaz ousado, foi até lá."

Por vezes prefiro intuitivamente a segunda opção. Gostaria de saber se ambas estão corretas e qual a diferença neste caso.

Obrigada desde já.

Resposta:

A conjunção como com valor causal usa-se habitualmente com o modo indicativo.

A oração causal introduzida pela conjunção como apresenta uma causa verdadeira e conhecida de todos, devendo ser colocada à cabeça da frase:

(1) «Como o prazo de entrega do trabalho termina hoje, ficamos em casa.»

O valor de causa real e conhecida é expresso pelos tempos do modo indicativo.

Sobretudo no registo escrito, como pode usar-se com conjuntivo, numa sintaxe que se pode considerar latinizante2.

Registe-se ainda que a conjunção como pode associar-se a outros valores. Por exemplo, quando conjugada com se, exprime uma comparação hipotética, também classificada como comparativa-condicional1:

(2) «Ele agia como se o estivessem a observar.»

Neste caso, recorre-se ao conjuntivo para expressar o valor de possibilidade/hipótese (ver também esta resposta).

Refira-se também que, como se explicou nesta resposta, com este valor, é possível encontrar frases que omitem se. Estas são construções próprias de um registo informal, tendo aceitabilidade duvidosa entre muitos falantes.

Em síntese, a frase apresentada pela consulente poderá apresentar o verbo no indicativo ou no conjuntivo (opção que será sentida como mais literária):

(3) «Como ele era / fosse um rapaz ousado, foi até lá.»

Disponha sempre!