Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Venho pedir a vossa ajuda para perceber as possíveis estratégias de coesão presentes no uso do pronome a (em «a sinto») na frase «Escrevi esta carta com sinceridade e é com sinceridade que a sinto». Este pronome constitui um exemplo de coesão gramatical referencial por anáfora.

A minha dúvida é se pode ser também um caso de coesão gramatical frásica, por ser o complemento direto de um verbo e estar no feminino singular.

Muito obrigada pela vossa ajuda.

Resposta:

A coesão frásica é desenvolvida por meio de mecanismos linguísticos que asseguram a ligação entre elementos de uma frase, sendo visível nos fenómenos de concordância nominal, verbal, em género e em número. Está também patente nas relações de regência do verbo com o seu complemento e na própria organização dos elementos da frase.

A coesão referencial, por seu turno, assenta no desenvolvimento de cadeias de referência, anafóricas ou catafóricas, nas quais um determinado elemento linguístico, o referente, é retomado por outros ao longo do texto.

Assim sendo, percebemos que a seleção do pronome a, na frase retomada em (1), tem como objetivo manter uma cadeia de referência, na qual o pronome assume sobretudo a função de retomar o referente carta, apontando para ele, como elemento anafórico:

(1) «Escrevi esta carta com sinceridade e é com sinceridade que a sinto.»

Não obstante, a coesão frásica está presente quer no processo de colocação do pronome na frase quer no de flexão. Assim, são indícios de coesão frásica os seguintes aspetos, que não sendo respeitados resultam em frases agramaticais, nas quais falha, portanto, a coesão frásica:

(i) sua colocação antes do verbo sentir:

    (2) «*Escrevi esta carta com sinceridade e é com sinceridade que sinto-a.»

(ii) o fenómeno de concordância em género e número:

     (3) «*Escrevi esta carta com sinceridade e é com sinceridade que os sinto.»

(iii) a flexão em caso ajustada à função sintática que desempenha na frase:

      (4) «*Escrevi esta carta com sinceridade e é com sinceridade que ela sinto.»

 Disponha sempre!

 

*assinala uma frase na qual  existe um problema de coesão frásica.

Pergunta:

Agradeço muito que me explique qual é a diferença entre prédio e edifício?

Quando se deve utilizar edifício, e quando o prédio?

Obrigado.

Resposta:

As palavras prédio e edifício poderão ser usadas ora como sinónimas ora com sentidos específicos.

Prédio pode assumir os seguintes significados:

«1. porção delimitada de solo com as construções que nele existirem;

2. propriedade rústica ou urbana; imóvel

3. herdade; fazenda; campo

4. edifício destinado a habitação; casa

5. edifício de vários andares»1

edifício pode ser usado com os significados assinalados:

«1. construção de carácter permanente, em geral com paredes e teto e de dimensões médias ou grandes

2. prédio de muitos andares

3. figurado resultado de um conjunto de ideias, de combinações»1

Assim, com o significado de «casa», as duas palavras podem ser usadas como sinónimas.

Não obstante, prédio usa-se comummente para referir um imóvel com vários andares, enquanto edifício é usado de forma mais genérica para referir qualquer construção com paredes e teto. Poderemos, assim, considerar que, nestes casos específicos, edifício é entendido como um hiperónimo, ou seja, uma palavra com um significado mais geral, ao passo que prédio é entendido como um hipónimo, ou seja, uma palavra com sentido mais específico, cuja significação se inclui na de edifício.

Refira-se, ainda, que em linguagem jurídica prédio tem uma significação muito específica, pelo que, nestes usos, não poderá ser substituído por edifício. Neste âmbito, usa-se com o sentido de «porção delimitada de solo com as construções que nele existirem» e distingue-se entre «préd...

Um caso de conversão
«O olhar é decisivo»

Na frase «O olhar é decisivo», a que classe de palavras pertence a palavra olhar? Esta é a questão que funciona como ponto de partida para a dúvida da semana, apontamento da professora Carla Marques no programa Páginas de Português da Antena 2 (em 4/12/2022).

Pergunta:

Ouvi um professor dizendo o seguinte:

«Ontem mesmo eu estava lendo uma tradução que um sujeito fez de uma matéria inglesa. Eu não lembro exatamente as palavras, mas vou tentar criar um equivalente aqui: «“A horrivelmente hipócrita sociedade britânica”. Isso não é português; isso é inglês com palavras brasileiras. Em português você não pode fazer isso. Você não pode anteceder um advérbio, um adjetivo e depois um substantivo, porque não funciona. No entanto, o número de pessoas que escreve assim hoje é enorme.»

Há alguma regra gramatical para que não seja assim ou isso é uma questão de estilo? Se essa construção for estranha ou errada, qual seria a melhor para o exemplo dado, i.e., horrivelmente hipócrita?

Obrigado.

Resposta:

Não poderemos afirmar que a frase em questão esteja errada. Todavia, é certo que a construção é pesada, se não um pouco "barroca", e nela poderemos identificar alguma influência da estrutura da língua inglesa, na colocação do adjetivo antes do nome.

Note-se, porém, que a relação entre o nome e o adjetivo admite várias combinações:

(i) o adjetivo surge depois do nome quando tem um valor classificativo:

(1) «a sociedade britânica»

(ii) quando tem um valor avaliativo, o adjetivo pode surgir à esquerda ou à direita do nome:

(2) «uma sociedade hipócrita»

(3) «uma hipócrita sociedade»

(iii) com um adjetivo avaliativo e um adjetivo classificativo, a sequência «adjetivo avaliativo + nome + adjetivo classificativo» é muito frequente:

(4) «uma hipócrita sociedade britânica»

Ora, estes adjetivos avaliativos podem combinar-se com um advérbio também de valor quantificacional ou avaliativo:

(5) «a muito hipócrita sociedade britânica»

(6) «a claramente hipócrita sociedade britânica»

De acordo com esta última sequência, a estrutura apresentada em (7) é teoricamente possível. Não deixa, porem, de ser sentida como artificial1, pelo que seria preferível substituí-la por uma sequência pós-nominal como a que se apresenta em (8), onde se converteu a estrutura anteposta em oração relativa :

(7) «a horrivelmente hipócrita sociedade britânica»

(8) «a sociedade britânica, que é horrivelmente hipócrita»

Disponha sempre!

 

1. A sensação de artificialidade destes usos nos registos coloquiais é referida por Rita Veloso, que também explica a tendência para a anteposição de alguns adjetivos: «[...] os adjetivos que permitem um maior grau de subjetividade podem ser antepostos facilmente em qualquer tipo de registo, apesar de serem mais raros em registos coloquiais quotidianos; um bom exemplo são os adjetivos qualifi...

Pergunta:

Perguntava-vos e a contração daí funciona como atrator do pronome:

«Conheceu a Ana e daí se apaixonou por ela.»

Obrigado.

Resposta:

A forma daí resulta de uma contração da preposição de com o advérbio . Esta pode construir-se com a próclise do pronome (que surgirá antes do verbo) ou com a sua ênclise (colocando-se depois do verbo).

Comecemos por recordar que as orações introduzidas pela preposição de admitem casos de próclise ou de ênclise1:

(1) «Ele tem de se calar.»

(2) «Temos de dar-lhe a liberdade necessária.»

Em particular, a contração da preposição de com o advérbio pode assumir diferentes valores, entre eles o de sinalização de consequência. Este é o valor que está presente na frase apresentada pelo consulente, a qual poderá admitir próclise se sobre a forma daí recair uma intenção de focalização, que destaca o valor de consequência:

(3) «Conheceu a Ana e daí se apaixonou por ela.»

Se o enfoque for colocado não na consequência, mas na situação descrita (apaixonar-se), a ênclise também é aceitável:

(4) «Conheceu a Ana e daí apaixonou-se por ela.»

Disponha sempre!

 

1. Cf. Martins in Raposo, Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 2280-2281.