Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

É possível considerar a presença de deítico pessoal na frase «Atualmente, os alunos estudam bastante», mesmo estando a forma verbal na 3.ª pessoa?

Obrigada.

Resposta:

Sem outro contexto, na frase não está presente um deítico pessoal.

Os deíticos pessoais são palavras que têm como referência extralinguística o locutor ou o interlocutor a quem aquele se dirige. No caso em apreço, o locutor não parece estar a dirigir-se aos alunos, falando diretamente com eles. A frase apresentada parece indicar que o locutor fala dos alunos, daí a 3.ª pessoa do plural. Por esta razão, não consideramos que a frase inclua deíticos de pessoa.

Disponha sempre!

A locução «a par com»
Sinónima de «a par de»

O valor da locução «a par de» dá matéria ao apontamento da professora Carla Marques, partilhado no programa Páginas de Português, da Antena 2 (em 17/11/2024).

Pergunta:

Estou com dúvida nisso pois acho bem estranho, o uso do de esta correto na frase do exemplo:

Ex: «um saco de farelo de milho»

Sempre que há uma frase em que o de aparece duas ou mais vezes, eu acho um pouco estranho.

Obrigado.

Resposta:

A construção não é errada, embora possa provocar estranheza do ponto de vista da sonoridade.

Na expressão apresentada em (1) está presente uma sequência de grupo nominais organizados de forma hierárquica:

(1) «[um saco de [farelo de milho]]»

Nesta construção o núcleo é o substantivo saco, que é complementado pelo grupo preposicional «de farelo (de milho)», que especifica o conteúdo do saco em questão. Por seu turno, o nome farelo assume-se como núcleo do grupo preposicional «de milho», que vai especificar a natureza do farelo referido na construção. O facto de o substantivo nuclear se ligar ao constituinte que completa a informação por meio da preposição de é muito comum. Na construção em análise, esse fenómeno ocorre duas vezes num contexto de muita proximidade do ponto de vista sintático, o que provoca a estranheza que refere o consulente, pela repetição da preposição de. Todavia, como se disse, não estamos perante uma construção incorreta, mas apenas menos elegante.

Disponha sempre!

Pergunta:

Como classifica a palavra último?

Trata-se de um adjetivo qualificativo ou numeral?

Resposta:

A palavra último é um adjetivo qualificativo.

Os adjetivos numerais equivalem à classe dos numerais ordinais na gramática tradicional, que são assim definidos por Cunha e Cintra: «Os numerais ordinais indicam a ordem de sucessão dos seres ou objetos numa dada série.»1. Nas frases (1) e (2), as palavras destacadas são adjetivos numerais que indicam a ordem da palavra que acompanham:

(1) «Ele escreveu o primeiro livro.»

(2) «Ficou em vigésimo lugar na corrida.»

A palavra último também convoca uma ideia de ordem. Daí a sua proximidade com os ordinais, contudo não equivale a um numeral, pelo que é considerado um adjetivo qualificativo. Evanildo Bechara identifica um conjunto de palavras que tem características similares a último, todas elas adjetivos qualificativos: «Último, penúltimo, antepenúltimo, posterior, derradeiro, anteroposterior e outros tais, ainda que exprimam posição do ser, não têm correspondência entre os numerais e por isso devem ser considerados meros adjetivos.»2

Disponha sempre!

 

1. Cunha e Cintra, Nova Gramática do português contemporâneo. Ed. Sá da Costa, p. 383.

2. Evanildo Bechara, Moderna Gramática Portuguesa. Editora Lucerna, pág. 206.

Pergunta:

Confirmei no Dicionário Prático de Regência Nominal de Celso Pedro Luft que se escreve, tal como se ouve habitualmente, «sou licenciada em x PELA Universidade y» e «sou doutora(/doutorada) em x PELA Universidade y».

Pergunto, primeiro, se o mesmo se aplica – como seria de esperar – à designação mestre: é-se mestre em x POR [instituição de ensino y] (o dicionário referido é omisso neste ponto)?

Pergunto, depois, se é possível explicar gramaticalmente esta construção, que não é óbvia para mim.

Na frase «Sou licenciada pela Universidade y», «pela Universidade y» desempenharia, se compreendo bem, a função sintática de complemento agente da passiva – é a instituição de ensino que "licencia", i.e. que confere o grau académico de licenciado ao estudante. Não sei se este raciocínio está correto, e não consigo aplicá-lo aos outros casos: em «sou mestre pela Universidade y» e em «sou doutor pela Universidade y», o mesmo constituinte («pela Universidade y») não pode desempenhar a função sintática referida, parece-me. Conseguiriam explicar esta construção?

Obrigada pelo vosso precioso trabalho.

Resposta:

Tal como acontece com licenciado, também os nomes mestre e doutor podem ser acompanhados da informação que indica a área de especialização e a instituição que atribui o grau. Diremos, deste modo,

(1) «licenciado em linguística pela Universidade de Lisboa»

(2) «mestre em linguística pela Universidade de Lisboa»

(3) «doutor em linguística pela Universidade de Lisboa»

Relativamente às funções presentes nestas construções, teremos, antes de mais, de ter em consideração que o núcleo das estruturas é um nome, pelo que os constituintes que se relacionarem com ele desempenharão as funções associadas ao nome. Neste caso particular, os constituintes «em linguística» e «pela Universidade de Lisboa» desempenham a função de complemento do nome.

Existe uma relação entre o nome (ou adjetivo) licenciado e a forma verbal licenciar, pelo que a construção apresentada em (1) é próxima das que se apresentam em (4) e (5):

(4) «Ele é licenciado em linguística pela Universidade de Lisboa.»

(5) «A Universidade de Lisboa licenciou-o em linguística.»

No caso de (4), estamos perante uma frase passiva e os constituintes «em linguística» e «pela Universidade de Lisboa» desempenham, respetivamente, as funções de complemento oblíquo e de complemento agente da passiva. Já na frase (5), o constituinte «A Universidade de Lisboa» é sujeito e «em linguística» complemento oblíquo.

Quando o verbo licenciar se converte no nome licença, que é deverbal, este último herda a estrutura argum...