Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Um conhecido meu recebeu um email com a seguinte frase «O que faço com esta criatura?».

Não terá nesta frase a palavra criatura um caráter pejorativo?

Obrigado.

Resposta:

Tudo dependerá da intenção do locutor ao construir a frase.

De uma forma geral, o nome criatura significa «o que foi criado; coisa ou ser resultante do ato de criação, tudo quanto existe»1. É com este sentido que a palavra é usada em frases como (1) ou (2):

(1) «Somos criaturas de Deus.»

(2) «Qualquer criatura ajuda o seu semelhante.»

Não obstante, o termo pode ser associado a contextos que ativam sentidos depreciativos, como em (3), onde se mobilizam sentidos como «ser com atitudes pouco normais; ser desprezível»:

(3) «Esteve o tempo todo distraído. Não quero falar mais daquela criatura.»

Deste modo, se a frase em análise se associar a uma intenção crítica, o termo criatura poderá veicular sentidos pejorativos.

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa. 

O verbo agrícola <i>engavelar</i>
O dito «Julho, debulhar. Agosto, engavelar»

 Esta semana, a professora Carla Marques trata o significado do verbo engavelar usado no dito  «Julho, debulhar. Agosto, engavelar», um apontamento divulgado no programa Páginas de Português, da Antena 2, de 16/03/2025.

Pergunta:

Diz-se "despegar" ou "desapegar"?

Resposta:

Os dois verbos podem ser usados como sinónimos em determinados contextos.

Assim, é possível usar ambos os verbos quando se descreve o ato físico de «desunir, separar o que se encontra ligado; quebrar a união entre dois ou mais elementos»1. Os verbos são também equivalentes ao serviço da descrição do ato de separação entre duas pessoas: «distanciar-se, alguém, de outrém; afastar-se, uma pessoa, de outra afetivamente» ou também «perder, alguém, a afeição por outrem»

Já só se usará o verbo despegar com o sentido de «interromper uma atividade ou o trabalho»:

(1) «Despego às 17h.»

Disponha sempre!

 

1. Consultou-se o Dicionário da língua portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

Pergunta:

É correto dizer-se «estavam três carros ardidos»?

Soa-me bastante melhor «estavam três carros queimados», mas não sei qual o fundamento na gramática para esta questão.

Também não me faz sentido se considerar a opção de o carro ter sido ardido porque, na verdade, eu posso queimar algo, mas não posso arder algo.

Obrigada.

Resposta:

As duas possibilidades estão corretas. Todavia, poderão veicular significados ligeiramente distintos.

O verbo arder é intransitivo e significa «estar em chamas, estar a ser consumido pelo fogo»1.

Deste modo, o grupo nominal «carro ardido» significa «carro que foi consumido pelo fogo»1. O uso da forma participial ardido contribui para a expressão de um valor perfetivo, de situação concluída, fechada.

Por seu turno, o verbo queimar é transitivo direto e significa «consumir ou destruir alguma coisa pelo fogo reduzindo-a a cinzas». A natureza da forma verbal associada ao uso do particípio, para além do valor perfetivo, inclui o valor de um agente que é responsável pela ação de destruir algo por meio do fogo.

Deste modo, o grupo nominal «carro queimado» expressa a noção de que existiu um agente responsável pelo estado do carro, ao passo que o grupo nominal «carro ardido» privilegia o estado do carro e não o responsável por ele. De qualquer forma, estas nuances nem sempre são sentidas pelos falantes, que poderão usar ambas as construções com sentidos muito próximos.

Disponha sempre.

 

1. Dicionário da língua portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

Pergunta:

Na frase «Cesário Verde foi dizer para a cidade de Lisboa...», o segmento «de Lisboa» desempenha a função sintática de complemento do nome ou modificador do nome restritivo?

Obrigada

Resposta:

O caso em apreço constitui uma situação particular associada aos nomes próprios.

O constituinte «cidade de Lisboa» é um grupo nominal constituído por um nome nuclear (cidade), que, neste caso, descreve a categoria da entidade referida e que permite incluí-la na toponímia (nomes de lugar, localidade). Este nome é seguido de outro, o nome próprio Lisboa, que contribui para individualizar a entidade referida e que, neste caso, é introduzida pela preposição de.

Como afirmam Raposo e Nascimento, «[p]ode-se, em princípio, propor que todos os nomes próprios, incluindo os canónicos, se caracterizam por ter um classificador descritivo da categoria ontológica a que pertencem, o qual é implícito no caso dos nomes próprios canónicos. […] Para os topónimos, o classificador implícito é o termo geral ‘lugar’, realizado frequentemente através de hipónimos como cidade, cordilheira, oceano, rio, vila […]”1.

Do ponto de vista sintático, estas construções não têm instrumentos de análise no ensino básico e secundário, pelo que se propõe que sejam vistas como estruturas inanalisáveis.

Disponha sempre!

 

 1. Para mais informações, cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 1015-1018;1037-1041.

 

NEPara uma classificação que é válida no Brasil, mas não em Portugal, consultar as respostas sobre o conceito de «aposto especificativo», indicadas nos Textos Relacionados.