Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

De uma forma muito resumida, costuma-se dizer que a forma simples do gerúndio indica uma ação em curso e a forma composta, por sua vez, indica uma ação concluída antes da ação expressa na oração principal.

No entanto nestas duas frases, as duas formas do gerúndio parecem indicar o mesmo tempo, posterioridade à ação expressa na oração principal:

Gerúndio simples: «Lendo o livro, podes sair.»

Gerúndio composto: «Tendo lido o livro, podes sair.»

Na minha leitura, as duas têm o valor de futuro. Está certa a leitura?

É uma particularidade das orações que exprimem a ideia de condição? Poderia dar-me outros exemplos de frases em que as duas formas têm o mesmo valor?

Obrigada.

Resposta:

Com efeito, no caso em apreço, o valor das duas formas verbais é similar.

O gerúndio simples estabelece o seu valor temporal pela relação que mantém com o predicado da oração subordinante. Quando a oração gerundiva é colocada em início de frase, o uso do gerúndio pode propiciar uma leitura com valor de anterioridade temporal relativamente ao tempo da subordinante:

(1) «Chegando a casa, foi dormir.»

O gerúndio simples pode igualmente veicular uma leitura de sobreposição relativamente ao tempo da subordinante:

(2) «Levando os alunos pela rua, mostrou-lhes os pontos de interesse.»

O gerúndio composto, por seu turno, assinala uma situação concluída, terminada e é sempre anterior ao tempo que toma como referência, que corresponde ao momento da enunciação. Assim, quando a oração gerundiva (composta) é colocada antes da oração subordinante, o seu valor aponta para a anterioridade temporal1:

(3) «Tendo enviado a mensagem, foi descansar.»

Assim, verificamos que os valores veiculados pelo gerúndio simples e composto nas frases (1) e (3) são idênticos, tal como se verifica nas frases apresentadas pela consulente.

Disponha sempre!

 

1. Para mais informações, cf. Raposo et al., Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 549-552.

Pergunta:

Sendo aspirante a tradutor-intérprete, deparo-me, por vezes, com dúvidas relativas ao uso correto de certas expressões (idiomáticas, populares, entre outras).

Neste sentido, venho pelo presente perguntar se é legítimo o uso da expressão «fora de órbita» no seguinte contexto, com o intuito de dar à mesma uma conotação negativa e com o intuito de esta significar que algo é anormal e negativamente muito elevado:

«O ano passado, em algumas águas, as condições revelaram ser de um calor tão inusitado que os níveis de stress térmico estavam ao pé da letra fora de órbita para o sistema de alerta da NOAA.»

Muito obrigado pela atenção!

Resposta:

A construção proposta parece um pouco “barroca” para o pretendido. Antes de mais, será excessivo o uso de duas construções de valor estilístico seguidas («ao pé da letra» e «fora de órbita») num texto de objetivo não literário.

Para além disso, o valor da construção «fora de órbita», no contexto em que está a ser usada, não me parece claro, pelo que não está assegurado que signifique o que pretende. Não esqueçamos que o uso mais comum de «fora de órbita» ativa o sentido de «que está ou é mentalmente perturbado»1, o que poderá introduzir ruído na interpretação do enunciado.

Proponho, por estas razões, que faça uso de uma construção mais simples e transparente, como:

(1) «[…] as condições revelaram ser de um calor tão inusitado que os níveis de stress térmico eram excessivos para o sistema de alerta da NOAA.»

Disponha sempre!

 

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa

Pergunta:

A crítica é, em traços gerais, uma análise/apreciação positiva ou negativa de um objeto.

Essa "apreciação" (positiva ou negativa) poderá ser concretizada recorrendo a adjetivos valorativos ou depreciativos?

Cordialmente.

Resposta:

A crítica pode ser efetuada recorrendo tanto a adjetivos valorativos como depreciativos.

A produção de um texto que tem por objetivo a crítica de uma determinada situação ou objeto envolve uma análise apreciativa que procura identificar os aspetos que se realçam pela positiva ou pela negativa (ou até ambos). Deste modo, a expressão da opinião do locutor que assume o papel de crítico pode verter-se em léxico da valoração positiva ou negativa em função do juízo de valor que a apreciação do objeto/situação motivou.

Neste contexto, não se deve confundir o objetivo comunicativo do texto e até a sua organização estrutural (enquanto género de apreciação crítica) com o significado de crítica entendido como «julgamento, dito desfavorável, usado para censurar alguém ou alguma coisa, realçando-lhe os defeitos»1, um dos valores do nome crítica, que está presente em usos como (1), no qual a palavra equivale a «dizer mal, censurar»:

(1) «Para se destacar, ele dirige as suas críticas ao trabalho dos colegas.»

Disponha sempre!

 

1. Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa.

Pergunta:

Gostaria de confirmar a seguinte função sintática:

«Nem sempre consigo fazer o que gostaria.»

«Nem sempre»: modificador

Agradeço, desde já, a atenção.

Resposta:

Com efeito, nesta frase, o constituinte «nem sempre» desempenha a função sintática de modificador (do grupo verbal).

Os modificadores do grupo verbal são constituintes que «contribuem para o significado do sintagma verbal, quantificando, qualificando ou localizando (temporal ou espacialmente) a situação que se descreve, mas não representam participantes na situação ou no evento descrito pelo verbo.»1.

O constituinte que incide sobre o grupo verbal com a função de modificador, pode ser omitido da frase uma vez que não é um argumento do verbo, ou seja, o verbo não precisa deste constituinte para preencher a sua significação. Neste caso, o verbo conseguir é transitivo direto, pelo que pede um complemento direto para explicitar o seu valor semântico. Por sua vez, o constituinte «nem sempre» incide sobre o grupo verbal acrescentando-lhe um valor de localização temporal que corresponde a uma negação parcial temporal, mas este valor não é essencial para a significação do verbo, apenas a modifica.

Disponha sempre!

 

1. Raposo et al., Gramática do PortuguêsFundação Calouste Gulbenkian, p. 1161.

Pergunta:

É certo de utilizar a composição de verbo (costumar em imperfeito + infinitivo) em vez de (verbo próprio em imperfeito), quando falamos de ações de passado? Isso dá o mesmo significado?

Por exemplo: «Antigamente costumava jogar ténis» em vez de «Antigamente jogava ténis».

Obrigado.

Resposta:

A construção «costumar (no imperfeito do indicativo) + infinitivo» esta disponível na língua portuguesa.

Na construção «costumava jogar», o verbo jogar descreve a ação desenvolvida pelo locutor, ao passo que o verbo costumar é usado com o valor de «ter determinado procedimento habitual, prática constante; agir repetidamente de determinada maneira» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa), ou seja, introduz na frase um valor modal de situação habitual.

Quando usamos o pretérito imperfeito, normalmente, o valor ativado é o de situação que se repete num determinado intervalo temporal. Será esse o valor presente na frase apresentada em (1), onde se descreve a situação de «jogar ténis» como sendo repetida muitas vezes no passado:

(1) «Antigamente jogava ténis.»

É evidente que, num contexto específico, a frase presente em (1) pode expressar um valor de habitualidade equivalente ao da frase (2), pois o imperfeito também pode ser mobilizado para descrever um valor habitual:

(2) «Antigamente costumava jogar ténis.»

Disponha sempre!