Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Ao ler uma notícia, deparei-me com a seguinte frase:

«Um carro contratado para conduzir um funcionário da equipe do ministro da Secretaria Geral da Presidência da República, Márcio Macedo, foi roubado por criminosos na manhã desta quinta-feira (14), na Rua do Riachuelo, no Centro do Rio, em frente ao Hotel Monte Alegre.»

Minha dúvida é quanto à justificativa do uso indiscriminado de vírgulas na presença de adjuntos adverbiais nessa frase:

«na manhã desta quinta-feira (14)» ⇒ um adjunto adverbial tempo

«na Rua do Riachuelo» ⇒ um adjunto adverbial de lugar

«no Centro do Rio» ⇒ seria um adjunto adverbial de lugar ou um aposto circunstancial que identifica a região como localizada no Centro do Rio?

«em frente ao Hotel Monte Alegre» => seria um simples adjunto adverbial de lugar ou um aposto circunstancial que identifica o lugar exato do Centro do Rio em que ocorreu o crime?

Faço essa pergunta, pois alguns adjuntos adverbiais nessa oração parecem se comportar como apostos, ou seja, dando apenas informações extras, que podem ser facilmente suprimidas.

Desculpem se ficou meio confuso!

Resposta:

Poderemos interpretar os constituintes referidos pela consulente como estando integrados num sintagma preposicional que, no seu conjunto, se relaciona com o verbo, tal como se ilustra em (1):

(1) «[…] foi roubado por criminosos na manhã desta quinta-feira (14) [, na Rua do Riachuelo, no Centro do Rio, em frente ao Hotel Monte Alegre].»

Nesta linha, será a totalidade do sintagma preposicional «na Rua do Riachuelo, no Centro do Rio, em frente ao Hotel Monte Alegre» que desempenha a função de adjunto adverbial de «foi roubado».

No interior deste sintagma, existem funções sintáticas que se definem assumindo como elemento nuclear o constituinte «Rua [do Riachuelo]». Serão, deste modo, funções internas ao sintagma nominal, ou seja, são funções adnominais. Neste plano, os constituintes «no Centro do Rio» e «em frente ao Hotel Monte Alegre» desempenham a função de aposto explicativo (circunstancial), modificando o núcleo nominal «Rua [do Riachuelo]»1.

As vírgulas são necessárias para isolar cada um dos apostos, delimitando-os.

Disponha sempre!

 

1. Baseamos a nossa interpretação nos princípios de Bechara, Moderna Gramática Portuguesa. Ed. Lucerna, pp. 593-605; 613-615.

* Por ser brasileira a consulente, foi usada na resposta a nomenclatura gramatical do Brasil.

Pergunta:

Gostaria de saber se as expressões «antes de» e «depois de» são proclitores vinculativos ou opcionais.

Prende-se esta questão com o facto de ter alguns documentos de trabalho (do tempo da faculdade) que apontam para que haja opção, conforme o estilo. As frases que tenho nesse documento são:

«Antes de casarem-se, visitaram Vigo. Depois de casarem-se, foram a Roma.»

A par de:

«Antes de se casarem, visitaram Vigo. Depois de se casarem, foram a Roma.»

O texto resultava de uma investigação da professora de Sintaxe e Semântica do Português, mas, de facto, cada vez mais surgem alunos a usar a ênclise nestas situações.

Será gramatical a ênclise depois dessas locuções temporais?

Agradeço esse esclarecimento.

Resposta:

Nestes casos, a preferência dos falantes parece apontar para um padrão de colocação proclítica do pronome átono, ou seja, o pronome é colocado antes da forma verbal.

Como é sabido, as orações temporais introduzidas por «antes de» e «depois de» constroem-se com infinitivo. Não obstante, nestes casos, teremos de considerar a possibilidade de estas estruturas poderem introduzir tanto orações de infinitivo flexionado como de infinitivo não flexionado. O infinitivo será obrigatoriamente flexionado se o sujeito da oração temporal for diferente do sujeito da oração subordinante.

Nos casos em que se usa o infinitivo flexionado, e de acordo com Ana Martins, «observam-se três padrões de colocação de pronomes átonos, dependendo da preposição introdutora: (i) a colocação é enclítica quando a oração infinitiva é introduzida pela preposição a […] e com; (ii) a preposição em possibilita a variação entre próclise e ênclise; (iii) a colocação é proclítica quando a oração é introduzida por qualquer outra preposição.»1 Assim sendo, nas orações de infinitivo flexionado associadas a preposições como de, para, após, até, em ou sem, o pronome clítico é colocado em próclise, como se observa em (1) onde a oração subordinada tem um sujeito diferente («a Maria e o João») do da oração subordinante («os pais deles»):

(1) «Antes de a Maria e o João se casarem, os pais deles ofereceram-lhes um presente.»

Nos casos em que o sujeito das duas orações é correferente, ou seja, é o mesmo, e este sujeito não é expresso lexicalmente na oração subordinada, alguns falantes admitem o uso do infinitivo não flexionado. Mas, como refere Lobo, os falantes preferem normalmente o infinitivo flexionado com sujeito pronominal nulo (não realizado)2. D...

Pergunta:

Na frase «...e assim ardeu até ao fim.», o verbo «ardeu» é transitivo indireto (considerando que «até ao fim» é complemento oblíquo) ou é verbo intransitivo?

Obrigada.

Resposta:

Neste contexto, o verbo arder é usado como intransitivo.

Arder pode ser usado como transitivo direto (1), tendo complemento direto, ou como transitivo indireto (2), sendo acompanhado de complemento oblíquo:

(1) «O álcool arde a ferida.»

(2) «Ele ardia de raiva.»

Segundo o Dicionário gramatical de verbos portugueses, o verbo arder usado como transitivo indireto pode reger as preposições de ou em.

No caso em apreço, a construção transcrita em (3) evidencia um uso intransitivo do verbo arder, o que se pode identificar colocando a pergunta apresentada em (4):

(3) «...e assim ardeu até ao fim.»

(4) «O que é que ele fez até ao fim? – Ardeu»

O facto de se poder separar o constituinte «até ao fim», que surge na pergunta, do verbo arder, evidencia que se trata de um modificador do grupo verbal.

Disponha sempre!

 

1. Malaca Casteleiro (dir.), Dicionário gramatical de verbos portugueses. Texto editores, 2007.

Pergunta:

Nos versos «Por isso vós, ó Rei, que por divino / Conselho estais no régio sólio posto» [est. 146, canto X, Os Lusíadas], o vocábulo divino desempenha a função sintática de complemento do nome?

Resposta:

Neste caso, o adjetivo divino desempenha a função de complemento do nome.

Embora não seja frequente os adjetivos funcionarem como complementos do nome, há casos em que tal acontece, nomeadamente nas situações em que adjetivos relacionais se combinam com nome deverbais1.  Esta situação ocorre sobretudo quando o adjetivo relacional tem o papel temático de sujeito, como se observa em (1):

(1) «amor maternal» = «amor de mãe» = «a mãe ama (o filho)»

É possível estabelecer esta equivalência no grupo nominal em apreço, como fica patente em (2)

(2) «conselho divino» = «conselho de deus» «deus aconselha»

Por esta razão, neste caso, o adjetivo divino desempenha a função de complemento do nome conselho.

Disponha sempre !

 

1. cf. Brito e Raposo, in Raposo et al. Gramática do Português. Fundação Calouste Gulbenkian, p. 1096.

 

Pergunta:

A dúvida que tenho diz respeito ao grau.

É discutível que a formação do grau seja um processo flexional?

A flexão é sistemática e obrigatório, contudo não se nota isto no que diz respeito ao grau. Não sei se estou a complicar um pouco, mas gostaria de esclarecer esta dúvida.

Obrigada

Resposta:

Alguns tipos de grau ocorrem por processos flexionais.

A flexão é um processo morfológico que está ao serviço das intenções comunicativas do locutor e que permite ajustar as palavras variáveis a determinadas categorias. A flexão ocorre por processos de afixação, sendo o mais frequente caracterizado pela junção de um sufixo a uma forma de base.

Consideramos dois tipos de flexão, a verbal e a nominal e adjetival. A flexão verbal ocorre nas categorias pessoa, número, tempo e modo. Os sufixos que marcam a flexão de cada categoria não são visíveis em todos os casos, pelo que se considera que se encontram amalgamados, como se observa no exemplo:
(1) «cantávamos = canta[tema verbal] va[flexão modo e tempo] mos[flexão pessoa e número]»

A flexão nominal e adjetival ocorre nas categorias número (2), género (3) e grau (4):

(2) «gato – gatos»

(3) «gato – gata»

(4) «gato – gatinho – gatão»

Em cada caso, assinalamos o sufixo que marca a flexão em categoria.

No caso particular do grau, podemos distinguir a flexão dos nomes, que marca os graus aumentativo e diminutivo, da flexão dos adjetivos. Esta última é um processo morfológico quando resulta da junção de um sufixo de grau à base adjetival, como acontece no grau superlativo absoluto sintético (5):

(5) «alto – altíssimo»

Os restantes graus dos adjetivos não são expressos por processos morfológicos, mas sim por processos sintáticos, uma vez que resultam da junção de duas ou mais palavras, como se observa em (6) onde se apresenta o grau superlativo absoluto analítico:

(6) «alto – muito alto»