Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Aproveito essa oportunidade para agradecer a toda a equipa do Ciberdúvidas o trabalho que têm desenvolvido incessantemente ao longo dos anos. A plataforma tornou-se um recurso mais que valioso para muitos seguidores da lusofonia e, sobretudo, permitam-me aqui uma nota, um meio de preservação e pesquisa de particularidades que destacam precisamente o português de Portugal, bastante e imerecidamente preterido hoje em dia em materiais didáticos estrangeiros e pela Internet fora.

Ao assunto.

1. Apareceu-me uma frase:

«[O sobrinho]… respondeu-me com o braço por cima dos meus ombros, cresceu quase meio metro a mais do que eu e tem gosto em sentir que nos protege (...)» (P., 18/08/24, por B.W.).

Embora eu tenha visto tal uso diversas vezes em edições precolendas portuguesas (Público, etc.), ouvido estar em plena circulação no português do Brasil e tenha sido o fenómeno registado em:

1. Dicionário Priberam

e 2. Infopedia – nos exemplos não verificados pelos editores e na descrição do verbete, sempre me deixa em dúvida a "convivência" das duas expressões, a meu ver, distintas: «qualquer coisa mais (do) que qualquer coisa» e «qualquer coisa a mais».

Na maioria esmagadora dos resultados que obtive ao pesquisar, a preposição a surgia na formação «a mais do que qualquer coisa», enquanto a regência verbal («... corresponde a mais do que metade...») ou nominal («referência/algo referente a mais do que...»), e não como parte da locução comparativa única. Ou, se ocorria «a mais», era seguida de um ponto final: «tantas vezes a mais»; «uns anos a mais»; «ficou com moedas a mais», etc. O mesmo aco...

Resposta:

No contexto apresentado, o uso da locução «a mais» é possível e está correto.

A locução adverbial «a mais» é uma expressão fixa que pode ser usada com o valor de «além do desenvolvido ou necessário; a maior, em excesso, de sobra» (Dicionário Houaiss)

Assim, na frase em apreço, identificamos uma oração principal, aqui simplificada na frase transcrita em (1)

(1) «Ele cresceu quase meio metro a mais.»

A esta oração acrescenta-se uma oração subordinada de valor comparativo, que na sua forma completa ficaria como se exemplifica em (2):

(2) «Ele cresceu quase meio metro a mais do que eu cresci.»

Na frase original, o verbo da oração subordinada está omitido, tal como acontece muito frequentemente com as orações subordinadas comparativas:

(3) «Ele cresceu quase meio metro a mais do que eu.»

Em nome do Ciberdúvidas, agradeço as gentis palavras que nos endereça.

Disponha sempre!

Pergunta:

Votos de bom trabalho para toda a equipa do Ciberdúvidas, que tanto nos ajudam!

Tenho uma dúvida quanto ao verbo sair. Procurei se o mesmo se rege por alguma preposição, porém, não encontrei.

Na frase:

«Ao chegar a Campanhã, Carla pegou na maleta e saiu ao exterior /ao cais.» (referindo-se a uma passageira de um comboio).

O uso desta contração a+o está correto? Ou deveria ter-se empregado a preposição para?

«Ao chegar a Campanhã, Carla pegou na maleta e saiu para o exterior/ para o cais.»

Para mim, que não sou portuguesa nativa, muitas normas gramaticais deste tão bonito idioma geram-me imensas dúvidas.

Agradeço a vossa resposta.

Resposta:

No caso em apreço, o verbo sair deve reger a preposição para.

O verbo sair pode reger diferentes preposições, de acordo com o seu valor:

(i) com preposição de: «sair de algum lugar» (indica a proveniência de quem sai)

(ii) com preposição para: «sair para algum lugar» (indica o lugar para onde se dirige o sujeito do verbo)

(iii) com preposição por: «sair por algum lugar» (indica o lugar por onde se saiu)

(iv) com preposição a: «sair à rua» (indica o lugar para onde se foi; mas esta é uma expressão fixa)

Ora, no caso em apreço, pretende indicar o lugar para onde se dirige o sujeito pelo que a preposição adequada é a preposição para:

(1) «Ao chegar a Campanhã, Carla pegou na maleta e saiu para o exterior/ para o cais.»

Poderá também usar a locução «em direção a»

(2) «Ao chegar a Campanhã, Carla pegou na maleta e saiu em direção ao exterior/ para o cais.»

Obrigada pelas gentis palavras que muito nos motivam!

Disponha sempre!

Pergunta:

São várias as páginas do Brasil que apontam a utilização pronominal de «o mesmo» como sendo errada, conforme acontece em frases do género:

«O rapaz faltou à escola, porque o mesmo está doente.»

ou em posição final na frase, substituindo algum sintagma antecedente.

Ora, pelas diversas respostas disponíveis na vossa página, não há menção clara de que este tipo de construção seja errada.

Gostaria de perceber o que está errado: a explicação do Brasil ou aquela fornecida em Portugal?

Grata pela vossa ajuda.

Resposta:

Em português europeu, não podemos considerar que a construção seja errada. Poderemos, todavia, considerar que será usada preferencialmente em determinados contextos.

Autores como, por exemplo, Rodrigues Lapa preferem o uso do demonstrativo «o mesmo» como anafórico de “objetos”: «Se é um objecto, emprega-se de ordinário o pronome este ou mesmo»1. Esta posição vai ao encontro do que sustentam vários gramáticos brasileiros, como Maria Helena Moura Neves (ver aqui).

Não obstante estas posições mais clássicas, é certo que, em português europeu corrente, mesmo pode ser usado como pronome que retoma um antecedente, uso assinalado por diferentes dicionários: «em posição nominal, com função de pronome, usa-se precedido de artigo definido e indica uma coisa ou pessoa que já foram mencionadas anteriormente»2. Vejamos a frase (1):

 (1) «Conheço este senhor. Asseguro-te que é o mesmo que encontrámos ontem.»

Em (1), «o mesmo» retoma o antecedente «este senhor» e assegura a coesão textual. Trata-se de uma construção disponível na língua.

Já a frase apresentada pela consulente, transcrita em (2), parece menos aceitável. Neste caso, será preferencial o recurso à elipse, como em (3), ou à retoma feita pelo pronome pessoal, como em (4):

(2) «O rapaz faltou à escola, porque o mesmo está doente.»

(3) «O rapaz faltou à escola, porque está doente.»

...

Pergunta:

Gostaria de saber qual o fundamento para a utilização dos adjetivos arbitrário e discricionário como semanticamente diferentes, quando os dicionários lhes dão significados idênticos.

Obrigado.

Resposta:

 Com efeito, os adjetivos arbitrário e discricionário podem ser usados como palavras sinónimas, quando significam «que não respeita leis, regras... nem aceita restrições» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa). Pode, assim, dizer-se:

(1) «O despedimento foi arbitrário.»

(2) «O despedimento foi discricionário.»

Todavia, quando o sentido é o de «que é feito ao acaso; sem escolha prévia» (Idem) parece existir uma tendência para usar o adjetivo arbitrário, podendo o termo discricionário parecer um pouco artificial, embora esta seja uma avaliação que pode alterar de falante para falante:

(3) «A disposição dos membros do júri é arbitrária.»

(4) ? «A disposição dos membros do júri é discricionária.»

Já em contexto jurídico, a distinção entre os adjetivos arbitrário e discricionário é bem clara. Arbitrário descreve uma ação contrária à lei ou que desrespeita os seus limites, ao passo que discricionário refere uma liberdade de ação dentro dos limites da lei. Estes valores permitem, assim, distinguir «ato arbitrário» de «ato discricionário», «poder arbitrário» de «poder discricionário», assim como discricionariedade de arbitrariedade.

Disponha sempre!

 

?Assinala a dúvida que a construção poderá oferecer a alguns falantes.

Pergunta:

Tenho encontrado em vários registos escritos, nomeadamente na imprensa, a expressão «deu aval positivo».

Pergunto-me se não será uma redundância evitável, na medida em que «dar o aval» já pressupõe autorizar ou concordar e ninguém dá aval negativo.

Agradeço, desde já, o esclarecimento.

Resposta:

Com efeito, a construção «dar aval positivo» é redundante.

O nome aval significa «apoio, aprovação dados a alguém, a uma entidade, a um projeto» (Dicionário da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa), sendo, por essa razão, sinónimo da aprovação.

Deste modo, um aval será sempre positivo porque corresponde à aprovação de algo.

Disponha sempre!