Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tenciono questionar um determinado grupo de pessoas, solicitando-lhes uma palavra como resposta (família, união, doces,...).

Tenho dúvidas relativamente à melhor opção:

a) De que vais vestir o teu Natal?

b) Do que vais vestir o teu Natal?

Agradecida.

Resposta:

Ambas as frases são possíveis. Todavia, a opção mais natural será a que se transcreve em (1):

(1) «De que vais vestir o teu Natal?»

Nesta opção, usa-se o pronome interrogativo que antecedido da preposição de, pedida pelo verbo vestir («vestir alguém de alguma coisa»), o que indica que o constituinte que desempenha a função de complemento oblíquo.

É possível, no entanto, combinar o interrogativo que com o determinante artigo o. Esta possibilidade forma a locução interrogativa «o que», que é, em muitas situações equivalente ao uso de que:

(2) «Que queres comer?»

(3) «O que queres comer?»

No caso em apreço, tanto será possível usar a frase apresentada em (1) como a construção apresentada em (4):

(4) «Do que vais vestir o teu Natal?»

A opção entre as frases (4) e (1) poderá associar-se a razões estilísticas, contexto em que poderemos considerar que a frase (1) parece mais natural e agradável ao ouvido.

Disponha sempre!

Pergunta:

Na frase «Fui passear pelo jardim» – «pelo jardim» é complemento oblíquo ou modificador do grupo verbal?

Resposta:

O constituinte «pelo jardim» desempenha a função sintática de complemento oblíquo na frase transcrita em (1)

(1) «Fui passear pelo jardim.»

O verbo passear pode ser usado como intransitivo (1), como transitivo direto (2) ou como transitivo indireto (3):

(2) «Fui passear.»

(3) «Passeou o cão.»

(4) «Fui passear para Lisboa.»

Neste último caso, o verbo pede um complemento oblíquo. O mesmo acontece na frase (1), na qual o verbo se constrói com um argumento interno introduzido pela preposição por («pelo jardim»), que desempenha a função de complemento oblíquo.

Disponha sempre!

Pergunta:

Poder-me-ia esclarecer sempre o ato de fala presente na frase «Agora é tempo de tornar reais as promessas da Democracia», presente no discurso de Martin Luther King?

É possível considerar um ato de fala diretivo? E assertivo?

Muito obrigado.

Resposta:

Podemos considerar que a frase em apreço configura um ato ilocutório diretivo indireto.

Antes de mais, recordemos que existe uma diferença entre as expressões «ato de fala» e «ato ilocutório». O ato de fala é um conceito que descreve as ações realizadas por um locutor através de um enunciado, visando intencionalmente obter algo. Um ato de fala é composto por três atos: o ato locutório, que corresponde ao enunciado pronunciado na sua materialidade linguística; o ato ilocutório, que corresponde ao ato realizado pelo locutor quando pronuncia um determinado enunciado; o ato perlocutório, que corresponde ao efeito produzido por um ato ilocutório no interlocutor. 

Neste caso particular, interessa-nos identificar o ato ilocutório veiculado pelo enunciado. Considerando que os atos ilocutórios diretivos têm o objetivo ilocutório procurar levar o interlocutor a realizar uma ação futura, poderemos considerar que, no contexto em que foi produzido o discurso político, o locutor tinha a intenção de incitar os interlocutores a uma ação que permita tornar reais e concretas as ideias da democracia. De acordo com essa interpretação, estamos perante um ato ilocutório diretivo.

Trata-se, todavia, de um ato ilocutório diretivo indireto porque o locutor não expressa uma ordem de forma direta. Esta ordem é atenuada por meio do recurso a uma frase declarativa, que, no entanto, pode ser interpretada como equivalente a (1), onde a ordem é apresentada de forma direta:

(1) «Vamos tornar reais as promessas da Democracia.»

Não consideramos que a frase apresentada pelo locutor veicule um ato ilocutório assertivo porque a intenção do enunciado não parece estar veiculada a um valor de verdade da afirmação. Por essa razão, não consideramos que a frase seja equivalente à afirmação apresentada em (2) porque o objetivo ilocutório não parece resumir-se, neste...

Pergunta:

Pode um sítio ser simpático? E um objecto? É a simpatia exclusiva dos seres vivos?

Conheço uma pessoa que regularmente afirma «este sítio é simpático» ou «este jantar é simpático», mas não consegue clarificar exatamente o que isso significa. Gera-se então a discussão do que significa ser simpático e se pode ser aplicável a lugares e objectos inanimados.

dicionário Priberam define simpático como «que inspira simpatia». Consigo conceber que isso se aplique a um local (mas não uma refeição) até ler a definição de simpatia no mesmo dicionário: «Sentimento de atração moral que duas pessoas sentem uma pela outra.» Esta definição nem dá latitude para animais serem simpáticos (discutível), mas parece de todo fechar a porta a objetos. Isto é, até ler a definição de moral: «Não físico nem material (ex.: estado moral). = ESPIRITUAL.» Um sítio pode invocar uma atração espiritual, mas se formos por este caminho temo que já nos estejamos a afastar demasiado do cerne da questão.

Recapitulando: pode a palavra simpático ser aplicada a seres não vivos?

Resposta:

O adjetivo simpático pode surgir em construções aplicado a entidades não humanas.

O adjetivo simpático deriva do nome simpatia e dele herda os traços semânticos que, nas aceções mais gerais, contribuem para a descrição de uma «afinidade moral, similitude no sentir e pensar que aproxima duas ou mais pessoas»1. Também pode descrever uma «impressão agradável, disposição favorável que se experimenta em relação a alguém que pouco se conhece»1 ou referir uma «pessoa que costuma ser agradável, delicada, afável»1. Podemos, assim, concluir que simpatia/simpático nas aceções denotativas previstas nos dicionários se aplica a entidades humanas.

No entanto, na língua, é possível recorrer a processos de extensão semântica, mais ou menos criativos, que permitem usos que à partida não estavam previstos. Estes procedimentos podem ocorrer, por exemplo, por meio de recursos expressivos que exploram usos criativos da linguagem. Tal pode ocorrer com o adjetivo simpático, que, por exemplo, por meio da construção de uma hipálage2, pode ser aplicado a entes não humanos. Tal acontece porque este recurso permite a transferência de uma característica humana para um animal ou objeto. Neste contexto, no Corpus do Português, de Mark Davies, na secção histórica, os usos do adjetivo simpático aplicado a diversas realidades estão bem documentados, o que mostra que nem sequer estamos perante um modismo recente:

(1) «Trazia um vestido simples, simpático, alegre, um grande avental claro – e os dentes brancos s...

Pergunta:

Gostaria de saber se o verbo ligar pode ser usado como intransitivo na frase seguinte que aparece nas instruções de utilização de um dispositivo médico.

«Desligue o dispositivo e ligue novamente.»

Na minha opinião, nesta frase falta o objeto direto e, por isso, deve ser alterada da seguinte forma: «Desligue o dispositivo e ligue-o novamente.»

Muito obrigada pela resposta!

Resposta:

O verbo ligar, usado com o sentido de «pôr em funcionamento», é transitivo direto, pelo que deve ser acompanhado de um constituinte com a função de complemento direto.

Deste modo, na frase em questão, deverá ser usado o pronome -o:

(1) «Desligue o dispositivo e ligue-o novamente.»

O verbo ligar pode ser usado intransitivamente com o sentido de «combinar» (2) ou de «telefonar» (3):

(2) «A saia e o casaco não ligam.»

(3) «Sempre que quiser, pode ligar.»

Disponha sempre!