Carla Marques - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Carla Marques
Carla Marques
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Doutorada em Língua Portuguesa (com uma dissertação na área do  estudo do texto argumentativo oral); investigadora do CELGA-ILTEC (grupo de trabalho "Discurso Académico e Práticas Discursivas"); autora de manuais escolares e de gramáticas escolares; formadora de professores; professora do ensino básico e secundário. Consultora permanente do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, destacada para o efeito pelo Ministério da Educação português.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Vi recentemente um exercício de gramática que suscitou uma dúvida. No exercício pedia que se sublinhasse o complemento oblíquo: «Sempre que tem problemas, a Mónica recorre aos pais.»

Nas soluções do exercício aparece «aos pais» como complemento oblíquo.

No exercício seguinte era, então, pedido que substituíssem o complemento oblíquo por um pronome (precedido de preposição). Nas soluções aparecia «Sempre que tem problemas, a Mónica recorre a eles».

É possível dizer-se/escrever-se "recorre-lhes"? Se sim, não seria de considerar que "aos pais" é complemento indireto?

No mesmo exercício, numas alíneas à frente, aparecia a frase «Ele estava muito feliz com aquela notícia».

«Muito feliz» acredito que seja predicativo do sujeito por ser "pedido" por um verbo copulativo (estar).

Assim, qual seria a função sintática de "com aquela notícia"? Modificador?

Obrigada pela atenção.

Resposta:

O constituinte «aos pais» tem, com efeito, a função sintática de complemento oblíquo.

O verbo recorrer pode construir-se com a sequência «a + pronome pessoal», como em (1), mas não aceita ser seguido de pronome pessoal clítico1, como se verifica pela inaceitabilidade de (2):

(1) «Sempre que tem problemas, a Mónica recorre a eles.»

(2) «*Sempre que tem problemas, a Mónica recorre-lhes.»

A inaceitabilidade da construção do verbo com pronome lhe é confirmada pela Gramática do Português, onde se aponta que «a impossibilidade de *o Miguel recorreu-lhes ou *obriguei-lhe o João mostra que o complemento [«o Miguel recorreu a eles»] não é indireto»2, e por Celso Luft, no Dicionário Prático de Regência Verbalonde se pode ler «recorrer a ele (não *recorrer-lhe)» (p. 438)), entre outros.

Estas descrições indicam que o constituinte «aos pais» tem a função de complemento oblíquo e não de complemento indireto (que aceita ser substituído pelo pronome lhe(s))3.

Na segunda frase apresentada pela consulente, o constituinte «com aquela notícia» depende diretamente do adjetivo feliz, pelo que desempenha a função de complemento do adjetivo. A frase terá a análise que a seguir se apresenta:

(3) «[...

Pergunta:

Qual é o valor modal de "basta"?

Resposta:

Sem a apresentação do contexto em que surge a expressão apresentada, é um pouco difícil avaliar a adequação da resposta que aqui se poderá dar.

Não obstante, podemos imaginar que, no âmbito de uma discussão entre duas pessoas, uma diz «Basta!» com a intenção de mandar calar a outra ou de a impedir de continuar a fazer algo. Neste caso, a afirmação veicula a modalidade deôntica com valor de ordem.

Disponha sempre!

Pergunta:

Podemos utilizar o advérbio talvez com o presente ou com o pretérito imperfeito do conjuntivo, sendo que com este último tempo verbal a ideia de dúvida é mais intensa e pode referir-se a ações presentes, futuras ou passadas.

Neste sentido, está correto dizermos "Não me sinto bem. Talvez deva/devesse ir ao médico agora." (valor de presente), ou "Estou doente. Talvez seja/fosse melhor ficar em casa amanhã" (valor de futuro).

Mas parece-me incorreto dizer "Ainda não sei onde vou de férias. Talvez fosse ao Brasil." ou "Talvez houvesse mais trânsito atualmente". Nestas duas frases, parece-me que apenas podemos utilizar o presente do conjuntivo.

Se assim for, em que circunstâncias temos de usar o presente ou o imperfeito do conjuntivo com o advérbio talvez?

Muito obrigada.

Resposta:

O advérbio talvez antecede o verbo exigindo o uso do modo conjuntivo. Esta construção ativa um valor de possibilidade de ocorrência da situação descrita pelo verbo.

O advérbio talvez pode ocorrer em frases simples com o verbo no conjunto, exprimindo um valor de desejo ou de dúvida1 como em (1):

(1) «Talvez leia este livro.»

A frase simples transcrita em (2) é possível com o verbo no presente do conjuntivo no sentido de expressar uma possibilidade localizada num intervalo de tempo (mais ou menos alargado) coincidente com o momento da enunciação:

(2) «Talvez haja mais trânsito atualmente.»

O recurso ao imperfeito do conjuntivo aponta para a descrição de uma situação ocorrida num tempo passado, como em (3):

(3) «O Rui esperava isto. Talvez a Rita lhe desse um beijo.»

Por essa razão, o recurso ao pretérito imperfeito do conjuntivo na frase (2) poderá ter lugar com um valor de possibilidade relativo a um momento passado:

(4) «Naquele tempo talvez houvesse mais trânsito.»

No caso dos restantes enunciados apresentados, o uso do pretérito perfeito do conjuntivo parece prender-se sobretudo com o facto de se utilizar um verbo auxiliar (dever) ou uma construção equivalente («ser melhor») que veiculam uma ideia de modalidade deôntica. Veja-se que todas as construções apresentadas são possíveis com este verbo / construção:

(5) «Não me sinto bem. Talvez deva/devesse ir ao médico agora.»

(5) «Não me sinto bem. Talvez seja/ fosse melhor ir ao médico agora.»

(6) «Estou doente. Talvez deva/devesse ficar em casa amanhã.»

(7) «Estou doente. Talvez seja/fosse melhor em casa...

Pergunta:

Comecei a escrever uma narrativa, e iniciei o texto com a expressão «Nas proximidades de».

Achei que ficou legal e passava o que queria transmitir, mas usei um corretor de textos online para checar se estava tudo certo, e apareceu que essa expressão era uma expressão prolixa, que era preferível usar a expressão «próximo de».

Isso significa que não posso usar a expressão nas proximidades? Mesmo eu achando que ficaria melhor?

Resposta:

A expressão é possível e não pode ser considerada incorreta.

O substantivo proximidades, quando usado no plural, significa «lugar próximo» (Dicionário Priberam), sendo sinónimo de arredores ou cercanias.

Por esta razão, poderá ser usado numa construção como a que se apresenta em (1):

(1) «A casa fica nas proximidades da aldeia.»

É também possível usá-lo numa construção sem sintagma preposicional:

(2) «A casa fica nas proximidades.»

A diferença entre as frases (1) e (2) reside na explicitação do local que permite localizar a casa. Na frase (2), esta localização terá de ser reconstruída por informações contextuais.

Uma pesquisa no Corpus do português, de Mark Davies, devolve-nos alguns registos de uso da construção em apreço em textos literários, como

(3) «[...] Deucalião foi obrigado a permanecer por algum tempo num boteco das proximidades do ancoradouro.» (Gastão de Holanda, O Burro de Ouro.)

(4) «Nas proximidades do Parque Sólon de Lucena, cercado de palmeiras imperiais e flamboyants, encontrei o Hotel Costa do Sol, como me interessava.»  (José Louzeiro, Devotos do Ódio.)

(5) «Um dia, estando Pancôm...

Pergunta:

Gostaria de esclarecer a seguinte questão: nas frases «Pode dizer-me as horas?» e «Sabes a que horas começa o filme?», estamos perante atos de fala diretos ou indiretos e o porquê?

Nas frases «Tenciono fazer uma viagem a Paris daqui a dois meses» e «Espero que não chegues atrasado» por que razão são classificadas como atos ilocutórios diretivos?

Por último, por que razão a frase «Acho mal que tenhas respondido dessa forma» configura um ato ilocutório expressivo e não assertivo?

Muito obrigada pela atenção dispensada.

Resposta:

As frases apresentadas em (1) e (2) correspondem a atos ilocutórios indiretos na medida em que as frases interrogativas apresentadas procuram levar o interlocutor a realizar uma ação. Por essa razão, a reação esperada não será uma resposta como «Sim, posso», mas sim, em ambos os casos, a indicação das horas:

(1) «Pode dizer-me as horas?»

(2) «Sabes a que horas começa o filme?»

Se o locutor pretendesse realizar um ato ilocutório direto, as frases poderiam ter as formas que se apresentam em (3) e (4):

(3) «Diz-me as horas.»

(4) «Diz-me as horas a que começa o filme.»

Os atos ilocutórios indiretos permitem atenuar a ordem dada, sendo uma manifestação de cortesia linguística.

O mesmo se aplica à frase (5), que corresponde a uma forma indireta de dar a ordem expressa em (6):

(5) «Espero que não chegues atrasado.»

(6) «Chega a horas!»

Nestes casos, o locutor realiza diretamente um ato locutório assertivo, mas a sua intenção não é a de associar um valor de verdade ao que diz. A sua intenção é a de realizar, de forma indireta, um ato ilocutório diretivo.

Na frase (7), o locutor compromete-se com a realização de algo no futuro, pelo que a frase configura um ato ilocutório compromissivo:

(7) «Tenciono fazer uma viagem a Paris daqui a dois meses.»

Por fim, a frase (8) configura um ato ilocutório expressivo porque por meio dela o locutor expressa o seu estado de espírito relativamen...