O papel da língua cabo-verdiana
A língua cabo-verdiana, como língua materna, nacional e identitária do povo deste arquipélago, nem sempre teve o papel de destaque que tem hoje.
Segundo Duarte (2003: 35) «o crioulo, língua nacional do povo caboverdiano, emergiu de uma situação histórica e social que tem por nome o colonialismo (…) o crioulo aparece como língua de tipo específico, produto do encontro de várias línguas, em que uma delas, europeia, se assume como dominante, e as restantes africanas, passam à condição de dominados.»
É, pois, na condição de língua dominada que essa língua se manteve durante todo o período colonial, em que os seus falantes foram obrigados a relegá-la ao domínio privado por ser considerada:
«Ridículo crioulo, idioma o mais perverso, corrupto e imperfeito; gíria ridícula, composto monstruoso de antigo português e das línguas da Guiné que aquele povo tanto preza e os mesmos brancos se comprazem a imitar; miscelânea de português antigo, de castelhano e francês, sem regras, algumas de gramática; língua...que carece de três letras – scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto porque assim não têm Fé, nem Lei, nem Rei e, desta maneira vivem sem justiça e desordenadamente.» (Lima 1844: 81 apud Madeira, pág.8)
É, portanto, nesta condição que a língua cabo-verdiana sobreviveu durante séculos de dominação colonial e que de alguma forma é vista por algumas pessoas. Entretanto, com a ascensão à independência ganha o estatuto de língua nacional e foi conquistando terreno ao longo destas quatro décadas em que Cabo Verde se tornou um Estado de pleno direito. Daí que, é a língua que se fala no mercado, na rua, nas redes sociais e até no seio da academia há professores e alunos que em reuniões optam por fazer intervenções na sua língua materna. De alguma forma essas intervenções, na língua materna, podem e são interpretadas por muitos como insegurança no uso do português e, algumas pessoas mais otimistas, acreditam que é uma forma de valorizar a língua materna ou um posicionamento ancorado no que está plasmado na Resolução 48/20051 que apregoa o seguinte:
«A presente Resolução enquadra-se no âmbito da estratégia de valorização da língua caboverdiana. Ela visa o estabelecimento progressivo de um estatuto de maior dignidade para a nossa língua materna. Situa-se ainda no âmbito da necessidade da construção progressiva de um real bilinguismo. O assumir, oficialmente, desse bilinguismo, em construção, representa não só uma inadiável questão de reconhecimento cultural e antropológico, como também um posicionamento qualificado em prol da cidadania da língua caboverdiana.»
Se a questão de fundo é a construção do bilinguismo, então deve-se falar, estudar e valorizar mais o português que está, neste momento, em franco declínio em termos de uso.
Embora as suas conquistas em termos de legislação tenham sido feitas num ritmo muito mais lento, não se pode negar ganhos significativos em forma de outras medidas legais2 que tomaram corpo em momentos diversos, tais como:
– A Resolução nº 8/96 (B.O. n.º 12, de 30 de abril) que declara a pretensão do Governo em tomar medidas no sentido de fixar metas para a oficialização do crioulo ao lado do português;
– O Decreto nº 67/98, de 31 de dezembro, ao aprovar o ALUPEC reconhece que o desenvolvimento e a valorização do país passam pelo desenvolvimento e valorização da língua nacional;
– Nessa mesma linha, tanto na Resolução n.º 8/98 (B.O. n.º 10), como em 1999, no ato da revisão constitucional está garantida a valorização progressiva do cabo-verdiano como língua de ensino;
– Em 2001, através do seu programa, o Governo manifestou o seu compromisso em promover e valorizar a referida língua, com vista à sua oficialização, para que o país possa caminhar para o bilinguismo (B.O. n.º 6, 2.º Suplemento, de 13/03/2001).
Em diversos momentos, a oficialização da língua cabo-verdiana foi dada como quase certa. Entretanto, nessas ocasiões, antes de se chegar às vias de facto, os decisores entenderam por bem adiar esta importante decisão para «o momento mais oportuno».
Convém referir que a nova geração quase que conseguiu impor um tratamento diferenciado à língua materna que lhe tem proporcionado uma visibilidade e importância muito grande como veículo de comunicação nas redes sociais, nas igrejas, na comunicação social e até no ensino há professores que dão as suas aulas essencialmente em língua materna, do básico até à universidade, o que acarreta consequências bastante danosas a curto, médio e longo prazo, mas este assunto será objeto de um outro trabalho.
O papel da língua portuguesa
O português sempre foi, no arquipélago, por razões históricas que se prendem com o passado de dominação colonial, língua do ensino, administração e comunicação internacional.
Assim, com o processo de independência, à semelhança do que aconteceu em todos os países colonizados, a língua do colonizador foi adotada como língua oficial.
Daí que, segundo Amílcar Cabral, o mentor e principal protagonista da independência da Guiné e Cabo Verde3:
«O português (língua) é uma das melhores coisas que os tugas nos deixaram, porque a língua não é prova de nada mais senão um instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros; é um instrumento, um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo.»
Então, para o povo cabo-verdiano se relacionar com outros povos, precisava e, ainda, precisa de uma língua que pudesse ser compreendida e a sua língua materna não podia servir esses fins.
Com a descolonização, pensou-se que a língua cabo-verdiana não permitia exprimir realidades, conceitos abstratos porque não estava suficientemente estudada, conforme a citação acima. Por isso, o português, ao longo destas quatro décadas de país independente, foi usado, falado e ensinado com mais ou menos rigor, consoante épocas e circunstâncias.
Convém referir que, se para muitos pode ser uma língua de identidade, esta realidade pode ter sofrido em algum momento alterações sem que as autoridades se tivessem apercebido. Hoje, os mais jovens reivindicam mais a língua cabo-verdiana como sua língua, de pleno direto, e pouco ou nada querem com o português, a não ser, quando obrigados, pelo menos é o que os professores de português afirmam e os alunos de alguma forma tentam transmitir. Mas, uma coisa é certa, há sérios problemas de aprendizagem e de proficiência em língua portuguesa que de certa forma têm causado alguma perturbação social.
Num artigo de opinião de Ondina Ferreira, ex-Ministra da Educação e Desportos, intitulado “Bilinguismo? Como?” publicado na edição nº 268 do jornal Expresso das Ilhas do dia 24 de Janeiro de 2007 diz-se o seguinte:
«Uma avaliação que se obtinha junto de formadores oriundos quer de Portugal, quer do Brasil e que ao nosso país chegavam, via projectos de formação de professores era invariavelmente, mais ou menos o seguinte: “os vossos estagiários, ou mesmo, os vossos professores em exercício, muitos deles, até têm boa preparação pedagógica, sabem muito bem o que se deve fazer, a metodologia a seguir pelo professor na respectiva disciplina, perante a turma. Conhecimentos científicos da matéria não lhes faltam. O problema maior deles é que têm dificuldades, no manejo da língua portuguesa.»
Ainda, na tentativa de esclarecer essa relação deficitária com a Língua Portuguesa acrescenta:
«Os nossos estudantes universitários, grande parte que não usa o português, estão a ter enormes dificuldades no aproveitamento, precisamente devido a essa insuficiência. E isto está a acontecer no Brasil e em Portugal, para cujas universidades são actualmente encaminhados boa parte deles. E numa observação mais atenta verificamos que mesmo no nosso país há problemas com quadros com dificuldades na elaboração de relatórios, na apresentação de trabalhos, no exarar de pareceres, em suma, na relação escrita com as instituições, dificuldades estas com marcas vincadas no funcionamento do país.»
O exposto acima, permite-nos inferir que em algum momento os professores seguiram caminhos menos recomendados ou abandonaram a sua missão. Mas também, não se pode culpabilizar única e exclusivamente os professores.
1. Cf. Varela, 2010.
2. Cf. Varela, 2010.
3. Apud, Jorge Montezinho, in Expresso das Ilhas, 30 de junho 2014
Referências bibliográficas
DUARTE, Dulce Almada (2003). Bilinguismo ou Diglossia? As Relações de Força entre o Crioulo e o Português na Sociedade Cabo-verdiana. Praia: Spleen Edições.
VARELA, Maria Antónia. (2010). Os Manuais de Língua Portuguesa e o Desenvolvimento da Expressão Oral no Ensino Secundário de Cabo Verde. Dissertação de Mestrado. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Ler também:
O papel da língua portuguesa na construção da identidade cabo-verdiana (I) – O contexto sociolinguístico cabo-verdiano
O papel da língua portuguesa na construção da identidade cabo-verdiana (III) – Língua, representação e autoimagem em Cabo Verde
O papel da língua portuguesa na construção da identidade cabo-verdiana (IV) – Os resultados de um inquérito
Estudo desenvolvido por Goreti Freire, professora da Universidade de Cabo Verde (parte II).