Representação
O conceito é usado nas diversas disciplinas das Ciências Humanas e Sociais como a Psicologia Social, Sociologia, Antropologia, Linguística. Entretanto a noção de representação aparece pela primeira vez num estudo sobre a natureza e articulação entre representações individuais e coletivas de Durkheim datado de 1899.
Em relação a representações individuais e coletivas, o autor diz:
«La vie collective, comme la vie mentale de l’individu, est faite de représentations; il est donc présumable que représentations individuelles et représentations sociales sont, en quelque manière, comparables.» (in Matthey, 1974: 14, apud Freitas; 2008:98)
Em Cabo Verde, para além dessa representação individual há também a coletiva que, sobretudo no que toca à língua portuguesa, pode de alguma forma afetar os alunos. Entretanto, nos dias que correm não se pode dizer que há essa representação xenófoba de forma exacerbada. Encontramos um ou outro “africanista” que tenta incutir nos jovens a ideia de valorizar o que é deles, quer através do rap ou mesmo através de pequenas reuniões de sensibilização nos bairros periféricos, sobretudo, entre jovens que já não fazem parte do sistema educativo, mas que não se estende além disso. Apesar dessas tentativas, é nossa convicção que isso não ocorre nos estabelecimentos de ensino ou no espaço de sala de aulas, com base no contacto e convivência que temos com os jovens estudantes no exercício do magistério.
Em relação à influência de representações positivas e negativas no comportamento dos aprendentes, Zarate afirma que:
«Representações positivas levam a atitudes xenófilas que estão geralmente manifestadas por um comportamento e uma prática de abertura para o “Outro”, mas representações negativas levam ao comportamento que se mostra através da rejeição xenófoba e recusa para o “Outro”.» (Zarate, 2004: 27, apud Quan, 2012: 12)
Para Castellotti e Moore (2002, apud Quan, id., ibid.), as representações não são erradas nem corretas nem permanentes, e também indicam que representações são muito dependentes do macro contexto (opções de currículo, orientações didáticas e relações entre línguas na sociedade e na aula, e micro contexto (relacionado diretamente com atividades em sala de aulas), o que nos parece ser mais o caso de alunos cabo-verdianos quando se fala da língua portuguesa.
No contexto de Cabo Verde, pode-se estar perante a perspetiva de Simões e Sá que afirmam que:
«A dimensão representacional/imagética diz respeito às atitudes e representações, estereótipos e preconceitos, ou seja, à imagem que o sujeito formula acerca das línguas e povos, motivadora de uma eventual relação de amor ou desamor em relação ao objecto em questão.» (pág. 7)
Esta relação que muitas vezes se acredita ser de amor para uns e desamor para muitos outros é motivada pela forma como os que são próximos aos alunos se relacionam com essa mesma língua. O que os outros colegas transmitiram e mesmo os pais, familiares e professores transmitem quer consciente ou inconscientemente tem um efeito multiplicador que pode ser benéfico ou não para os futuros aprendentes dessa língua. Embora não nos detenhamos com questões específicas que nos levem a conclusões mais abrangentes sobre este assunto, procuraremos tentar perceber se a imagem que os aprendentes têm sobre a língua portuguesa pode influenciar na assunção de uma identidade.
Identidade
O conceito de identidade é proposto por alguns autores como Borges (1997):
«Do latim identitas, identitate, identidade se traduz inicialmente pela percepção do mesmo, do igual, daquilo que imprime caráter do que é idêntico. Por outro lado, traduz a busca do que é mais peculiar ao indivíduo, do que lhe confere o caráter de específico, que o distingue de outros indivíduos e lhe assegura que ele é ele mesmo. Identidade se traduz ainda por conformidade, ajustamento, comunhão, sugerindo um processo de identificação que permita a um indivíduo confundir-se com outra pessoa, de quem assume as características» (1997: p. 22-23, apud Sousa, pág. 4)
Já para Dubar:
«[...] a identidade não é mais do que o resultado simultaneamente estável e provisório, individual e coletivo, subjectivo e objectivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, em conjunto, constroem os indivíduos e definem as instituições.» (1997: p. 105, apud Teodoro, 1998)
Para Hall (2002), a identidade não pode ser pensada da forma antiga, mas sem a qual certas questões-chave não podem ser sequer pensadas. Ele apresenta três conceções de identidade: a iluminista, a sociológica e a pós-moderna.
Para este autor:
– O sujeito do iluminismo é um indivíduo unificado, dotado da capacidade de razão, totalmente centrado em seu núcleo interior, a sua identidade permanece inalterada, ou seja, ele permanece essencialmente o mesmo ao longo da sua existência. É detentor de uma identidade que surge no nascimento e permanece a mesma ao longo da sua vida.
– O sujeito sociológico cuja identidade é formada a partir da interação com a sociedade, possui o seu núcleo interior, mas que passa por alteração à custa do diálogo com outras identidades que o mundo cultural oferece. É um indivíduo cuja identidade não é autossuficiente e centrada, mas formada na relação com outras pessoas, mediadoras de outros valores, sentidos e símbolos. A identidade costura o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto o sujeito quanto os mundos culturais que ele habita, tornando ambos reciprocamente mais unificados e previsíveis.
– A identidade do sujeito pós-moderno é composta por várias identidades que, em alguns casos, podem ser até contraditórias. Esse sujeito não possui uma identidade fixa, essencial ou estável. Possui uma rede de identidades móveis.
Neste trabalho, parece-nos mais lógico assumir o conceito de identidade do sujeito pós-moderno. Pois, falar da língua portuguesa como fator de identidade pode também ter ligação com o próprio posicionamento do indivíduo face ao contexto, interesse de marcar o seu espaço na sociedade, de singrar na carreira e procurar o sucesso de uma forma geral. Tanto é que a identidade muda, segundo Hall, de acordo com o sujeito é interpelado. E as exigências do mundo moderno e o fenómeno da globalização obrigam o indivíduo a mudanças. A forma de pensar e ver o mundo de um jovem que viveu a proclamação da independência do seu país é diferente daquele que praticamente não tem referências desse marco tão importante para a nação.
Na perspetiva de Foucault (2000, apud Hall, 2005) as identidades sociais podem ser conflituantes, pois um sujeito pode possuir duas ou mais identidades, entrando em contradição devido às relações de poder na sociedade. Porém, a identidade é, ao mesmo tempo, uma estratégia de inclusão e um mecanismo de exclusão: ela situa o indivíduo em um grupo social (no qual o sujeito se assemelha e/ou se identifica) e o distingue dos demais grupos (no qual o sujeito é diferente ou não possui determinada característica). Realmente, quem tem o domínio da língua portuguesa está numa posição privilegiada e o seu desempenho social, académico, profissional é reconhecidamente mais satisfatório e está em vantagem em relação àquele que domina apenas a língua materna.
Hall define as identidades culturais desta forma:
«As identidades culturais são pontos de identificação, os pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos da cultura e história. Não uma essência, mas um posicionamento. Donde haver sempre uma política da identidade, uma política de posição, que não conta com nenhuma garantia absoluta numa lei de origem sem problemas, transcendental.» (Hall, 1996 p. 70).
Queremos crer que, em relação à língua portuguesa, o posicionamento dos indivíduos mudou em função dos múltiplos interesses que estão em causa em matéria de língua e o próprio desejo e necessidade de singrar quer a nível social como profissionalmente. Aqui deve residir o ponto instável de identificação ou sutura. É inegável que o interesse e atenção dedicados à língua materna é muito grande, mas outros interesses sobrepõem os discursos da cultura e da história. Ou seja, a identidade muda de acordo com o sujeito é interpelado ou representado, pode ser ganha ou perdida.
Todo esse discurso em torno da língua cabo-verdiana, sua importância, ou seja, essa narrativa que é assumida e passada de geração em geração, pode ter mudado. É o que vamos ver se acontece e como acontece com esta nova geração.
José Carlos Gomes da Silva afirma que:
«É sempre pelo outro, pelas diferenças que lhe reconheço, me permite construir uma imagem de mim próprio, É ele a testemunha indispensável, ... dos meus actos, do meu papel, do meu estatuto, e da minha existência.(...) É preciso que eu estabeleça com o outro... uma relação de proximidade e distância.» (1994: 32)
É, pois, por meio da sua língua que os cabo-verdianos se reconhecem entre si e são reconhecidos pelos outros. A sua língua materna é considerada a marca fundamental da sua identidade.
Na verdade, as características culturais como língua, costume, tradições, sentimento de “lugar” que são partilhadas pelo povo a que se refere Stuart Hall estão aqui também presentes. Ainda, para além da língua, outros traços marcantes estão presentes na cultura cabo-verdiana nas manifestações artísticas através da morna, coladeira, mazurca, mas também estão presentes as tradições que preservam a identidade do povo como o batuque, funaná, tabanca e ainda há marcos importantes na própria gastronomia. Portanto, há um vasto leque de aspetos que a sua cultura preserva como próprios que também o podem identificar.
Referências bibliográficas
FREITAS, Elvira. (2008). A transferência linguístico-comunicativa: atitudes e representações dos professores. Dissertação de Mestrado. Aveiro: Universidade de Aveiro.
HALL, Stuart. (1996). “Identidade cultural e diáspora”. In: Revista do Património Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, IPHAN p. 68-75.
QUAN, Liu. (2012). Representações sobre a aprendizagem da língua portuguesa do público chinês universitário. Dissertação de Mestrado. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
SILVA, José Carlos Gomes. (1994). Identidade Roubada – Ensaios de Antropologia Social. Lisboa: Gradiva.
SOUSA, Vera Luísa de. (s/d). A modernidade e a construção da identidade. (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Disponível em http://alb.org.br/arquivomorto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem05/COLE_3181.pdf, consultado em 19 de junho de 2018
Ler também:
O papel da língua portuguesa na construção da identidade cabo-verdiana (I) – O contexto sociolinguístico cabo-verdiano
O papel da língua portuguesa na construção da identidade cabo-verdiana (II) – As funções atribuídas às línguas cabo-verdiana e portuguesa em Cabo Verde
O papel da língua portuguesa na construção da identidade cabo-verdiana (IV) – Os resultados de um inquérito
Estudo desenvolvido por Goreti Freire, professora da Universidade de Cabo Verde (parte III).