Metodologia
Para a concretização deste trabalho e como forma de perceber se o português é uma língua de identidade ou dominação e até que ponto a representação sobre essa língua põe em causa a identidade do aluno, elaborámos e aplicámos um inquérito impresso em duas escolas secundárias da ilha de Santiago, sendo uma na cidade da Praia e outra no interior da mesma ilha. […] Convém referir que o mesmo inquérito foi adaptado e aplicado também a professores.
Após a colocação dos questionários nos estabelecimentos de ensino, o processo seguido foi o da apresentação de um exemplar aos professores de Língua Portuguesa, os que eram dirigidos a estes, no dia da reunião de coordenação, por ser uma oportunidade de todos se reunirem para discutirem os conteúdos a ministrar durante a semana. E, no caso dos alunos, foi aplicado durante uma aula para facilitar o processo de recolha. A aplicação dos inquéritos aos professores foi feita em quatro escolas na cidade da Praia e em três no interior, sendo todas elas situadas na ilha de Santiago. Foram recolhidos 59 inquéritos, mas apenas 50 foram considerados como foco de análise neste trabalho. Os alunos inquiridos foram também mais de 50, sendo um grupo de uma escola sita na cidade da Praia e outro de uma no interior.
Na seleção desta técnica de recolha de dados tivemos em conta a sua adequação aos objetivos pretendidos para o estudo, considerando o tempo disponível e a facilidade de recolha de dados. Dadas as circunstâncias temporais, o inquérito é constituído somente por questões fechadas. Assegurou-se, ainda, o anonimato, não influenciando, por isso, os inquiridos no momento da recolha de dados.
[…] O inquérito dos alunos está estruturado em três partes: a primeira foi dedicada à recolha de dados pessoais como sexo, idade, ano de escolaridade e ocupação dos pais; a segunda, intitulada, a relação com a língua; e, a terceira, relação com a escrita, sendo utilizada para este trabalho a primeira parte, integralmente, e cinco das oito questões da segunda e nenhuma da terceira parte. As questões eram todas fechadas, apenas uma admitia mais do que uma resposta e optamos por tabela numérica sem precisar a percentagem. As tabelas apresentam os dados dos professores e dos alunos com o intuito de ora comparar os dados, ora verificar como é que os professores gerem a questão da língua.
O inquérito dos professores também tem a mesma estrutura que o dos alunos e está adaptado para a recolha de dados que consideramos pertinentes para este trabalho e permitir uma comparação das respostas com a dos alunos.
A técnica de recolha de dados por questionário facilita a interpretação de dados permitindo a todos os questionados responder exatamente às mesmas questões facilitando a análise e interpretação dos dados obtidos.
Baseando-nos no ponto de vista de Carmo e Ferreira (1998:178, apud Freire, 2007), o método que aplicámos neste trabalho cruza o quantitativo e o qualificativo. Optámos ora por um, ora por outro e em determinados momentos, pela combinação dos dois conforme a necessidade para o melhor desenvolvimento do assunto.
Apresenta-se, em seguida, os dados sobre as questões analisadas e respetivos objetivos investigados. Os dados obtidos nos questionários fornecem pistas que permitem traçar o perfil dos alunos inquiridos e informações relativamente à imagem ou posicionamento que os alunos possuem da língua portuguesa deixando antever possíveis fatores que estão na origem de tais posicionamentos e das motivações para a assumirem como sua língua.
O objetivo principal do questionário é perceber se o português é para os alunos uma língua de identidade ou dominação, ou seja, se têm uma representação positiva ou negativa desta língua.
Apresentação e interpretação dos resultados
Procuramos fazer, aqui, uma análise univariada, com especial ênfase para o nível descritivo, com a utilização do parâmetro como a frequência absoluta.
Parte A – Dados pessoais
Tabela 1. Sexo
Ao observarmos os dados relativos ao sexo dos inquiridos, podemos perceber que a distribuição do sexo alunos/professores é basicamente a mesma, o que confirma os dados do censo populacional que aponta para um maior número de indivíduos do sexo feminino.
Tabela 2. A idade dos inquiridos está assim distribuída:
A maioria dos professores está na faixa etária entre os 36 e 50 anos, e a maioria dos alunos tem entre 17 a 20 anos, o que nos permite inferir que a diferença de idade entre alunos e professores não é muito grande, o que justifica a aproximação dos resultados em termos de posicionamento em determinadas matérias.
Tabela 3. Habilitações literárias dos professores
A maioria dos professores tem a licenciatura, confirmando, assim, que a preocupação do Governo em investir na formação dos professores e evitar a sua colocação quando não têm a necessária preparação didático-pedagógica é uma realidade nas escolas que colaboraram neste estudo.
Tabela 4. Ano de escolaridade
A distribuição dos alunos por ano de escolaridade que responderam o nosso questionário é praticamente equitativa conforme propusemos. São alunos que se encontram no final do 3.º ciclo, Ensino Secundário, ou seja, são pré-universitários e que considerámos ter alguma maturidade e noção sobre as questões aqui levantadas.
Tabela 5. Anos de serviço
A maioria dos professores tem entre 11 e 25 anos de serviço, o que nos permite inferir que o seu tempo de serviço, as influências socioculturais e a cristalização de determinadas práticas podem ter algum peso e de alguma forma influenciar a representação sobre a língua de ensino.
Ainda, foi nossa preocupação saber qual a ocupação dos pais, para melhor percebermos se esta tem ou não alguma influência na representação sobre a língua portuguesa.
E das respostas obtidas foi possível perceber que em relação aos progenitores do sexo masculino: 3 são professores e 3 polícias; 4 pedreiros e 4 motoristas, mas também há carpinteiros, pintores, ajudantes (ajudam a preencher a lotação dos carros que fazem carreiras interurbanas), militares, médico, fiscal, comerciante, guarda (pode ser prisional ou alguém que faz segurança privada ou nas empresas).
Quanto à profissão das mães, varia desde domésticas (20, a maioria), 3 professoras, 3 vendedeiras, depois aparecem isoladamente contabilista, empregada doméstica, ajudante de serviços gerais, engenheira, geógrafa, psicopedagoga, secretária, cuidadora. Houve 5 inquiridos que não responderam, 4 não indicaram a ocupação do pai que pode estar associado ao não reconhecimento da paternidade, muito frequente na sociedade cabo-verdiana.
Entretanto, o curioso é que filhos cuja ocupação dos pais de maneira alguma apontaria para uma ligação tão forte à língua portuguesa como carpinteiro e vendedeira, motorista e funcionário público, fiscal e doméstica, pedreiro e doméstica, ou ambos sem ocupação fora do lar falariam português em casa.
Portanto, essas respostas podem ser interpretadas de muitas maneiras. Não seria preconceituoso afirmar que a ligação com a língua cabo-verdiana é tão vincada que dificilmente esses pais falariam em casa o português. Assim, temos um total de 9 alunos, na tabela a seguir, que falam português na escola e em casa, mas que vêm de um contexto familiar que diríamos improvável.
Parte B - Relação com a língua
Tabela 6. O espaço de uso do português
Assim como a maioria dos professores o fizeram, os alunos confirmam também usar o português só na escola. Assim como os professores usavam a língua portuguesa, como alunos, e usam pontualmente no seu quotidiano, os alunos e todo o povo têm essa vivência fundamentalmente em língua cabo-verdiana.
Tabela 7. Interação em Português
Tanto a maioria dos alunos como a dos professores confirmam interagir em português na sala e no pátio.
Como professora, nunca me dirijo aos alunos em crioulo qualquer que seja o ambiente, porque aprendi que era a única pessoa que devia proporcionar aos meus alunos a oportunidade de treinar o português. Portanto, é possível que esses professores, que são da minha faixa etária, tenham esse hábito apesar da sua abertura à língua materna.
Tabela 8. A fala do professor em português
A esmagadora maioria dos alunos admite que entende tudo, mas os professores não têm esse entendimento. Se os professores pensarem em termos de tarefas e resultados na sua execução, é possível que estejam certos, mas os cabo-verdianos, em termos de compreensão oral, mesmo os menos instruídos, são capazes de compreender o seu interlocutor e produzir, então, em resposta, na língua materna.
Tabela 9. A frequência do uso do crioulo na sala
A maioria tanto dos alunos como dos professores admite que acontece algumas vezes. Essa abertura dos professores às políticas de valorização da língua materna através de diplomas e resoluções que têm surgido esporadicamente, mas sem um trabalho de fundo, tem causado alguma confusão aos alunos e aos próprios professores, que em entrevistas televisivas, seja para contestar, reivindicar ou mesmo falar de algo importante da vida escolar, já não falam o português.
Tabela 10. A língua portuguesa é para o:
A língua portuguesa é tanto para a maioria dos professores como para a maioria dos alunos uma importante ferramenta de comunicação e importante para o sucesso escolar e profissional e em termos da sua importância em relação ao crioulo, tanto alunos como professores não deram especial atenção a esse facto.
Assim como os professores, os alunos não consideram o português uma língua sem utilidade para a nova geração.
E quanto à questão que deu origem a este trabalho, nenhum professor assumiu que o português é uma língua de imposição política, o que nos leva a inferir que apesar do anonimato, nem sempre os inquiridos são totalmente sinceros e querem na maioria das vezes ser politicamente corretos nas suas posições.
Em relação aos alunos, apenas 6 de um total de 50 consideram que o português é uma língua de imposição política.
A maioria reconhece a sua importância como ferramenta de comunicação e no sucesso escolar e profissional. Portanto, a utilidade e importância do português nos dias de hoje sobrepõe-se às questões históricas ou ideológicas.
Conclusão
O trabalho […] desenvolvido em torno da representação sobre a língua portuguesa e a sua assunção ou não como língua de identidade remeteu-nos para um cenário com o qual não contávamos. Tudo isso, devido às dificuldades relatadas pelos professores e mesmo ao nosso interesse de pesquisa que é aprendizagem da escrita que aponta para uma série de dificuldades constatadas em alunos universitários cabo-verdianos. Ou seja, a forma como os colaboradores deste estudo responderam às questões não deixa dúvidas de que a sua relação com a língua portuguesa é “saudável” ao contrário do que a realidade dos factos deixa transparecer. É certo que os professores têm um olhar diferente daquilo que é o real desempenho dos alunos e as próprias autoridades, em alguns momentos, admitem que há necessidade de uma política diferente e virada para o resgate da língua portuguesa.
Efetivamente, pelos resultados obtidos, não se pode dizer que a língua portuguesa não é uma língua com a qual os cabo-verdianos se identificam. Podem assumir a língua cabo-verdiana como sendo a sua primeira língua, como importante, mas quando se trata de questões de interesse como sucesso profissional e escolar todos têm a consciência da sua importância, isto é, a filiação aqui é importante.
Os inquiridos não deixaram transparecer que a representação que têm do português é negativa. Sendo esta representação positiva, a identidade do aluno não está em causa. Até porque o olhar sobre a língua portuguesa é hoje diferente por razões várias e de interesse dos próprios alunos. Dominar o português é também uma questão de status quo.
Não sendo a nossa intenção inquirir sobre os preconceitos ou estereótipos que existem sobre o português, e dada a limitação de espaço e de tempo, consideramos que é um assunto que merece a nossa atenção e maior desenvolvimento futuramente.
Na verdade, pelos resultados obtidos, não se pode considerar que existe uma relação de conflito, nem de dominação. Se esse foi o discurso ou a narrativa durante muito tempo, esta geração já não está presa a esse discurso, pelo menos os que responderam a este questionário.
A abertura ao mundo e a globalização podem ter tido um papel importante na mudança de atitude em relação ao português. O facto de existirem outros povos, de culturas diferentes, com um passado semelhante e que usam a mesma língua, e ainda o fator emigração, que é muito importante para um povo insular como o cabo-verdiano, também contribuem para uma mudança de atitude, mentalidade, assim como os interesses em causa, que possibilitam a mudança de identidade.
Em suma, é inquestionável a presença muito acentuada do crioulo, língua materna, na vida dos alunos, não só no ambiente familiar, íntimo, no dia a dia como também na própria escola. Mas, o português é também uma língua de identidade dos cabo-verdianos.
Referências bibliográficas
FREIRE, Mª Goreti. (2007). O ensino do português (L2) a partir do caboverdiano (LM). Dissertação de Mestrado. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Ler também:
Estudo da professora da Universidade de Cabo Verde, Goreti Freire