«[...] Na crônica, o foco é o ponto de vista. No conto, é a ação. O conto exige criatividade. A crônica exige o poder de observação. Sim, mas não. [...]»
Tivemos [...] no instagram da Flique, uma conversa sobre o que distingue a crônica do conto. Eu e o contista e romancista Ronaldo Wrobel bem que tentamos demarcar fronteiras, afiar as arestas, criar um chequiliste que nos garantisse que nunca mais haveríamos de ler coelho por lebre. Mas terminamos negando as aparências, disfarçando as evidências e reconhecendo que não dá pra viver fingindo que haja alguma fórmula para discernir uma coisa da outra.
Na crônica, o foco é o ponto de vista. No conto, é a ação.
O conto exige criatividade. A crônica exige o poder de observação.
Sim, mas não.
Há contos em que o grande personagem é o narrador e tudo o mais está condicionado à sua subjetividade. Há crônicas em que o grande charme é como o autor conduz a ação, e o quanto existe ali de criatividade.
O conto estaria ligado à alta literatura, ao livro.
Se o romance é uma luta que se vence por pontos, no conto a vitória se dá por nocaute (não me parabenizem: a frase é do [Julio] Cortázar, autor de um conto fascinante, Casa Tomada). Nessa metáfora, a crônica seria, talvez, o anúncio do Ron Montilla, entre uma ida às cordas e outra. E estaria ligada ao jornal – que no dia seguinte ao da compra não vai para a estante ou para a mesinha de cabeceira, mas para a gaiola do porquinho da índia.
Porque a crônica é o rés do chão (quem disse não fui eu, foi o Antônio Cândido). A crônica é subliteratura que o cronista usa para desabafar perante os leitores (não me apedrejem: o autor dessa provocação foi o Rubem Braga, autor de Ao respeitável público, uma crônica desconcertante).
Terminamos a laive e me deu vontade de escrever contos. De não me ver mais, na segunda-feira, jogado no chão do corredor, diante das portas fechadas, ou todo dia nas páginas de um feicebuque, entre feiquenils e gatos de glíter, compartilhado por quem acha que o texto fica melhor sem o meu nome. Quis (vaidade das vaidades) me imaginar embalado no capricho pela Argumentos e Travessas.
Enchi um pote de granola, abacaxi e maracujá (ontem foi dia de mercado, a geladeira estava alegrinha que nem vira-lata em churrasco) e comecei:
«Era um homem que sabia escolher maracujás.»
Isso daria um conto fantástico (não fantástico de “fantástico”, mas de sobrenatural mesmo; imagine, um homem que soubesse escolher maracujá!).
A segunda frase não veio. Tudo bem, podia ser um microconto.
Tentei outro ponto de partida:
«Era um supermercado em que o repositor de produtos dava preferência ao cliente.»
Não. Inverossímil demais.
Foi-se o pote de granola e, com ele, o sonho de cruzar a barreira (inexistente) entre os gêneros literários, deixar de ser cronista e me tornar contista.
Talvez incorpore a sugestão dada pelo Ronaldo: abandonar essas definições acadêmicas e partir para o cronto.
Pode ser que assim consiga escrever, despretensiosamente, sobre a ida ao mercado, o enigma que é um maracujá, a bênção que seria para os repositores de mercadoria se não houvesse clientes atrapalhando. Mas isso viraria, certamente, uma côntica.
Apontamento da página do autor no Facebook, em 9 de abril de 2022.