«Revoltado com a “politização de uma tragédia”, Moedas politiza a tragédia, radicalizando o discurso com a palavra "sicários". Fui ao Priberam e o sinónimo que aparece é "assassino contratado". Será difícil responder ao mesmo nível metafórico.»
Ana Sá Lopes, "Elevador da Glória: Moedas, o seu futuro e os “sicários” de Alexandra Leitão", Público, 08/09/2025
Na sequência do trágico acidente ocorrido em Lisboa, em 03/09/2025, com o chamado «elevador da Glória», gerou-se imediatamente acesa discussão à volta da responsabilidade política do atual presidente da Câmara Municipal da capital portuguesa, Carlos Moedas. Num cenário de troca de acusações entre forças partidárias, Moedas deu uma entrevista ao Jornal da Noite do canal SIC em 07/09/2025, e, a terminar, teceu considerações em que se ouviu a palavra sicário (22:11): «[o Partido Socialista de Lisboa] tem uma candidata que não vem pedir a minha demissão, mas encarrega todos os seus sicários e todos os seus apoiante para virem por trás...»
Os críticos de Carlos Moedas imediatamente assinalaram que sicário significa «assassino contratado» e tem, portanto, forte carga ofensiva, como ilustra a epígrafe deste apontamento (ver também publicação de Francisco Louçã, no Facebook, em 08/09/2025). De facto assim é, não só nos dicionários que foram referidos mas também noutros, por exemplo, no Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa:
«sicário, nome masculino, feminino: assassino pago para cometer crimes; sinónimos facínora. Do latim sicarius.»
Já que a semântica do apelativo usado pelo político português tem discussão na praça pública, comentemos a palavra por outro prisma, o etimológico.
A informação facultada por José Pedro Machado no seu Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa é a de sicário ter origem no latim sicarĭus, ĭi, que já significava «malfeitor, assassino, facínora». Este substantivo, e também adjetivo (ver Dicionário Houaiss), entrou no português por via erudita e está atestado, pelo menos, desde o século XVIII, segundo Machado, que se apoia na 8.ª edição do dicionário de António de Morais Silva (1755-1824), de 1890*. Note-se, porém, que na 1.ª edição do referido dicionário, saída em 1789, o que se regista não é sicário, mas, sim, sicariato, «morte feita com faca ou adaga».
A relação da ideia de arma branca a sicário e sicariato é morfológica e histórica, porque o latim sīcārius é um derivado sufixal de sīca, «punhal» ou «adaga curva», segundo Félix Gaffiot (1934), Dictionnaire illustré latin-français, e Charlton T. Lewis and Charles Short (1879), A Latin Dictionary. Chegando a sica, sabe-se que na Antiguidade, designava a arma nacional dos Trácios, e, em Roma, estava associada a bandidos e assassinos, assim se justificando a formação de sīcārius, cujo significado, mantendo-se pejorativo, perdeu posteriormente a alusão à arma (A. Ernout e A. Meillet, Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine, s. v. sīca); refere-se igualmente o uso do diminutivo sicula, que ocorre na poesia de Catulo com sentido obsceno (ibidem). As origens são conjeturais: propõe-se um parentesco com sīcīlis, «ponta de lança», ou sicilis, «foice», hipóteses por provar; e há quem defenda que provém dos dialetos trácios (ibidem; ver também o artigo do Wiktionary, em inglês, no qual se relaciona sīca com o protoalbanês e ao ilírio).
É consensual que o significado atual de uma palavra não deve ser definido pela semântica originária. Mas sicário, como vocábulo de tradição erudita, ainda não há tanto tempo assim incorporado no léxico português, não terá perdido, afinal, a conotação da marginalidade dos seus primórdios.
* Não foi possível consultar esta edição.
Na imagem, estatueta de bronze de um gladiador trácio, empunhando uma sica (Gália romana, séculos II-III, Museu da Biblioteca Nacional de França). Crédito: Wikipédia (09/09/2025).