Numa entrevista publicada na revista Sábado de 15/02/2023 a Luís Paixão Martins, autor do recém-publicado livro Como Perder uma Eleição, lia-se a seguinte frase:
«Das experiências nas campanhas da eleição de Cavaco Silva como primeiro Presidente de direita e nas duas maiorias absolutas de José Sócrates e António Costa, o consultor de comunicação destilou ensinamentos que, em entrevista à Sábado, resume numa máxima: a avaliação do caráter do candidato é o que mais conta.»
Os mais atentos poderiam questionar-se sobre exemplos abonatórios deste uso do verbo destilar, acreditando, até, estar errado. Procurando saber mais sobre a origem de destilar, apura-se que este verbo vem do latim destillāre, «pingar, gotejar», e tem em português atestações a partir do século XVI (José Pedro Machado, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, pág. 325). A sua significação mais literal reparte-se por aceções como «deixar sair ou sair em gotas; gotejar, estilar» («o seu rosto destilava suor»); «emitir por exsudação; ressumar» («as flores destilam na manhã»);«(na fisicoquímica) realizar a destilação ou provocar a separação de (líquidos) por evaporação e condensação de vapores; estilar», conforme define o Dicionário Houaiss. Registam-se também empregos metafóricos na literatura, sublinhando a expressividade de imagens que misturam sensações (sinestesias):
(1) «[…] debalde as ondulações de seu corpo debuxavam formas encantadoras, e o sorriso de seus lábios destilava uma fragrância mística de beijos puros […]» (José de Alencar, A Pata da Gazela)1
(2) «[…] era esse o amado, cujas faces são iguais a canteiros de flores aromáticas e cujos lábios destilam a mais preciosa mirra […]» (Aluísio Azevedo, O Homem)1
Alargando tais usos metafóricos, destilar é ainda utilizado, recorrentemente, no sentido figurado de «deixar perceber; insinuar, instilar», associado a nomes abstratos de conotação negativa: «seu olhar destilava ódio», ou seja, «no seu olhar percebia-se ódio».
De facto, são comuns as ocorrências de destilar neste último sentido apontado, como o atesta a literatura1:
(3) «– A concupiscência – dizia ele – é a serpente, que destila dos lábios enganosos o veneno que nos dá morte à alma e nos faz perder para sempre as delicias da celeste Jerusalém.» (Bernardo Guimarães, O Seminarista)1
(4) «E Moscoso revia-se na própria prosperidade, imponente na sua barriga esticada e egoísta, a destilar todo ele um ar petulante da fartura e proteção […].» (Aluísio Azevedo, As Memórias de um Condenado)1
(5) «Tais eram as ideias que me iam passando pela cabeça, vagas e turvas, à medida que o mouro rolava convulso, e Iago destilava a sua calúnia.» (Machado de Assis, Dom Casmurro)1
(6) «Revia-o ainda, quando, anos atrás, destilava nos cérebros progressivos dos seus alunos, dos quais ele, Canavarro, fizera parte, uma série de conceitos ásperos e intragáveis [...].» (Abel Botelho, Fatal Dilema)1
Neste conjunto de exemplos, tem interesse, para a compreensão do uso de destilar na referida entrevista, a última citação (6), porque ilustra a possibilidade de o verbo ter leitura próxima de «inculcar» e até de «transmitir, comunicar alguma coisa», conferindo valor negativo ao objeto inculcado ou transmitido.
Acontece que, na frase transcrita, a sequência «o consultor de comunicação destilou ensinamentos» também se presta a leitura semelhante. Só que, neste caso, o que se comunica é visto positivamente, de certo modo convergindo com outra aceção que o Dicionário Hoauiss atribui ao verbo como sentido figurado, de valor positivo ou, pelo menos, não negativo: «a casa antiga destilava lembranças alegres», isto é, «a casa antiga sugeria lembranças alegres» – o verbo é aqui definido como «fazer surgir; ocasionar, provocar». Este valor positivo do uso figurado de destilar não ocorrerá as vezes suficientes para que nos familiarizemos com ele, daí que possamos achar que configura mais um caso de impropriedade vocabular. Mas se certos contextos permitem que destilar adquira traços semânticos dos verbos inculcar e transmitir, o sentido empregado pelo autor configura a possibilidade de uma acrescida significação deste verbo. Cabe-nos, então, aceitar o valor positivo de destilar em «destilar ensinamentos» e continuar a acompanhar as subtilezas deste verbo nas conversas do quotidiano ou na escrita mediática.
1 Os exemplos foram retirados do Corpus do Português de Mark Davies.