«(...)[P]elas colinas [de Lisboa], pontilharam-se os edifícios religiosos e, como sabemos que a toponímia das ruas os acompanhava, a cidade foi-se tornando cada vez mais santarrona, como viria a dizer o ilustre olisipógrafo Gomes de Brito. (...)»
Uma das mais fascinantes lendas sobre a origem das nossas colinas nasceu dos amores de uma deusa serpente e de um herói homérico, perdidos numa teia de desejos, raiva e ciúme.
A narrativa dá-nos conta da paixão entre Ofiússa, a deusa-Tejo, e Ulisses, o herói grego intimamente ligado à toponímia criadora de Lisboa, que em tempos, foi Ulysipona ou Olisipo.
O fero capitão [...] confundido pelos desígnios dos deuses, lançou âncora nesta margem do rio [Tejo] e, pisando as areias, perdeu-se de amores por Ofiússa, deusa-serpente muito temida e ainda mais venerada pelos Estrímnios, primeiro povo a habitar este extremo ocidente, em tempos míticos, hoje só misterioso.
Arrefecida a paixão, o certeiro arqueiro, impelido por um intenso desejo de voltar a ver a costa da sua ilha mediterrânica, abandonou a deusa que, a arder de dor e com um sibilar horrendo e prenhe de cólera, fez estremecer a baía e os campos em redor do rio, que impotentes, se contorceram num abalo telúrico e ficaram petrificados, com os altos e baixos que nos custa a descer e mais a subir em dias [soalheiros].
É magnífico pensar que as nossas colinas terão tido origem no bater do coração de uma deusa apaixonada, a qual por despeito fez tremer a terra como prova do seu amor.
Passaram-se séculos e Dom Afonso Henriques conquistou aos Mouros a cidade construída nos pilares de terra, preciosa pérola de rio de prata, onde nas águas corria ouro e que por obra e graça da sua dinastia e das que lhe seguiram se cristianizou. E assim, pelas colinas, pontilharam-se os edifícios religiosos e, como sabemos que a toponímia das ruas os acompanhava, a cidade foi-se tornando cada vez mais santarrona, como viria a dizer o ilustre olisipógrafo Gomes de Brito [1843-1923].
As encostas nem sempre foram sete. Damião de Góis contou cinco e Cristóvão Rodrigues de Oliveira, ambos no séc XVI, contou quatro. Finalmente, Frei Nicolau de Oliveira, no século seguinte, tirou as teimas e fechou a conta em sete, sete motivos de orgulho em prosas e poemas engrandecidos sobre uma cidade sem rival. Sete colinas, sete tremores da deusa-Tejo. De nascente para poente, Frei Nicolau de Oliveira chamou-lhes montes e aqui se seguem. As anotações toponímicas são nossas para não nos perdermos mais num emaranhado confuso:
São Vicente de Fora, padroeiro de Lisboa, resiste como topónimo num Telheiro, num Largo, numa Rua, numa Travessa e numa Calçada. A encosta é a de Alfama e a toponímia está ligada à Igreja de São Vicente, mandada ali construir por Afonso Henriques;
Santo André sobe daí até à Graça e podemos observar a sua grandeza a partir do Miradouro de Sophia de Mello Breyner. Na toponímia sobrevive a Calçada de Santo André, marca do antigo caminho para a Igreja de Santo André e Santa Marinha, hoje Igreja da Graça;
São Jorge não nos deixou rastos na toponímia dos arruamentos, mas reza que é o monte mais alto e o nome do santo ficou lá bem no cimo, no castelo de ameias recentes, mas de imponência real;
Santana que desce do Campo de Santana e por ruas e travessas chega ao sopé, à Igreja de São José, que muito antes foi local do Mosteiro da Nossa Senhora da Anunciada no Largo do mesmo nome. De Santana ficou-nos a calçada, duas travessas e o Campo, hoje topónimo popular, pois o oficial é Campo dos Mártires da Pátria;
São Roque é a encosta que sobe ao Bairro Alto. O Largo de São Roque é hoje o Largo Trindade Coelho, mas o topónimo resiste numa das igrejas mais belas e emblemáticas de Lisboa. O ponto alto desta colina é o Jardim de São Pedro de Alcântara e a espantosa vista que nos oferece do Marquês de Pombal ao Tejo;
Chagas fica perto, estende-se do Carmo e dos seus conventos numa curva que chega à Encosta das Chagas, onde resiste a pequena Igreja das Chagas, sumptuosa antes do Grande Terramoto. Do topónimo ficou-nos uma rua e a encosta, única na toponímia atual de Lisboa;
Por fim, Santa Catarina do Monte Sinai desce do Camões a desmaiar Combro abaixo. Na toponímia ficou-nos uma rua e uma travessa. A meio da íngreme calçada. situa-se a Igreja de Santa Catarina e entrando no bairro, mesmo no topo, o soberbo miradouro de Santa Catarina de onde o Adamastor mira a cidade que o trouxe do Cabo das Tormentas e ali o acorrentou.
Nestes tempos, mesmo o alfacinha mais convicto do seu conhecimento terá dificuldade em distinguir as colinas, quanto mais quem chega de fora e não conhece a cidade. Mas do centro da Praça dos Restauradores, rodando o olhar 360º, vemos os altos que a cercam, que o diga um novel ciclista de bicicleta a pedal ou um mais sortudo com a eletricidade nas pernas.
Voltando à abandonada e esquecida Ofiússa, porque não imaginar que a deusa serpente, que todos os dias renasce nas ondas atlânticas que agitam o Tejo, não recordou séculos mais tarde o dia em que o bravo Rei de Ítaca desprezou o seu seio e agitando de novo o dorso com amor e raiva, serpenteando por baixo das colinas lisboetas castigou a cidade no ano da nossa desgraça de 1755.
Publicação datada de 25 de janeiro de 2021 no mural Toponímia de Lisboa, no Facebook.