«(...) Ilação tem outro problema: é uma palavra de adultos, uma “palavra difícil” (não está nos dicionários básicos feitos para as crianças), mas não tem magia nem complexidade. É uma pobre palavra parda, que pessoas que se levam muito a sério usam para dar um ar ainda mais sério. (...)»
O que vou dizer costuma vir no fim: escrevi este texto a pensar no Jorge Caramelo, pai da minha amiga mais antiga, com quem ri muitas vezes nos últimos 40 anos.
Há dias, na Capela do Rato, adorei ouvir os netos falarem, no altar, sobre o sentido de humor do avô e repetirem as piadas que ele disse, já no fim, na cama do hospital.
Por pensar que o Jorge acharia graça aos disparates que me preparo para escrever, aqui vai.
Ilações é talvez a palavra mais feia da língua portuguesa. Tão feia que, durante anos, recusei estudá-la e não a usei uma única vez. Nunca a disse e — até hoje — nunca a tinha escrito.
Ilações costuma ser usada em tom de ameaça vaga, dita em forma de desafio com a intenção de encostar o «outro» à parede ou, no mínimo, pô-lo nervoso.
— Não vais tirar ilações...?! — disse-me uma vez uma colega com um ar muitíssimo sério.
A palavra só tem uma coisa boa: supõe que o «outro» é alguém com criatividade. Caso contrário, seria incapaz de imaginar a intenção. Em regra, é a pessoa demitir-se, mas há variações.
Já em relação a quem lança o arremesso, é o oposto: quem diz «tirar ilações» — ou o ainda mais terrível «tirar as devidas ilações» — é pouco criativo. A pessoa pode ter um fato cinzento ou um vestido espampanante, é irrelevante. Mais do que tudo, as palavras são a nossa marca, a nossa identidade, o nosso estilo, a nossa impressão digital. Estou a ser injusta, de certeza, mas quem diz «ilação» tem um cérebro de tecnocrata.
«Ilações» também esconde cobardia. Quem diz «ilação» está a pensar numa coisa que não tem coragem nem frontalidade para dizer.
Há dias, a propósito de um editorial do nosso director, um leitor escreveu na caixa de comentários do Público:
— Seremos obrigados a tirar ilações da sua estranhíssima posição.
O leitor não concordou com Manuel Carvalho e, em vez de argumentar, atirou com o chavão das «ilações».
Por um misterioso cruzamento de sinapses, fui ver a origem da palavra. Ilação vem do latim illatio, que é «acção de levar» ou «transportar», e significa «aquilo que se deduz de certos factos». As traduções do Google propõem «sacar lecciones», «draw lessons», «disegnare lezioni», «unterricht ziehen», «tirer des leçons». Mas «tirar ilações» não é isso; é «conclusão», «dedução», «inferência».
O que me leva a outra evidência: é mau português. Há uns anos, um jurista perguntou à equipa do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa:
— Fazer uma ilação ou tirar uma ilação?
O leitor conta que, no liceu, aprendeu «que a palavra ‘ilação’ tinha em si a noção de ‘extracção’, pelo que não devia dizer-se ‘tirar uma ilação’”, uma vez que seria redundante. «A fórmula correcta seria ‘fazer uma ilação’. É assim ou estou enganado?».
A resposta, impecável, é de A. Tavares Louro, licenciado em Línguas e Literaturas Modernas pela Faculdade de Letras de Lisboa e professor de Português: «A palavra ilação tem origem no substantivo latino ‘illatione, illationis’ da mesma raiz do verbo ‘infero, inferis, inferre, intuli, illatum’, que está na origem do verbo inferir. O prefixo ‘in’ do verbo ‘inferre’, existente também em ‘illatione’ (in + latione), não pode significar movimento para fora, antes pelo contrário, contém a ideia de movimento para dentro ou avanço para o interior. Tirar corresponde a puxar para fora e, por isso, contradiz o verbo inferir e o substantivo ilação, relacionados com o movimento para o interior, para o âmago. O melhor sinónimo para ilação será conclusão. Pelas razões expostas, devemos evitar as expressões «fazer ilações» e «tirar ilações». É preferível usarmos os verbos inferir ou concluir.»
Vi também que o adjectivo ainda é pior do que o nome — ilativo — e que o plural também é pior do que o singular. Todas as versões são más.
Fico sem saber porque é que acho a palavra tão feia. Será o «i»? Será o «a» que se lê aberto, «ilá», como Hilário? Há uns anos, perguntei ao Miguel Esteves Cardoso qual era a sua palavra favorita.
— Madressilva — respondeu. — Para mim, é mais as palavras com que embirro, como néctar, gaspacho, marisco, capacho. Palavras que têm muito issh. Gosto de palavras que cantam: madressilva, lágrima.
Pode ser essa a razão. Ilação não canta, não tem o “tá-ti-ta” das palavras que têm música. O M.E.C. diz que, nas palavras, «interessa muito o arranjo do ramalhete» Ou seja, «há palavras que ficam muito mal num sítio e muito bem noutro». No caso de ilação, isso não acontece. Nunca fica bem.
Ilação tem outro problema: é uma palavra de adultos, uma “palavra difícil” (não está nos dicionários básicos feitos para as crianças), mas não tem magia nem complexidade. É uma pobre palavra parda, que pessoas que se levam muito a sério usam para dar um ar ainda mais sério.
Aposto que Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia desde 2017, nunca disse a palavra ilações, nem nenhum dos chavões da política feita em inglês.
É uma maravilha ouvi-la falar. Na era da desesperança política, Ardern é frescura, é inspiração, é alegria, é luz. Demitiu-se antes de tempo, sem um escândalo ou uma crise — para além da crise geral. Podia continuar no poder, mas disse que já não tem o “tanque cheio, mais a reserva” e que só faz sentido ocupar o lugar quando o tanque está muito cheio.
Notem as suas palavras: «Não estou a sair porque é difícil. Se fosse isso, provavelmente teria saído dois meses depois. Estou a sair porque esta função, tão privilegiada, exige responsabilidade. A responsabilidade de saber quando somos a pessoa certa para liderar e, também, quando não somos.»
E mais esta: «Espero ter deixado a convicção de que se pode ser gentil, mas forte. Empático, mas decidido. Optimista, mas focado. Que podemos ser o nosso próprio tipo de líder — um líder que sabe qual é o melhor momento para sair.»
Agora que passou o choque da demissão-surpresa, vai especular-se sobre as reais razões da saída. O “tanque” de Ardern deixou de estar cheio simplesmente porque é isso que acontece após cinco anos e meio a chefiar um país? Porque a sua popularidade caiu mais 1% e o rival de direita subiu 2%?
Porque vai ser difícil formar o próximo governo? Porque tem uma filha de quatro anos e quer ir buscá-la à escola? Porque, por mais que se diga que «já foi pior», é muito difícil ser mãe de um bebé e chefe, sobretudo de um país.
Helen Clark, a primeira mulher eleita para chefiar o governo na Nova Zelândia, disse que Ardern recebeu ataques «sem precedentes» e que a sua demissão devia pôr o país «a pensar se quer continuar a tolerar a polarização excessiva que está a tornar a política uma vocação cada vez menos atraente»: «As pressões sobre os primeiros-ministros são sempre grandes, mas nesta era de redes sociais, notícias feitas para atrair clicks de leitores e ciclos de media 24 horas por dia, sete dias por semana, Jacinda enfrentou um nível de ódio sem precedentes.»
Clark não está sozinha. Outros líderes dizem que a quantidade e intensidade de abusos e ameaças contra Ardern contribuíram para a sua saída antes de tempo. Ameaças de morte, perseguições e agressões na estrada, insultos de todo o tipo, para além de anos a responder às perguntas mais misóginas de que se possa imaginar.
Não resisto a perguntar: que ilações vamos tirar da demissão de Jacinda Ardern?
Artigo da jornalista Bárbara Reis, no jornal Público do dia 21 de janeiro de 2023, com o título «As ilações de Jacinda ou um texto sobre nada». Escrito segundo a norma ortográfica de 1945.