«(..) As palavras são de graça. Mesmo as palavras caras, curiosamente. O fenómeno é muito evidente na televisão. (...)»
Uma das formas mais baratas de causar uma boa impressão nos outros é através das palavras. Um carro vistoso, um anel espampanante, um relógio de marca — tudo isso custa dinheiro. Mas as palavras são de graça. Mesmo as palavras caras, curiosamente. O fenómeno é muito evidente na televisão. Receando que o futebol seja um assunto demasiado corriqueiro, os comentadores desportivos têm especial cuidado com o que dizem. Por exemplo, é muito raro alguém chutar, no comentário desportivo. Na maior parte das vezes, os jogadores rematam, às vezes até chegam a pontapear o esférico — mas quase nunca chutam. Talvez se considere que um jogo em que se chuta não mereça atenção e comentário. Mas os esféricos pontapeados requerem, evidentemente, análise cuidada.
A ideia de haver dois jogadores, em determinado sítio do campo, a correrem de um lado para o outro atrás da bola, é bastante mais corriqueira do que a circunstância de existir um duplo pivô que bascula à frente da linha defensiva, consoante o jogo interior ou exterior do adversário, no primeiro terço do terreno. Embora a realidade descrita seja exactamente a mesma em ambos os casos, a primeira formulação está ao alcance de toda a gente, ao passo que a segunda denota que estamos perante um comentador certificado.
Do mesmo modo, alguém que queira ser tido em conta como uma pessoa profundamente preocupada com o seu semelhante usa uma enunciação infalível: essa pessoa deseja, quase sempre, tocar o outro. Pretende falar com o outro, tem estima pelo outro, quer descobrir o outro, tenta chegar ao coração do outro. Um dos problemas deste método é que, quando nos referimos ao nosso semelhante como outro, ele fica um pouco menos semelhante. A alteridade parece recusar as eventuais semelhanças. E, no entanto, é uma formulação muito popular. O outro problema é que, em português, referirmo-nos a alguém como «o outro» não costuma ser grande demonstração de afecto. Como quando, em referência ao chefe, alguém diz: «Mal vi que estava trânsito na ponte, percebi logo que o outro me ia chatear por causa do atraso». Ou, por exemplo, quando um marido desconfia que a mulher tem outro. Nesse caso, o marido talvez também tenha a intenção de chegar ao coração do outro, mas de forma não metafórica. Com a mão, mesmo. Enfiando-a no tórax do outro.
Crónica do humorista português Ricardo Araújo Pereira, transcrita, com a devida vénia, do semanário Expresso (30/03/2023). Texto escrito pela ortografia de 1945.